quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Blasfémias

A palavra heresia, do grego haerĕsis, significa escolha, preferência, gosto particular, escolha filosófica, inclinação ou preferência filosófica ou por uma escola de pensamento. Já a etimologia de outra palavra intimamente ligada, blasfémia - do grego blaptein, injuriar, e pheme, reputação -, indica-nos que na sua génese se referia a irreverência face a uma pessoa ou algo considerado de elevada estima.

Com o advento do cristianismo, ambas as palavras evoluíram, assumindo significados exclusivamente dirigidos para a religião cristã, isto é, heresia passou a ser uma declaração contra a fé cristã como interpretada pela hierarquia da Igreja e blasfémia perdeu a sua dimensão humana. A conjunção de ambas as palavras foi considerada especialmente grave, isto é, uma blasfémia herética, como dizer que Deus é um produto dos homens ou negar a natureza divina do Cristo, era (e aparentemente continua a ser) um «pecado» mortal dos mais graves (com isto significando durante muito tempo merecedor de morte).

É assim curioso o Desidério ter referido a palavra blasfémia no contexto do que tem acendido o De Rerum Natura, o artigo que escreveu para o Público de 24 de Dezembro sobre as observações «ecológicas» de Bento XVI. É curioso porque o artigo foi escrito ao mesmo tempo que a Assembleia Geral da ONU votava pelo quarto ano consecutivo uma resolução condenando a blasfémia, ou antes, a «difamação» da religião - a boa notícia nesta história é que o apoio à resolução tem diminuido consideravelmente ao longo dos anos, não obstante este ano a China e a Rússia terem decidido apoiar os estados islâmicos seus proponentes.

Mas é mais curioso porque nessa mesma edição, o meu pequeno parágrafo perdido no meio de duas páginas de respostas à pergunta que o Público colocou a 18 pessoas, sobre o que faria/como seria Jesus se viesse hoje à Terra:
Se é que existiu alguém chamado Jesus, seria uma pessoa normalíssima. Seria igualzinho a nós, em nada seria diferente. Tenho muita curiosidade sobre o assunto e já li muitos autores que divergem quanto à existência histórica de Jesus. Tenho sérias dúvidas que tivesse existido.
causou reacções semelhantes, não nas cartas de leitores mas nas minhas caixas de mail. Mais concretamente, tive um entupimento de mensagens de pessoas que se sentiram insultadas/incomodadas com a minha resposta e se deram ao trabalho de me procurar no Google para informarem enfaticamente - a maioria no meio de imensas considerações sobre a minha mãe, a minha vida sexual, a minha integridade física e mental e quejandos -, que eu não tinha o direito de pensar uma heresia blasfema destas, muito menos tinha direito de a dizer publicamente.

Achei especialmente divertido um mui indignado senhor, que, de dedo virtual em riste, me admoestava dizendo, entre outras tolices, que uma professora universitária tinha «responsabilidades» sociais e não podia arrogar-se ao escândalo de se afirmar ateia nem dizer «blasfémias» destas já que poderia influenciar os mais «vulneráveis» intelectualmente.

Não me estou nem a vitimizar nem a queixar do teor dos mails, embora discordando de alguns pontos do texto subscrevo o Desidério, não só quando este diz que« as pessoas devem ter direito às suas tolices» mas também quando noutra crónica constatou que muitos pensam que liberdade de expressão significa que «cada qual pode dizer o que quiser, desde que não me insulte nem me ofenda nem ponha em causa as minhas causas mais queridas nem chame nomes feios à minha gata». Apenas acho espantoso que aqueles que exercem tão vigorosamente o seu direito às liberdades de opinião e expressão as neguem a mim apenas porque o que penso e digo é diverso daquilo em que creêm.

Não posso deixar de considerar igualmente espantoso que alguns acusem (também virtualmente) ser «cristianofobia» o facto de pensar como penso. Isto é, não consigo perceber os processos mentais de alguém que acha que sou ateia de propósito para chatear os cristãos e para perseguir a fé. Devem ser mistérios da dita que me ultrapassam ... mas me preocupam exactamente pelas razões que preocupam os que criticaram a resolução da ONU (felizmente não vinculativa), que considera numa das cláusulas que as liberdades de expressão e opinião «carries with it special duties and responsibilities and may therefore be subject to limitations».

