terça-feira, 30 de abril de 2013

Saber do coração

Pela importância que tem nas sociedades, a educação formal sempre polarizou (e há-de continuar a polarizar) perspectivas pedagógicas diversas. Em finais do século XIX estruturou-se um conflito, mais ideológico do que científico e prático, entre duas perspectivas muito latas (a tradicional e a nova), que ainda não conseguimos superar. Só assim se pode entender que continuemos a discutir se o mais importante é que os alunos memorizem ou que compreendam, de resto, um dos maiores pontos de conflito entre essas duas perspectivas.

Trata-se de uma antinomia artificial, sem qualquer sentido, pois as capacidades de memorização e de compreensão não se excluem: articulam-se e complementam-se, entre si e com outras capacidades de nível cognitivo mais avançado, como sejam a aplicação, a análise ou a criatividade.

Recentemente, os jornais portugueses, debruçando-se sobre as alterações curriculares em curso, voltaram a dar expressão a essa antinomia, sinal de que ela ainda tilinta nas nossas convicções mais profundas e, nessa medida, sentimo-nos impelidos a ler as notícias.

Numa "Carta à directora" (do Público), uma professora de piano, escreveu um texto cujo título é "Sim, à memorização" que, pela sua ponderação e alusão às belas palavras de Steiner, que me são particularmente caras nesta matéria, aqui tomo a liberdade de reproduzir.
A "memorização está de volta como um dos motores da aprendizagem", leio no PÚBLICO. Mas esta tem de ultrapassar a disciplina da Matemática.
Reconheceu-se, "mais vale tarde que nunca" - esperemos que para ficar, que a memorização faz parte da aprendizagem.
A repetição tem de voltar a ser uma prática na aprendizagem. E os professores devem explicar aos alunos a importância da memorização. Enquanto professora de piano é isso que "professo" em todas as aulas.
A libertação que vem de saber de cor, saber do coração, uma passagem, uma obra musical. É, portanto, um tema que me é caro.
George Steiner, professor e pensador incontornável do nosso tempo, escreve, em qualquer dos seus livros, sobre a importância de memorizar: "Mas a memória - a "Mãe das Musas" - é precisamente o dom humano que possibilita a aprendizagem. (...) Aquilo que sabemos de cor amadurecerá e desenvolver-se-á dentro de nós. O texto memorizado interage com a nossa existência temporal, modificando as nossas experiências e sendo dialecticamente modificado por elas. Quanto mais vigoroso for o músculo da memória, melhor [sic] protegido estará o nosso ser integral. (...) Por tudo isto, a rejeição da memória no actual sistema escolar é de uma flagrante estupidez" (As Lições dos Mestres, Gradiva, 2003).
Mas sem repetição, não há memorização. ("Mas é chato", dizem.) Escreve Erwin Schorödinger, o Nobel da Física em 1933: "A perda gradual da consciência reveste-se de primordial importância para o conjunto do processo de aquisição de prática através da repetição. (...) Uma simples experiência que nunca mais se repita torna-se biologicamente irrelevante."
Para aprender seja o que for, é necessária a repetição, várias vezes, em numerosos casos, periodicamente, requerendo sempre a mesma resposta, para que o organismo se mantenha firme (O Que É a Vida?, Fragmentos). É preciso ensinar toda a relevância da memorização, do saber de cor. E para terminar, novamente Steiner: "Tudo o que não aprendemos e não sabemos de cor - adentro dos limites das nossas faculdades sempre imprecisas - é aquilo de que verdadeiramente não gostámos."
Céu Mota, Santa Maria da Feira
PS. Espero que das palavras que acima escrevi e das palavras desta professora o leitor não deduza, como acontece frequentemente, que defendemos que os alunos devem "decorar", "só decorar" e "nada mais do que decorar". Não defendemos tal, mas defendemos que é fundamental desenvolver essa capacidade preciosa que se designa por memorização.

10 comentários:

Céu M. disse...

Céu Mota

Obrigada, Helena, pela reprodução do meu texto sobre a memorização!
atenciosamente

Anónimo disse...

