quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

EM MEMÓRIA DO “CAPITÃO” DE ABRIL ANTÓNIO MARQUES JUNIOR

Falecido a 31 de Dezembro de 2012.

Lembrando “aquela madrugada” e os Homens que a protagonizaram…

GRAVAR ZECA POR CIMA DE RAVEL

Nesse tempo, há quase quatro décadas, eu ainda conservava o hábito, que me ficara da juventude, de estudar até tarde, pela noite fora, com música de fundo num rádio-gravador portátil. Fora assim também em Paris, na preparação do doctorat e, mais tarde, em Lisboa, com a redacção da tese que me casou com a Universidade. Era o contrário do que faço agora, que acerto o horário pelo das galinhas, sendo na solidão e no sossego das madrugadas que gosto de escrever.

Se fosse hoje, tinha sido dos primeiros a ouvir o comunicado do Movimento das Forças Armadas, que viria a chamar-se Movimento dos Capitães. Mas ouvi E depois do Adeus, pelo Paulo de Carvalho, por mero acaso, numa daquelas muitas rodagens do botão do condensador, em busca do tal fundo musical. Porque sempre apreciei a sua belíssima voz, detive-me a ouvi-lo, na íntegra, sem saber que estava atento à senha que “abriu Abril”. Mas não ouvi a Grândola, pois já sintonizara uma qualquer música a contento.

Acabara de adormecer quando a Isabel me acordou, excitada.
- Acorda! Parece que há um golpe militar. Telefonou-me agora uma aluna. Diz que há tropas a entrarem na cidade, mas que não sabe de que lado estão. Instantes depois, preparava-me para pegar no telefone em busca de respostas, quando esta voltou a tocar. Era um amigo.
- Liga a rádio! - exclamou, entusiasmado. - Desta vez é a valer! São dos nossos!
- Tens a certeza? Não será uma golpaça dos ultras?
- Não! Garanto-te. São dos nossos! - E ele lá tinha as suas razões.

Daí a momentos, ouvia-se a voz inconfundível do Luís Filipe Costa - “Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas” - logo seguida do inesquecível “On the waves”, que nos ficou como uma das marcas musicais mais profundamente gravadas dessa madrugada e dos dias de regozijo colectivo que se lhe seguiram, em festejo do fim do sufoco que foi a vida dos portugueses da minha geração.

Sucediam-se os comunicados, intercalados por marchas militares e por aquelas cantigas, até então proibidas, do Zeca, do Mário Branco, do Luís Cília. Atento, eu ouvia e gravava, saltando de estação em estação. Como não tinha cassetes disponíveis, disse adeus ao Daphnis e Cloé, de Ravel, à Missa n.º 1, de Bruchkner, e às Quatro Estações, de Vivaldi.

Ainda conservo estas gravações e na primeira, cuja etiqueta não apaguei, em vez dos acordes melodiosos do poema sinfónico do compositor francês, ouvem-se as passadas firmes e cadenciadas do grupo coral alentejano a iniciar a libertadora Grândola, Vila Morena.

Às nove horas saí de casa em busca de jornais e de convívio. As certezas da vitória avolumavam-se e a rua era uma romaria a crescer. Daí a pouco os cravos vermelhos floriam nas espingardas dos soldados, radiantes, fraternos e orgulhosos, e começava a ouvir-se «o povo, unido, jamais será vencido!». Recordo os risos, as lágrimas e os abraços dessa manhã radiosa.

Em casa, frente à televisão, com o rádio-gravador ao alcance da mão e cassetes novas que fora comprar gravei tudo o que me foi possível, relatos, comunicados, declarações, músicas libertas da proibição, auxiliado pelo Nuno, que ainda não tinha sete anos mas já manejava, à perfeição, estes equipamentos. O Rui, a caminho dos cinco, fazia bases e naves espaciais no meio de um mar de peças de lego espalhadas pelo chão.

Galopim de Carvalho

4 comentários:

José Batista disse...

O dia inicial inteiro e limpo.
Que fomos deixando embaciar...

pc disse...

Obrigado pelo retrato da memória

Anónimo disse...

Mais parece que após quase quatro décadas pouco restou dos ideais.

Até agora tem imperado o capitalismo-estalinista e seus mercados asfixiantes da humanidade.

José Fontes disse...

Caro Prof. Galopim de Carvalho:
Eu vivi mais ou menos o que relatou, preparava-me para ir fazer o exame do antigo 7.º ano do Liceu (hoje 11.º, o último que existia no secundário).
Ouvi «E depois do adeus» e «Grândola vila morena», na Rádio Renascença, com o saudoso Leite de Vasconcelos.
Às 07h00 acordaram-me a dar a notícia daquilo que esperava a todo o momento, pois estando na tropa sabia mais ou menos o que estava a acontecer.
Uma correcção sem grande importância: «ouvem-se as passadas firmes e cadenciadas do grupo coral alentejano a iniciar a libertadora Grândola, Vila Morena.»
O grupo coral alentejano não passa do ruído dos pés de vários participantes no disco a esfregarem-nos e a fingirem que marcham, encenação sonora feita sobre gravilha num pequeno espaço livre junto ao estúdio, este no 1.º andar, de onde fizeram descer microfones presos por fios para captar o som. A tecnologia disponível era escassa.
Quanto aos sonhos desfeitos que refere o Anónimo, correspondem à distância que vai das utopias à realidade.
Todas as revoluções foram traídas e quantas vezes os seus autores não foram transformados em réus.
Que cada um de nós não traia Abril advogando soluções não democráticas (utópicas, de Esquerda) ou explícitamente autoritárias (ditatoriais, de Direita), que é o que por aí tanto tem circulado, de umas e de outras.

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