As liberdades de expressão e de opinião são fundamentais na nossa sociedade democrática e livre. Foram opiniões fora do baralho que sensibilizaram consciências e conduziram à abolição da escravatura, à instituição da democracia, à igualdade de direitos para todos, independentemente de cor da epiderme, credo, sexo ou opção sexual. Pretender que apenas as ortodoxias religiosas de todas as cores têm direito pleno a elas e que todos os outros estão limitados à concordância - ou pelo menos abstenção de críticas - com essa ortodoxia é o caminho certo para a reversão da sociedade que construímos. Por estas razões, este hate mail incomodou-me, não pelo conteúdo ou pelos insultos, mas apenas pelo espírito totalitário que lhe está subjacente.

10 comentários:

Desidério Murcho disse...

O pedido constante de respeitinho por parte das ideias mais doidas é uma mera estratégia que resulta da seguinte constatação:

Não é preciso fazer seja o que for para o pior acontecer, basta deixar-lhe espaço.

O mesmo acontece no caso das ideias parvas, nomeadamente religiosas. Enquanto o respeitinho religioso põe uma mordaça na liberdade de expressão, os religiosos envenenam as pessoas com as suas superstições e tolices, ganhando adeptos. É isto a luta política. O único objectivo do parvalhão que assina como perspectiva neste blog é publicitar-se, tal como o único objectivo do papa é que as palavras dele sejam citadas. Enquanto estas bestas aparecem em público, têm publicidade de borla. Mas a publicidade volta-se contra o feiticeiro se uma pessoa for suficientemente livre e honesta para dizer o que realmente pensa dessas tolices supersticiosas e infantis. Daí a ideia maravilhosa de que não se pode realmente dizer em público que estas ideias são pura e simplesmente parvas, apesar de um gajo ter de ouvir o tempo todo insultos desta gente, que me reza pela alma e sei lá que mais. Chiça!

Rolando Almeida disse...

Um dos problemas psicológicos que empiricamente nos apercebemos com a liberdade de expressão, é que as pessoas facilmente reclamam a liberdade de exprimirem aquilo em que acreditam. É mais raro encontrar quem se disponha a defender a liberdade de expressão das crenças diferentes das nossas. Um desses casos raros é o de Stuart Mill. O testemunho está em Sobre a Liberdade, Ed. 70.
De resto também concordo com o Desidério: a liberdade de expressão implica que as pessoas tem tanta liberdade para dizer tolices como para argumentar solidamente. Defender a liberdade de expressão exige riscos intelectuais que a maioria das pessoas não devem estar preparadas para assumir ate ao fim.

Jorge Oliveira disse...

Palmira :

Não se preocupe muito. Deixe lá gritar os torquemadas. Na verdade, embora as fogueiras da Inquisição se tenham apagado, as cinzas ainda andam aí pelo ar.

joão viegas disse...

Interessante referir-se a blasfémia no contexto dos comentarios ao texto do Desidério (falo apenas dos comentarios neste blogue, ignoro os outros).

Os ordenamentos juridicos ocidentais aboliram ha muito tempo a incriminação da blasfémia e não me parece que ninguém queira sériamente voltar atras.

Com efeito, e ainda que isto custe a alguns (o que explica a resolução da ONU referida no texto -- mas reparem que ela se refere a actos de discriminação, de intimidação, de pressão, etc. em relação com "religious defamation", o que é um bocadinho diferente da blasfémia no seu sentido tradicional), é pacifico entre nos que uma pessoa não pode pretender que a blasfémia é uma injuria porque a atinge no seu âmago. Isto acontece porque existe a noção de que a pessoa não se confunde com as suas convicções (o que não quer dizer que não tenha direito a elas).

Os unicos limites à liberdade de expressão vigentes nos nossos ordenamentos juridicos prendem-se com casos em que essa liberdade é usada directamente para atingir a pessoa (e não o que ela pensa ou o que ela crê). A injuria é uma desconsideração da pessoa, e não daquilo em que ela crê, ou daquilo que ela pensa.

Por outras palavras, o nosso ordenamento juridico assenta na crença, humanista, de que a unica coisa que é sagrada, e deve ser respeitada como tal, se necessario mediante a cominação de sanções penais, é a pessoa humana.

Isto implica que eu tenha o dever de considerar os outros, e de me considerar a mim proprio, principalmente como homem(s) (ou mulher(es)), e não como catolico, como homosexual, ou como negro.