A memorização de alguns tipos de informação é tão fundamental como similar à função das vigas de uma construção. Trata-se de modelar o cérebro, minimizando fragilidades e estabelecendo linhas de força. Cuidado com ideologias e filosofias impostoras.

perhaps disse...

Parece-me uma falsa questão essa de clivagem entre memorizar e compreender para aprender. Em primeiro lugar porque, quem ensina e quem aprende sabe que sem memória não existe aprendizagem. Portanto, não se pode retirá-la da vida; aprendizagens formais e informais necessitam-na. Ponto. E também não julgo que se aprenda sem compreensão; digo aprender no sentido de construir dentro de si um conhecimento, ligando-o aos já existentes e possibilitando a sua aplicação a diversas situações da experiência. Portanto...ainda que ausente das possíveis dissidências e questões entre pedagogias diversas, o que poderá estar na sua origem é não a memória e a compreensão, cujas, julgo nenhum pedagogo de seu nome ignora, mas a recusa de algumas correntes em aceitar um ensino essencialmente baseado no decorar, papagueado sem compreensão.

Nada é estanque. E as aprendizagens não escapam à lei da osmose. Mas as correntes de ensino, as didácticas, em Portugal como noutros países, são politizadas, tal como os currículos. O ensino não é neutro. Não é neutro nos programas que oferece, não o é nas formas como sugere que sejam leccionados ou nas correntes didácticas em que se inspiram. E cada ensinante também não é neutro; tão pouco é neutro o aprendente (em ensino, as pedras são neutras).

E o que resta?
Resta a liberdade para não ser escravo de fórmulas exclusivas, mas, conhecendo-as, saber o que e como utilizar dentro da diversidade que existe no mundo de quem aprende. E muito fica ainda a cargo da arte de ensinar e levar a aprender. Mas não se pode dar vista a olhos cegos.

Ildefonso Dias disse...

Professora Helena Damião, pela oportunidade que me parece existir neste seu post, deixo uma transcrição de um texto que li no livro “Como se forma uma inteligência” pelo Dr. Toulouse – Biblioteca Cosmos. Nele o autor defende que “O objectivo da educação escolar é formar a inteligência, e não, como geralmente se acredita, transmitir conhecimentos.”



(…)
“De que se trata? Que se pretende ao instruir uma inteligência?

Não consiste em inculcar à força no individuo conhecimentos concretos de gramática, história, literatura ou mesmo ciências. A maior parte dessas noções não lhe serviriam e, por outro lado, viria a esquece-las com a maior facilidade.

Em que circunstancias um engenheiro ou um guarda-livros terão necessidade de saber as peripécias da batalha de Marengo? Quando deverá o médico ou o industrial recordar o argumento da Eineda? Em que momento um arquitecto ou um ajudante terá que recordar os afluentes do Amazonas?

Se realmente se quisesse estabelecer o contingente de utilidade da maioria das noções escolares, causar-nos-ia estupefacção certificarmo-nos que geralmente tendem sensivelmente para zero. E, quanto às outras, a invencível lei da memória se encarrega de lhes dar, em pouco tempo, o mesmo valor. Os confeccionadores de programas de ensino parece terem trabalhado para seres abstractos que não estivessem submetidos às necessidades fisiológicas da inteligência humana, das quais, esquecer é a primeira.

Que resta dos factos concretos que se aprendem nas aulas? Na realidade muito pouca coisa.

Ultimamente, alguns universitários julgaram descobrir esse vicio examinando jovens saídos da escola primária há cinco ou seis anos, e cujos cérebros, aplicados a um trabalho estritamente manual, tinham novamente ficado vazios. E maravilharam-se com isto. Mas já há muito tempo que as escolas de adultos revelam este mal e lutam contra ele. E esse mal é universal.

Dizem os médicos que é necessário aprender sete vezes a anatomia para a conhecer. Mas quem não a pratica constantemente, tal como o cirurgião, perde-a depois da sétima repetição do mesmo modo que após a sexta; o numero de esquecimentos de que a memória é capaz relativamente a um assunto, fora das ocupações diárias, é, por assim dizer, indefinido.

