O que sobrou da sala de aula
Já foi o tempo em que a educação fazia parte do cardápio
de otimismos que se costuma apresentar nas passagens de ano. No último
meio século, a educação pública e gratuita, que garantira a formação de
grandes nomes e grandes competências nas várias profissões, que
assegurara o grande salto da sociedade escravista à sociedade moderna,
foi progressivamente diminuída e até injustamente satanizada em nome de
interesses que não são os do bem comum. O estado de anomia em que se
encontra a educação brasileira pede, sem dúvida, a reflexão crítica dos
especialistas, mas uma crítica que a situe na trama própria de
tendências problemáticas da modernidade sem rumo para que seja
compreendida e superada.
A educação brasileira foi atacada por três pragas que subverteram a
precedência do propriamente educativo na função da escola e do processo
educacional: o economismo, o corporativismo e o populismo. O economismo
na educação não distingue entre uma escola e uma fábrica de pregos. A
pedagogia do economismo confunde aluno com produto e trata a educação e o
educador na perspectiva da produtividade, da coisa sem vida, da linha
de produção. Importam as quantidades da relação custo-benefício. Não
importa se da escola não sai a pessoa propriamente formada,
transformada. Importam os números, os índices, os cifrões. Presenciei os
efeitos dessa mentalidade na apresentação de um grupo de militantes da
causa das cotas raciais perante o conselho universitário de uma das três
universidades públicas de São Paulo, de que sou membro. Aliás, nenhum
deles propriamente negro: "Não queremos vagas em qualquer curso;
queremos em engenharia e medicina, cursos que dão dinheiro", frisaram.
Quer o governo que os royalties do pré-sal sejam destinados à
educação e nem temos certeza de que isso acontecerá. Os políticos têm
outras prioridades, especialmente a das urnas. Já estamos gastando o
dinheiro que ainda não saiu do fundo do mar. Mas não sabemos em que esse
dinheiro fará o milagre de transformar, expandir e melhorar a educação
brasileira e de elevar substancialmente o nível da formação cultural das
novas gerações. Dinheiro não educa. Quem educa, ainda hoje, é o
educador. É inútil ter máquinas, computadores, tecnologia, maravilhas
eletrônicas na sala de aula se, por trás de tudo isso, não houver um
educador. Se não houver aquele ser humano especializado que faz a
ligação dinâmica entre as possibilidades biográficas do educando e os
valores e requisitos de um projeto de nação, a nossa comunidade de
destino. Se não houver, sobretudo, a interação viva entre quem educa e
quem é educado, se não houver a recíproca construção de quem ensina e de
quem aprende. Se não houver a poesia deste verso de Vinicius de Moraes:
"E um fato novo se viu que a todos admirava: o que o operário dizia,
outro operário escutava".
O corporativismo transformou o professor de educador em militante de
causa própria porque a serviço da particularidade da classe social e não
a serviço da universalidade do homem. Não há dúvida de que o salário
que valorize devidamente o educador e a educação é uma das premissas da
revolução educacional de que carecemos. Do povoado do sertão ao câmpus
universitário da metrópole, o educador tem carências que não são as
carências do Fome Zero. Educação não é farinha de mandioca. "Quem não
lê, mal fala, mal ouve, mal vê", dizia Monteiro Lobato, em relação a um
item da cesta básica do educador. Fome de educador não é fome de
demagogo nem pode ser. Privá-lo dos meios para se educar, reeducar e
poder educar é desnutri-lo.
A partidarização de todos os âmbitos da sociedade brasileira, até da
religião, levou para dentro da educação os pressupostos da luta de
classes. O militante destruiu o educador, drenou da educação a seiva
vital que lhe é necessária para ser instrumento de socialização, de
renovação e de criação social. A educação só o é na perspectiva dos
valores da universalidade do homem, como instrumento de humanização e
não como instrumento de segregação e de polarização ideológica,
instrumento do que separa e não instrumento do que junta. Na escola, a
ideologia desconstrói a escola em nome do que a escola não é.
O populismo, por sua vez, transformou a educação em meio de barganha
política, instrumento de dominação, falsificação de direitos em nome de
privilégios. O direito que nega a universalidade do homem nega-se como
direito. Pela orientação populista, o importante não é que saiam da
escola alunos bem formados, capazes de superações, gente a serviço do
País. Nas limitações desse horizonte, o importante é que da escola saiam
votos, obediências, o ser carneiril das sujeições, e não o cidadão das
decisões.
A escola vem sendo derrotada todos os dias, do jardim da infância à
universidade, pela educação difusa e extraescolar dos poderosos meios de
produção e difusão do conhecimento que já não estão nas mãos do
educador. A escola é cada vez mais resíduo de poderes e vontades que
estão longe da sala de aula.
Autor - JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA USP
Publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 30/12/2012.
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4 comentários:
Quase retracta a escola desde o estado novo, eis cito a serenidade de um vulto da educação brasileira o excelentíssimo Rui Barbosa, que estabelecia do embate consciente a época. E, que outrora a exemplo do princípio à normas, ousara o estímulo ao potencial por desabrochar idéias. E, certamente avançava!
Com um ou outro cambiante, o texto aplica-se à realidade portuguesa. Provavelmente aplica-se genericamente a muitos sistemas de ensino do chamado mundo ocidental.
Por cá há ainda os exóticos franco-atiradores que dizem qualquer coisa apenas para criarem confusão e se manterem no que supõem ser a crista da onda (ou do disparate...) - são os "pedagogos do soalheiro". Têm credibilidade zero mas fazem muito ruído. Mesmo que ninguém lhes ligue patavina, o que é um facto, provocam sempre alguma poeira, que não cega mas incomoda.
Bom dia à todos!
Denuncio a quarta praga: indescência.
Trabalho Infantil no Brasil.
É o que falta: "Projeto de Nação: EDUCAÇÃO!"
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