terça-feira, 15 de janeiro de 2013

SOCIOLOGIA DO DIREITO DESPORTIVO - 3

As duas anteriores partes deste texto podem ser lidas a partir daqui.

Os reflexos do campo do corpo na írrita legislação

We should not forget that theory is secular.
Theory whether is an end or a means,
will require the following to have 
greater significance in the sociology of sport:
(a) a healthy division of labour,
(b) a deliberate effort to accumulate,
(c) a greater intellectual independence and
(d) acknowledged coexistence.
Kenion (1986)

Ao longo de toda a Monarquia constitucional, desde o último quartel do século XIX, ou melhor, desde a Regeneração, e já no primeiro terço do século XX, em plena República, a actividade legislativa respeitante às actividades físicas, educacionais, e militares, foi bastante extensa, mas pouco intensa, pela fraca ou nula aplicação, por ignorância umas vezes, por exauridos os recursos outras vezes, ou por escassa vontade política, outras.
A passagem ritual do século XIX para o século XX, ao institucionalizar-se a nova Constituição, caucionou-se uma outra política, mas, na área governativa, o campo político limitou-se a dar continuidade à legiferação, resultando daqui ter sido o ordenamento normativo, mais o produto da disputa entre os interesses das facções partidárias e políticas do que a resposta ao campo do corpo, obnubilando, intencional ou inadvertidamente, a reconhecida necessidade de legitimar e institucionalizar as actividades físicas.

Legislava-se, ou na convicção de que se transmitia a preocupação do governo, em matéria que dizia respeito ao exercício do corpo, à saúde, ou, de que a multiplicação de leis patentearia a ideia de que os deputados se afanavam na procura de respostas e de soluções, quando na verdade sedimentavam a ideia de que as protelavam. Criavam-se normas perfunctórias para calar as poucas e fracas críticas, e responder às vagas e frouxas pressões, mas, de maneira inócua, porque legislar não era aplicar nem executar. Donde, se o Estado legislava e não cumpria nem aplicava o articulado das leis, o cidadão colhia o exemplo de que também a impunidade lhe assentaria caso não cumprisse as normas que lhe impunham. O Estado, inconscientemente, cultivava e legitimava o desrespeito pelo Direito, e alienava a última porta da sua autoridade - a ética. Os decisores estavam decididos a não decidir.

Havia contudo quem se convencesse de que o liberalismo era a porta aberta para o respeito pelas leis, como deu conta esta Carta que hum provinciano escreveu a um seu amigo da mesma província sobre a observância das leis [19], onde, o incógnito autor perorava desta forma:
(...) já vejo um notável melhoramento com a nossa regeneração Politica, pois que as Leis se mandam cumprir exactamente, e se castiga o que abusa do seu cumprimento; e é isto o que nos faltava, pois não se observando a Lei não pode existir a Sociedade, na certeza de que sendo a mesma Lei uma razão que definida pelo comum consentimento, manda, e determina o modo, com que se há de fazer: uma oração grave, e recta, que manda o que se há de obrar, e proíbe o que se não deve fazer (1821: 3).
E porque, às vagas e frouxas pressões, se responde com vagas e frouxas leis, ficam assim, por agora, e de alguma maneira, sumariamente explicitados os fundamentos das inexpressivas, irreais e ilusórias normas jurídicas prodigalizadas pelos sucessivos governos, apostados em não mandar “o que se há de obrar”.

No cômputo geral, e porque se vivia em sociedade, chegava-se a esta conclusão: faziam-se leis que, embora publicadas, não eram feitas para se aplicarem, e as leis que deviam ter sido publicadas, para serem aplicadas, nunca foram elaboradas. Eram normas mortas, sem vida, sem expressão, e sem futuro, destinadas a figurarem na colectânea de leis dos respectivos governos, como se o dever do legislador fosse o de cumprir um ritual legífero. Seriam meras encenações jurídicas, esquecido o legislador da célebre frase lapidar, do deputado Fernandes Tomás, no despontar do liberalismo: “As actuais Cortes Constituintes, não estão fazendo Leis para Legisladores, mas sim para Povos (...)” [20]. O que seria lapidar e exemplar, se aplicada fosse a citação.