Se através de longos estudos de todo o género se procurasse formar o inventário daquilo que resta das noções concretas, envergonhar-nos-íamos ao observar quão pouco se conservam.”

José Batista disse...

Gostei do seu texto.
Algures, em tempos, escrevi que uma pessoa sem memória é um doente de Alzheimer. As máquinas de calcular e os computadores requerem também as respectivas memórias. E as sociedades não o seriam sem memória...
Gostei igualmente do "post scriptum" da Professora Helena Damião.
Dispensam-se por consequência, e em conformidade, antinomias artificiais e estéreis.
Muito obrigado. A ambas.

Céu M. disse...

Obrigada, José Batista!
Dou-vos a conhecer o trabalho do investigador catalão, Francisco Mora, que o jornal El Mundo entrevistou há poucos dias, sobre a emoção e a aprendizagem.
http://avozdagirafa.blogspot.pt/2013/04/a-emocao-e-aprendizagem.html).

José Batista disse...

Fui ver e achei interessante. Desde a referência a certos "neuromitos" até à citação do nobel de medicina que afirmou qualquer coisa como: acreditar que conheceremos tudo do cérebro [usando o próprio cérebro, como não pode deixar de ser] será como acreditar que nos podemos elevar do solo puxando os cordões nos nossos próprios sapatos.

Eu é que agradeço.

Helena Damião disse...

Estimado leitor Ildefonso Dias
Não sei a data do livro que cita, mas, referindo ser da Biblioteca Cosmos, situa-se no momento de acentuada contestação a tudo o que se entendesse por "tradicional".
Acontece que sabemos hoje, com certeza que a formação da inteligência não dispensa a memorização de conhecimentos (factos, conceitos e procedimentos). E para que os alunos memorizem conhecimentos é preciso que lhe sejam transmitidos, se quiser, proporcionados (através da palavra, de livros, de filmes, etc), e devidamente trabalhados. Não deve o ensino formal ficar por aí, claro está, deve estimular a compreensão, a aplicação, a análise, a criatividade... Mas a memorização de conhecimentos é a base de todas as outras capacidades, sem conhecimento nada compreendemos ou analisamos porque nada há para compreender ou analisar...
Quanto à segunda ideia do texto, de só se dever proporcionar aos sujeitos o que se supõe que lhe será útil (por exemplo, um arquitecto não precisar de saber quais são os afluentes do Amazonas porque nunca vai usar essa informação), ela é responsável pela supressão do que no currículo é o mais fundamental: o conhecimento erudito, abstracto, precisamente aquele conhecimento que mais valor tem na construção da inteligência.
Cordialmente,
MHD

Ildefonso Dias disse...

Professora Helena Damião;

Sim de facto trata-se de um livro com algumas dezenas de anos, da B. Cosmos dirigida pelo Professor Bento de Jesus Caraça.

Hà cerca de 10 anos, ouvi na rádio uma entrevista do físico João Magueijo. Ele dizia que, (e eu deixo apenas a idéia) tinha efectuado uma aprendizagem paralela ao ensino oficial, que este servia quase que, e só, para cumprir a passagem de ano, que poucos beneficios dele tirou etc.

E não se pense que ele dizia isto porque não existia a memorizaçao... que havia, e os exames, que havia.

Eu tenho a idéia que as pessoas que defendem os exames, e os consideram importantes para a aprendizagem, todas elas, sem excepção, defendem a memorização.

Professora Helena Damião, eu penso que a melhor forma de resolver esta questão relacionada com a memorização, ficando portanto em aberto a sua resolução, seria reduzir o número de exames ao minimo indespensavél. Sim, porque aí o aluno fica com a liberdade de utilizar e desenvolver as suas capacidades da forma que mais gosta e considera mais rentavel.

Ensine-se com ou sem memorização, mas acabe-se com os examezinhos, reduzam-se ao minimo indespensavel.

Cordialmente,




augusto kuettner de magalhaes disse...

Abraço Céu.


Augusto

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