Mas implica também que eu, e todos nos, possamos exigir o respeito da pessoa - e isto pode requerer alguns limites, excepcionais e devidamente enquadrados, à liberdade de expressão. Implica nomeadamente que eu possa exigir ser sempre considerado, e tratado, como uma pessoa, e não como uma coisa ou um animal (vulgo : dignidade).

No caso da resolução, embora o texto se aproxime dos principios expostos acima, ha uma obvia tendência para tentar impôr uma logica muito diferente : logica em que as pessoas poderiam considerar insultuoso o acto de criticar, denegrir, ou caricaturar os seus credos, o que levaria a alargar o conceito de injuria de uma forma inaceitavel. Isto seria aceitar que uma pessoa se define por aquilo que pensa, ou que crê, ideia radicalmente avessa aos principios aludidos acima.

A diferença é subtil, mas existe : uns dizem que a pessoa esta antes do credo, e que se distingue dela, os outros pretendem que o credo define a pessoa.

Os valores de dignidade e igualdade, que radicam na mesma ideia e estão na base do nosso ordenamento juridico permitem fazer a diferença, em referência ao ideal humanista que referi.

E claro que devemos manter-nos vigilantes nessa matéria fundamental.

Mas, sem querer reabrir a discussão com o Desidério, não me parece que a afirmação categorica que não deveriam existir nenhuns limites para a liberdade de expressão seja a maneira mais habil, e mais eficaz, de exercer essa vigilância...

Palmira F. da Silva disse...

Caro João Viegas:

Não é bem assim, isto é, não é verdade que os «ordenamentos jurídicos ocidentais» abandonaram as leis da blasfémia.

Por exemplo, só em 5 de Março deste ano, a Câmara dos Lordes aprovou a abolição da anacrónica lei de sabor medieval que criminalizava a blasfémia no Reino Unido.

O último prego no caixão da lei da blasfémia foi colocado pouco depois por Sir Ian McKellen que leu num evento organizado pela National Secular Society a última obra a ser condenada por blasfémia em terras de Sua Majestade.

O poema de James Kirkup The Love that Dares to Speak its Name, foi publicado nos anos setenta na Gay News. O editor da revista foi condenado a 9 meses de prisão por blasfémia e a obra foi banida.

Palmira F. da Silva disse...

Mas há mais exemplos, a Holanda, um dos poucos países a permitir a exibição do Salve Maria de Jean-Luc Godard e que se orgulha(va) da sua longa tradição de tolerância e liberdade de expressão.

Os acesos debates e as queixas de perseguição por parte das organizações islâmicas que se seguiram ao assassínio em 2004 de Theo van Gogh foram acompanhados de pedidos para que a lei da blasfémia fosse endurecida.

A rejeição por parte da opinião pública desta possibilidade resultouna abolição da lei da blasfémia - em Novembro de 2008! -, o que seria uma excelente notícia não fora o caso de as autoridades pretenderem agora alargar à religião as leis anti-discriminação. Ou seja, o parlamento holandês pretende equiparar crenças a pessoas e criminalizar os insultos indirectos, o que quer que isto seja, a crenças.

Mais concretamente, como refere The Mediawatchwatch, o que resultará se estas intenções forem concretizadas será ainda pior que a lei da blasfémia agora abolida:

The intention is to introduce the concept of “indirect insult” and expand an existing law which protects people on the basis of race, age, disability, and sexual orientation to include protection on the basis of religion or “conviction”. This means that remarks directed at Islam, Christianity, Buddhism or — depending on your interpretation of “conviction” — even homeopathy and astrology, could be interpreted as indirect insults to people, and prosecuted as such.

According to a commenter on the original story, this law carries a maximum sentence of 12 months, whereas the original defunct blasphemy law carried a maximum 3 month sentence.

Aires Almeida disse...

Caro perspectiva,

A Palmira, ou seja quem for, não precisa nada de refutar as referidas proposições. A ideia que dá é que o perspectiva não percebe nada do que diz, pelo que não faz grande sentido nem se vê qualquer utilidade refutar afirmações cujo significado não se percebe bem.

Diz o perspectiva:

"Na verdade, no centro do criacionismo estão duas proposições simples e inegáveis:"

Afinal as duas transformaram-se em quatro ou trata-se de um milagre como o dos pães? (Mas adiante, que isto é só uma brincadeira sem grande importância).



"1) toda a informação codificada tem origem inteligente (facto empiricamente irrefutável)"

Bom, se é empiricamente irrefutável, então é uma afirmação vazia, sem grande conteúdo informativo. É pseudociência, como diz Popper e praticamente toda a gente concorda.