Nem na designação da folha oficial do governo se mantinha o desiderato, tantas foram os títulos que lhe conferiram como se verifica neste quadro:

Era um desassossego permanente como que em busca de porto seguro que pudesse transferir ou conferir às leis nelas ínsitas, maior credibilidade, legitimidade e alguma licitude, e, em caso de dúvida da semântica normativa, o recurso ao in dubio, pro reo estaria implícito no corpus da lei.

Se não se consideravam fáceis as relações entre o campo político e o campo do corpo, tampouco seriam as interacções entre o campo político e o campo jurídico. Este campo de jogos entre os quatro campos foi explorado por Ejan Mackaay (1991: 65-89), sob o título de Le droit saisi par le jeu, considerou que a teoria dos jogos opera uma distinção fundamental entre os jogos de conflito puro, os jogos de simples coordenação e os jogos mistos, esclarecendo que nos primeiros haveria uma oposição total, uma guerra declarada, dados os desencontros entre, v.g., o campo político, e o campo do corpo, já que os interesses de um seriam totalmente opostos aos do outro; os de simples coordenação pressuporia o diálogo para fugir aos conflitos, ou uma convenção pela defesa das duas partes para evitar a violação de uma delas, de que deu testemunho o sindicalista João Proença ao declarar que a convenção assinada com o Estado, por este fora violada. Mas o Estado, em tal matéria não é virgem.

Os jogos mistos patenteiam as dificuldades de cada campo se dissociar dos seus interesses, por desinteressados, na convicção de que o outro alguma vez pretenda um acordo ou convenção. É o que se passa presentemente entre o Ministério da Educação e o campo do corpo, quando aquele pretende encurtar o tempo da disciplina de educação física, e o segundo se opõe. Com o senão de que nem um nem o outro se dispõem a desligar-se dos seus interesses.

Ver-se-á, através dos diferentes regimes políticos, como os exemplos frutificam, e se multiplicam.

Se da Monarquia absoluta se passou para a Monarquia constitucional, isto é, para o liberalismo, ou dito de outra forma, das leis ditadas pela vontade do monarca, para as leis legitimadas pela vontade popular, a apetência normativa não diferenciou o novo poder popular do antigo poder monárquico. E a sua multiplicação não respondeu nem correspondeu às promessas que prenunciavam, minando as expectativas, semeando ilusões, alimentando desilusões, e inculcando frustrações.

A este propósito, José António Barreiros considerava que o século XIX se caracterizaria:
(...) por uma actividade legislativa fervilhante, cujo início se reporta precisamente aos meses imediatamente seguintes à própria revolução de 1820, o que se compreende atentando por um lado, no movimento de ampla renovação jurídica que então grassava na Europa e, por outro, nas necessidades de alteração institucional emergentes da própria revolução e do seu acidentado percurso.
Nem será lícito argumentar qualquer ignorância ou desconhecimento em matéria à qual o próprio Diário do Governo, então com o nome de Gazeta de Lisboa, dava guarida, dedicando algumas páginas às actividades físicas, independentemente de outras publicações avulsas, com especial destaque para as de medicina A menos que a sua inserção na folha oficial pretendesse manifestar o intento de comunicar e propagandear, por este processo, um declarado e expresso interesse por uma causa legítima, mas, na prática, o campo político esvanecia-se, porque fora de todas as prioridades no entendimento do campo do corpo. E porque esse será o estigma dos poderes instituídos sobre as actividades corporais, dar-se-á agora alguma notícia, sem exaustão, das referências saídas a lume.

João Boaventura

Notas
[19] Na Typographia de Bulhões, Lisboa, 1821.
[20]  Frase proferida na 195.ª Sessão das Cortes de 2 de Outubro de 1821 (Vide DG n.º 235, 4.10.1821). O Diário do Governo será sempre abreviado em DG.

Referências
(1821) Anónimo. Carta, que hum provinciano escreveo a hum seu amigo da mesma Província sobre a obsercancia das Leis. Lisboa: Na Typografia de Bulhões (Com Licença da Comissão da Censura).
(1979) Barreiros, José António, «As instituições criminais em Portugal no século XIX: subsídios para a sua história», in O Século XIX em Portugal. Comunicações apresentadas ao colóquio organizado pelo Gabinete de Investigações Sociais. Colecção Análise Social n.º 9, Lisboa: Instituo de Ciências Sociais.
(1991) Mackaay, Ejan, “Le droit saisi par le jeu”, in Droit et Société, n.º 17/18 (pp. 65-89). Paris: L.G.D.J.

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

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