segunda-feira, 11 de julho de 2011

A Revista "presença" e a Poesia Neo-Realista (I)

Com este texto, publica-se um valioso trabalho literário do ensaísta Eugénio Lisboa sobre o início do neo-realismo e seu lugar numa revista que teve como berço as margens do Mondego debruçando-se sobre elas uma das mais antigas e prestigiadas universidades europeias:

Julgo ter havido equívocos persistentes, ao longo dos anos – e tudo tendo começado logo no início do movimento neo-realista – , quanto aos valores e aos propósitos da revista presença, cujo início teve lugar em Coimbra, em 10 de Março de 1927.O principal desfasamento entre a presença e o neo-realismo derivou de se não ter compreendido (ou de não se ter querido compreender, por conveniências tácticas) o facto de a presença nunca ter pretendido ‘excluir’ nem ter, de facto, excluído a literatura (a poesia) do neo-realismo, como valor legítimo a ser patrocinado pelos argonautas do chamado Segundo Modernismo.

Em páginas da revista e fora dela, José Régio, sem dúvida o mais influente e respeitado dos directores da presença, nunca se cansou de sublinhar a intencional – e praticada – abrangência da revista: não ideologicamente marcada, ela acolhia tudo – independentemente das conotações políticas, sociais, religiosas, morais, etc. – desde que ‘vivo’ e mostrando um mínimo de respeito pelos valores da arte. Disse mínimo, e disse-o com intenção, porque a revista, pela pena de mais de um dos seus directores, nunca exibiu qualquer fundamentalismo esteticista, muito ao invés da opinião dominante e não só do lado das hostes neo-realistas. Tanto Régio, como João Gaspar Simões sempre mostraram grande simpatia – simpatia, até, por vezes, um tanto parcial – pelos que costumo chamar “os grandes desarrumados” da arte: Raul Brandão, Dostoiewski, ou mesmo, para Simões, o Eça de Os Maias, obra que via como tendo uma arquitectura e harmonia menos perfeitas do que, por exemplo, O Primo Basílio, por isso mesmo preferindo aquela a esta... E também Casais Monteiro, no nº 17 da revista (Dezembro de 1928), não deixa de dar inequívoco testemunho do seu não-fundamentalismo formalista, no texto intitulado “Sobre Eça de Queiroz”: «Julgar uma obra», diz o futuro director da presença, mas, então, seu simples colaborador, «pelo critério da perfeição – ao menos pelo critério da perfeição clássica a que estamos afeitos – equivale a condená-la; perfeição é uma palavra desqualificada, desde que se descobriu, no homem como na natureza, um perpétuo jogo de contrastes e de antíteses.» Não se pode ser mais claro, isto é, menos ambíguo.Logo o artigo de abertura do primeiro número da presençaLiteratura Viva – não deixa dúvidas quanto à larga abrangência de propósitos dos seus directores: queriam uma literatura ‘viva’, não dissecada, não ‘livresca’, não academicista, com vigor, com poder inovador mas fortemente alimentada por uma tradição poderosa. Nem o mais pequeno sinal de conotação ideológica e, muito menos, de censura ideológica.

