quarta-feira, 13 de junho de 2012

PRO MEMORIA: Rui Knopfli - 15 Anos


É sempre com muito gosto que se transcreve neste blogue prosa do literato Eugénio Lisboa. De novo o fazemos, agradecendo ao seu autor o envio desta crónica, saída hoje no Jornal de Letras:

“que morri sim, que me não repito,
masque ecoo inteiro na força do meu grito”
R.K. “Testamento

Passarão, neste 2012, 15 anos sobre a morte do poeta Rui Knopfli. Tinha, finalmente, nesse 1997, que se afasta, regressado de Londres, em Agosto, mês em que completara 65 deprimidos anos. Nascera em Inhambane, “terra da boa gente” (Moçambique), em 10 de Agosto e vivera, em Lourenço Marques, a maior parte da sua vida, até à sua saída definitiva do “país dos outros”, em 1975. Só ali voltaria, de visita, por poucas semanas, em 1990, salvo erro, altura em que vivia em Londres, como Conselheiro de Imprensa da Embaixada de Portugal. O regresso à cidade das acácias e dos jacarandás foi, como é costume, nestes casos, um desencontro doloroso: os locais mudam, as pessoas desaparecem e nós mudamos também. Nada é nunca o mesmo e os regressos bons não existem. O Rui voltou a Londres desfeito e doente. Pouco lhe apetecia viver e tive que o levar ao médico pela trela. À quoi bon?, pergunto-me hoje.

A nossa morte é uma grande madrinha de erros que os outros cometem em relação anós, erros, diga-se de passagem, começados ainda em vida nossa. O esforçado Manuel Ferreira, apesar de repetidas correcções enviadas por mim e pelo Rui, passou a vida a trocar os nossos cargos na Embaixada e a chamar-me, a mim, Conselheiro de Imprensa e, ao Rui, Conselheiro Cultural, quando o inverso é que era verdade (talvez porque poesia rimasse melhor com cultura e a bruta engenharia se desse melhor com os factos rudes da imprensa, sei lá...). De qualquer modo, como dizia alguém bem avisado, a posteridade tem tantas probabilidades de errar como tem a contemporaneidade. Por isso, quando hoje vamos ao Google saber o que ali sediz do notável poeta moçambicano, português e universal, que foi o autor de Mangas Verdes com Sal, meu saudosocompanheiro de combates culturais e outros, dou com pepitas deste jaez: que o Rui “fez os seus estudos na África doSul” (não fez); que “a nacionalidade portuguesa não impediu que a sua alma fosse assumidamente africana” (que disparate! A alma do Rui nunca foi africana, o que é muito diferente de ele se ter sentido sobretudo bem, a viver em Lourenço Marques, enquanto sonhava com viagens a Paris e, sobretudo, a Londres... O poema Naturalidade tem feito muitos estragos hermenêuticos, mas não se esqueçam de que os poetas mentem muito!); que a sua obra só se tornou conhecida depois da sua morte, etc. Em contradição flagrante com a “alma assumidamente africana”, afirma-se (estes literatos!) que um dos seus “temas e motivos poéticos” é a “procura de identidade” (ou bem que a procurava ou bem que sabia muito bem que ela era “assumidamente africana”). Tudo isto vem na Wikipedia e outras partes do Google, o que nos deixa resignadamente melancólicos. Dizia o grande e ferino (emarxista) crítico americano Edmund Wilson – de quem só o Vamberto de Freitas é autoridade incontestável - que “a coisa mais cruel que aconteceu a Lincoln, desde que Booth o abateu a tiro, foi cair nas mãos do [poeta] Carl Sandburgh.” Eu sou de opinião de que é quase tão cruel cair nas mãos da Wikipedia ou de outra qualquer “pedia”, onde os artigos a nosso respeito não são assinados. Dizem-se lá coisas surpreendentes, para nos ficarmos pelos eufemismos. Eu sei do que falo, porque também estou lá.

Mas o Rui Knopfli, de quem o Eduardo Prado Coelho, num momento de amnésia (a que era muito dado) e de pouca elegância, disse baboseiras que ficarão na história literária, pelas más razões, há-de sobreviver a todos estes “deslizes”, que são parte inevitável da vida da erudição cultural. Que diabo, a literatura, tal como a economia, não é uma ciência exacta e disto não há maneira de fugir!

