quinta-feira, 18 de abril de 2013

AS SOMBRAS DE GRAY




Minha crónica no "Público" de hoje:

Não, não venho falar da senhora E. L. James (seria Grey e não Gray) nem do autor de Os Homens são de Marte, as Mulheres de Vénus (um escritor de auto-ajuda que é Gray), mas sim de John Gray, escritor e professor de Pensamento Europeu na London School of Economics que tem expresso em vários livros a sua visão muito sombria da natureza humana.

Lembrei-me dele agora que, no ecrã de televisão à minha frente, desfilam imagens repetidas à exaustão dos atentados bombistas na maratona de Boston. Foi Gray que, no seu livro Sobre Humanos e Outros Animais (Lua de Papel, 2007), enfatizou que somos animais como quaisquer outros. E que a moderna crença no humanismo não passa de uma auto-ilusão. Estou em total desacordo com ele, enfileirando naqueles que acreditam no ideal iluminista do progresso fundado nos valores da razão, da democracia, da liberdade e da tolerância, que nos trouxe qualidade de vida, mas a violência absurda de actos como o que acaba de causar em Boston três mortos e centenas de feridos, não pode deixar de nos perturbar e de nos fazer pensar se a natureza humana tem conhecido progressos desde os tempos do Gulag, ou do Holocausto, ou dos anarquistas do século XIX, ou dos cadafalsos setecentistas, ou ainda das carnificinas medievais. Há onze anos aviões civis foram desviados para chocar inopinadamente contra edifícios repletos de pessoas inocentes, hoje são colocadas bombas para explodir com surpresa num evento desportivo muito popular. Porque é o animal humano tão desumano como outros animais?

John Gray cita Fernando Pessoa, ou melhor Bernardo Soares, o autor do Livro do Desassossego para nos dizer que o homem é simplesmente como é e não como nós desejávamos que ele fosse: “Se considero com atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diferencie da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente através das coisas e do mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao Sol e dorme ali. O homem espoja-se à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se liberta da lei fatal de ser como é.” Para Gray a modernidade, com todo o seu património de valores e meios, não nos deve enganar, já que o homem é um animal essencialmente destruidor, no qual não se pode depositar grandes esperanças. Se é capaz do melhor, também o é do pior. Será, por vezes, mais tigre do que gato. Na lógica do seu pensamento, não espanta que uma pessoa de posse de uma tecnologia caseira de explosivos a use hoje de um modo trágico e que, amanhã, um país detentor de tecnologia nuclear a venha a usar para espalhar o terror.

A tese de Gray acaba de ser abonada por um novo livro seu, ainda não traduzido entre nós, intitulado The Silence of Animals e subintitulado On progress and other modern myths (Allen Lane, 2013). Aí diz que tanto a ciência como a religião, que pensam que o animal humano pode ultrapassar os seus constrangimentos naturais, perseguem utopias inatingíveis. Creio que Gray não tem razão. De facto, os cientistas acreditam no progresso científico e numa vida mais confortável baseado nele, mas não há como negar que tanto um como outra tenham sido em geral alcançadas. Por sua vez, as pessoas religiosas (que podem também ser cientistas) acreditam na melhoria espiritual, mas não se pode dizer que muitas não tenham conseguido. Ambos acreditam, embora de formas diferentes, na singularidade humana. Para Darwin, o amor por todas as criaturas vivas era o atributo mais nobre que distinguia o homem, o que lembra S. Francisco de Assis. Para o filósofo suíço Max Picard, católico, a necessidade de recolhimento em silêncio, como acontece por estes dias em Boston e no mundo, era uma marca da superioridade do homem relativamente a outros animais: “O silêncio dos animais é diferente do silêncio dos homens.” Gray, embora concordando que existe a referida diferença, vê-a de um outro modo: “Os homens procuram silêncio porque buscam a redenção de si próprios, os outros animais vivem em silêncio porque não precisam de redenção”. Para ele, “pode haver um sentido em que os outros animais são pobres, mas essa pobreza é um ideal que os humanos nunca alcançarão.” E, no fim, escreve, num pessimismo radical: “Não há redenção de ser humano. Mas também não é preciso nenhuma redenção”.

Vivemos tempos sombrios. É útil ler um pensador destes tempos, um céptico da humanidade, porque temos de nos confrontar com a escuridão. Mas, recusando o niilismo de Gray, é sobretudo nas épocas mais escuras que o nosso impulso para a claridade deve ser maior. Pode não haver redenção, mas é humano procurá-la.

6 comentários:

perhaps disse...

De Gray e Grey conheço o mesmo, ouvi falar. Do primeiro ficou-me agora curiosidade. A obra da ELJ, confesso, não me atenta. Mas devo-lhe um momento alegre por uma anedota a propósito "As sombras de Grey à alentejana".

Creio que o homem não é como Rousseau o fazia crer, um ser imaculado que a sociedade conspurca; parece-me até que o filósofo era de um optimismo ingénuo e edificante, mas pouco realista. Mas também não comungo desse quase nihilismo de Gray, se a força de destruição, Thanatos for a mais forte, que esperança nos resta? Vejo o homem como futuro, projecto. Esperar pode ser esperar na redenção puramente humana. Na capacidade para sermos uns com os outros uma comunidade diferente de qualquer comunidade animal. O que somos. Mas é verdade que existe em nós um lado destrutivo, arrasador; agora muito activo. Que não é único.

Obrigada pelo texto

Anónimo disse...

« Pode não haver redenção, mas é humano procurá-la.»

Parabéns, caro Profesor Fiolhais. Pergunto-me quantos filósofos seriam hoje capazes de dizer o que disse e como o disse!

Duarte Meira disse...

O dr. Carlos Fiolhais converte um optimismo tipicamente iluminista numa linguagem tipicamente religiosa ("redenção"), estranha ao sr. Gray.

Tal conversão só tem razão suficiente de ser se for efectivamente uma conversão religiosa. Porquê?

Empricamente, não há qualquer razão necessária ou suficiente para argumentar algum progresso moral. Empiricamente, não temos mais que isto: na "modernidade", há indicadores de um progresso no "bem" (como sugerido no texto), como há contrapesáveis indicadores (que não faltam) de um progresso no "mal". O ressultado é moralmente indeciso, insignificativo, e sem novidade: vamos progredindo no conhecimento do bem-e-do mal. E pareceu a alguns que importaria então ir "além" do bem e do mal.

Mais. Se não há motivos ou razões para crer em alguma redenção religiosa, também não há razão suficiente para crer no animal humano algo de decisivamente (leia-se: divinamente) diferente das outras espécies animais. E o sr. Gray teria razão.

Então, dr. Fiolhais, o que é que poderia ser esse "algo", que faria toda a diferença?...

Anónimo disse...

Contraponto:
The Better Angels of Our Nature:
Why Violence Has Declined
Steven Pinker

augusto kuettner disse...

Achei um texto muito bom, e bem fundametado.

Não estarei totalmente de acordo dado que o Homem quando entra na selvajaria é pior que o pior dos animais.....

E a história não engana........

marcojacui disse...

O ser humanos se vê como importante por que não pode contemplar o universo fora do centro de recolhimento de sensações que é seu corpo. Uma peculiaridade humana parece ser a de pensar que somos a forma como o universo concebeu de conhecer a si próprio, como dizia Carl Sagan.

Mas o universo talvez seja um multiverso e aí, até mesmo nosso conhecimento do universo seria banal. O fato é que tudo parece demasiado amplo para que sejamos, justamente nós a conhecer tudo. O que podemos ver é tudo o que podemos saber. É pouco e desabonador a nosso próprio respeito. Mas é.

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