Num texto publicado no nº 28 da revista (Agosto – Outubro, 1930), já depois da ‘dissidência’ de Torga, Branquinho da Fonseca e Edmundo de Bettencourt, Régio reitera com inequívoca força: «Presença quer manter-se alheia a qualquer credo político, religioso, ou moral, aceitando nas suas colunas colaboradores de qualquer credo político, religioso e moral. Todas as insinuações, sugestões, reflexões, afirmações, ou opiniões de carácter político, religioso, ou moral, acidentais ou essenciais em qualquer trecho publicado na presença, são da pura responsabilidade de quem os assina». Num outro texto, publicado dois anos mais tarde, na mesma presença (nº.1, série II, Novembro de 1932), Régio, fazendo um apelo a que os dissidentes da revista regressem ao seu amplo bojo, reitera: « À revista presença interessam as criações de arte, as pesquisas ou conclusões da crítica, - e, dum modo geral, as manifestações do espírito humano dominando tanto quanto possível as limitações do espaço e do tempo. As questões políticas e sociais não lhe interessam, pois, senão na medida em que se correlacionam com essas, e assim contribuam a iluminá-las, sem que a presença arvore a bandeira de qualquer doutrina social ou política. Por isso mesmo caberão na presença colaboradores vindos dos sectores mais diversos; e poderá presença merecer simpatia aos mais diversos leitores». Régio não podia ser mais claro quanto aos alvos visados pela revista de que era co-director e elemento altamente influente: esses alvos eram «colaboradores dos sectores mais diversos» e os «mais diversos leitores». Não haveria pois questão de discriminação ideológica ou de qualquer outro cariz. E logo esclarece o conteúdo profundo desta declaração: «Que na obra dum artista, dum crítico, dum pensador, se reflictam as suas atitudes ou tendências políticas, sociais, éticas, religiosas, etc., não tem a presença a cegueira de o contestar; nem a ingenuidade de o combater. São outros – não os directores da presença – que, supondo-se animados de espírito científico, mas animados sobretudo de ardor proselitista, ingenuamente se contradizem ao mesmo tempo afirmando e desconhecendo o condicionalismo da criação intelectual.» E acrescenta isto, bem mais próximo, se não coincidente, com as opiniões de Marx, do que as indiscretas ‘orientações’ dadas à arte por alguns teóricos do neo-realismo: «Quanto mais viva é a obra dum homem, mais nela se reflecte (embora muito indirecta ou subtilmente às vezes) o homem inteiro. Em nada, porém, a aceitação deste facto embaraça a posição da revista presença. Quando as tendências ou atitudes políticas, sociais, éticas, religiosas, em vez de naturalmente se reflectirem nas obras dum artista, dum crítico, dum pensador, grosseiramente alugassem a máscara da arte, da crítica, do pensamento, para melhor realizarem impunes a sua verdadeira intenção de divulgação e propaganda, - claro que a arte desses pseudo - artistas será má, a crítica desses pseudo - críticos falsa, o pensamento desses pseudo - pensadores deficiente; e então presença recusar-lhes-ia as suas páginas: Todos os leitores compreenderão que o grupo directivo duma revista se reserve o direito de recusar colaboração que repute inferior.» Por fim, para que, das palavras, se passasse aos actos, vinha o convite: «Aqui fica aberto o sincero convite de presença aos verdadeiros artistas, críticos ou pensadores de qualquer escola, idade, classe». Este convite, sublinha Régio, falando em nome da revista coimbrã, «a todos dirigido, é-o ainda mais insistentemente a duas espécies de possíveis colaboradores: os que nunca colaboraram na presença; os que nela deixaram de colaborar. Entre os primeiros, estão os mais novos: os representantes das novas tendências, quaisquer que sejam. Uma revista hostil aos novos e fechada às modernas correntes seria uma revista condenada à decrepitude.»