O Rui, impregnado da leitura de grandes poetas e prosadores de língua portuguesa, francesa, inglesa, espanhola, italiana e, via traduções, de muitas outras línguas e civilizações, passou a vida a sonhar com as grandes cidades da Europa e dos Estados Unidos e teve ocasião de visitar algumas delas. Em Lourenço Marques, levou uma vida cultural intensa, muito activa e gozada, indo ao cinema, lendo revistas de cinema francesas e inglesas, frequentando as boas livrarias e teatros de Johannesburgh, colaborando no Cine-Clube (com debates etraduções de filmes) e na manufactura e direcção de páginas e suplementos culturais, n’A Voz de Moçambique, n’A Tribuna, na Objectiva (revista do Cine-Clube), traduzindo Albee (The Zoo Story) para o Teatro de Amadoresde Lourenço Marques, do Mário Barradas, polemicando com gana e com gozo, contribuindo, em suma, com força, com zelo, com inteligência e, às vezes, com maldade, para a animação cultural daquela bonita cidade à beira do Índico plantada (a nossa “capital da memória”, como nos sussurrava ao ouvido a subtil Maria de Lourdes Cortez, lembrando-nos dos livros do Durrell...).

Em Lourenço Marques, o Rui foi feliz, voraz e culto, a pensar em como era boa a cidade de Londres, vista de Lourenço Marques ou visitada, a partir de LourençoMarques e com a garantia de regresso a Lourenço Marques... Não porque tivesse a alma recheada de africanidade, porque não tinha (quem, sobretudo, o alimentava eram o Camões, o Pessoa, o Bocage, o Villon, o Shakespeare – que leu na íntegra e com mão diurna e nocturna  – , o Baudelaire, o Verlaine, o Eliot, o Frost, o Lorca, o Régio, o Herberto Helder, o Ramos Rosa, o Sena, a Sophia, o Carlos de Oliveira e outros mais), mas porque era naquele pequenino e aprazível espaço encostado ao Índico que se sentia bem. A Europa era boa, vista dali, e, de preferência, sem sair dali, o que não tem nada com a alma cheia de feitiços& outros filtros mais ou menos folclóricos. O que o Rui lia era o Cinema, do Marcel Martin, o Encounter, a Sight and Sound, os Cahiersdu Cinema, os Books and Bookmen e por aí fora. Também lia o Craveirinha e o Luís Bernardo Honwana, é claro, e fazia-o com admiração, mas o que o alimentava, de facto, estava, sobretudo, noutro lado. No entanto, quando o Rui foi para Londres (com que tanto sonhara), tudo se desmoronou. De Londres aproveitou pouquíssimo: pouco teatro, pouco cinema, pouquíssimas das impressionantes, monumentais e frequentes exposições que por ali passavam. Mesmo livros, comparando-se com os que adquiria compulsivamente em Lourenço Marques e na África do Sul, muito poucos. Uma quase apatia...

Há tempos, meditando em tudo isto, para uma intervenção num colóquio, na Universidadede Aveiro, concluía assim: “Como é possível um homem que se deliciava, diariamente, com a leitura de grande sautores ingleses e americanos, que lia revistas como Encounter, Books and Bookmen, Films and Filming, Sight and Sound, Plays and Players, que visitava frequentemente Johannesburgh, onde ia ao teatro e se abastecia de livros – como é possível que, tendo sido brindado com um emprego no centro de Londres (...) se tivesse deixado chegar àquele patético nirvana de desapetência e de rejeição de tudo que lhe dera alimento e alegria à vida, em Lourenço Marques? Então é isto a contaminação cultural? Dá nisto? Eu prefiro acreditar, se me permitem, que se tratou de um caso antigo – e gradativamente agudizado – de depressão: nunca diagnosticada, nunca tratada e tornada mortífera. Uma história, resumindo, de um monumental desperdício. Ficaram-nos, ainda assim, os deuses sejam louvados, oito bons livros de poesia – alimentados pela grande literatura: a portuguesa, a inglesae a americana, com alguma brasileira, pelo meio.”

Sejacomo for, seria bom aproveitar este ano em que passam quinze sobre a morte do “escriba acocorado”, para se sondarem, já com alguma distância, estes mistériose perplexidades. Não seria interessante alguma ou algumas universidades pensarem num colóquio? Creio bem que sim.

Eugénio Lisboa

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