Referindo-se, adiante, aos ’dissidentes’, nota com empolgante abertura:« E pensa [a presença] ainda que, acima de quaisquer desencontros pessoais, conflitos particulares ou até antagonismos doutrinários, se poderia, talvez, pôr um ideal comum de beleza, lucidez, amplificação, cultura.» Em termos de ‘abertura’, isto é, de não fechamento, não se poderia ir mais longe. Ao referir-se às ‘novas tendências’, não custa muito adivinhar que nelas se incluíam, sobretudo, as dos novos argonautas do neo-realismo, pelos quais, nem Régio, nem Gaspar Simões, nem Casais Monteiro esconderam nunca uma carinhosa simpatia, no plano da criação por estes produzida. Tanto assim era que o convite feito pela presença acabaria por ser aceite por alguns significativos nomes do neo-realismo. Na fase final da revista, Fernando Namora, João José Cochofel, Joaquim Namorado, João Pedro de Andrade, António Ramos de Almeida, Mário Dionísio, ligados ao neo-realismo, corresponderam ao apelo da presença, colaborando nela. E, por ocasião do fecho da revista, um grupo de neo-realistas, alguns deles figuras de proa do movimento, como Fernando Namora, Carlos de Oliveira e João José Cochofel, entre outros, dirigiram aos directores da presença um apelo, nestes nobilíssimos e significativos termos: « Habituámo-nos a ver em presença não só a mensagem da geração que tanto contribuiu para o esclarecimento do fenómeno literário e artístico, em geral, (a vossa geração), mas também a revista à qual devemos a nossa formação de artistas. Hoje existem realmente certo número de incompatibilidades entre nós e a presença: divergência de mentalidades; mas isso não faz esquecer o que efectivamente lhe devemos e aquilo que ainda nos continua e continuaria a unir.» E concluíam: «Pois bem: em nome da vossa geração e para que a sua mensagem continue a chegar até nós, em nome das nossas próprias divergências, e em nome do muito em que estamos convosco, apesar dessas divergências, incitamo-vos a continuar. A menos que julguem a vossa missão terminada, o que não cremos.»

Vimos como a presença inequivocamente se abriu aos jovens neo-realistas, que acabaram por lhe visitar e enriquecer as páginas. Porém, se, de algum lado, houve tentativa de negar a validade (ou, no mínimo, a oportunidade) de conteúdos do outro lado, foi da banda de alguns criadores e teóricos do neo-realismo, relativamente à presença. Não há, do lado presencista, um texto que insinue a ilegitimidade das preocupações sociais e políticas dos jovens aguerridos, apoiados pelo Sol Nascente, pelo Diabo e pela Vértice. Já do lado neo-realista aparecem tendências nítidas a considerar uns temas e umas preocupações ‘melhores’ do que outros ou outras, indo-se ao ponto de se condenar certas ‘escolhas’, por demasiado ‘psicológicas’, labirínticas, ‘subjectivas’, ‘umbilicais’, secundárias, estreitas, em relação a outras, que claramente se privilegiam, a pretexto de oportunidade e dos ventos que correm.

Num texto publicado no nº 949 da revista Seara Nova (20 de Outubro de 1945), Mário Dionísio declara:« Se alguém me perguntar qual o mais belo, mais poético, mais humano tema para um poeta neste momento, eu lhe responderia sem hesitação: eleições livres, eleições livres, eleições livres.» Dionísio, que era poeta e ficcionista, saberia muito bem que não há temas bons e temas maus, como não há temas grandes e temas pequenos. Pode fazer-se uma imortal obra-prima com uma pequenina emoção e um pastelão intragável com um grande tema de importância cósmica. O pequeníssimo e umbilicalíssimo Alma Minha, de Camões, não é por certo ‘menor’ do que a Ode Triunfal ou a Ode Marítima de Álvaro de Campos. O erro cometido por Eduardo Lourenço, ao considerar a presença ‘menor’ do que o Orpheu, porque uma fazia psicologia , enquanto o outro produzia abalos ontológicos, é um erro de monta, que – perdoe-me o distinto ensaísta – faz sorrir quem costuma meter mesmo as mãos na massa da criação literária ou, de modo mais geral, artística. Os temas de Vermeer são ‘pequeninos’, mas as obras de Vermeer são grandiosamente belas e fortes e duráveis.. E vale mais uma pequena jóia lírica de João de Deus, feita de nada, do que portentosos cometimentos poéticos como a Henriqueida ou a Viagem Extática ao Templo da Sabedoria, de José Agostinho de Macedo. (Além do mais, a presença fez muito mais do que apenas psicologia...)

(Continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Tenho uma pequena dúvida.

Os três primeiros números da revista estão grafados com maiúscula. Os seguintes com minúscula.
Na referência bibliográfica, opta-se pelo título grafado com minúscula ou faz-se a distinção entre os primeiros números e os seguintes?

Helena

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