Seja como for, se há afirmações disputáveis, esta é uma delas. O que o perspectiva precisa de fazer, antes de mais, é justificar uma afirmação tão pouco consensual. A não ser que disponha de uma definição tendenciosa de 'informação codificada'.


"2) todo o DNA tem informação codificada em quantidade, qualidade, complexidade e densidade que transcedem toda a capacidade humana (facto empiricamente irrefutável)"

Mais uma vez, se é empiricamente irrefutável, então é pseudocientífica e filosoficamente desinteressante. Na verdade, esta informação é tão interessante como a afirmação de que o mundo é muito grande ou de que nenhum ser humano sabe tudo o que há para saber. Sim, isso é do senso comum. E daí?


"3) não se conhece nenhum processo naturalístico não inteligente pelo qual o DNA pudesse ter surgido;"


Já se está a ver a falácia de palmatória: não se conhece, logo não existe. Esta falácia é tão básica que até tem um nome que qualquer pessoa instruída sabe: apelo à ignorância.

Isto é como se eu argumentasse consigo: ainda ninguém provou que Deus existe, logo não existe. Acho que temos muito boas razões para acreditar que não existe, mas não me passa pela cabeça utilizar um argumento tão basicamente falacioso como este.


"4) logo, o DNA só pode ter tido criado por uma inteligência que transcende toda a capacidade humana (única conclusão empiricamente sustentável)"

O perspectiva confunde delírio argumentativo com justificação empírica. Que Deus lhe valha, pois não imagino quem mais o possa ajudar.

Como vê, o que diz não tem ponta por onde se lhe pegue.

Cordialmente

Anónimo disse...

O meu comentário é lateral aos seus argumentos com os quais me identifico.
No entanto gostaria de lhe perguntar, tendo por base a resposta que deu ao jornal Público ("Se é que existiu alguém chamado Jesus, seria uma pessoa normalíssima."), se admite a possibilidade de Jesus Cristo nunca ter existido.

joão viegas disse...

Cara Palmira Silva,


Estamos de acordo : devemos manter-nos vigilantes, e mais ainda quando algumas tentativas de voltar atras (elas não são de hoje, sempre existiram) "instrumentalizam" as regras de combate às discriminações, pervertendo-as, como me parece ser o caso nos exemplos que refere.

Mas julgo que é errado exercer esta vigilância combatendo as regras anti discriminações com um discurso alarmista sobre a pretensa "ditadura do politicamente correcto" e defendendo que a liberdade de expressão não deve ter nenhum limite (o que é irrealista e assenta numa leitura filosoficamente errada, como disse nos meus comentarios ao texto do Desidério).

Não devemos ter medo dessas regras porque elas radicam nos principios de igualdade e dignidade (nomeadamente os da declaração universal de 1948) que permitem proteger eficazmente a liberdade de expressão. Neste caso, tentei explicar acima como os principios conduzem a separar nitidamente as aguas. Devemos proteger a pessoa contra as agressões fisicas e verbais, incluindo as que atentam à sua dignidade, mas isto não implica, nem nunca implicou, que consideremos ofensivo um ataque àquilo que a pessoa pensa ou crê, ou o escarnecimento dos simbolos com que se identifica. Tratam-se de coisas distintas.

Não digo que esta distinção não levante por vezes problemas delicados. Apenas digo que não é ignorando a dificuldade (que se ultrapassa sempre mediante a aplicação racional dos principios expostos acima) que vamos resolver o problema.

Não é boa tactica ignorar que as regras de combate às discriminações visam proteger a pessoa e a sua dignidade e que não podemos, por isso, disqualificar à partida os argumentos que dizem que elas podem traduzir-se por limitações ao exercicio da liberdade de expressão. Essa atitude apenas da mais argumentos aqueles que pretendem utilizar as regras em causa no mau sentido...

Andrew Black disse...

«As críticas são tanto mais sérias quanto mais se apoiem num conhecimento razoável do que se critica. E vice-versa.» - foi o que afirmei no comentário a que a Palmira se refere a propósito da "abstenção de críticas".

Se é a isso que se refere, é claro que não encerra nenhum propósito "totalitário".
Lamento que haja quem envie hate mail, quem odeie alguém, por causa de divergências de opinião.

Parece-me sensato que as pessoas evitem pronunciar-se sobre o que desconhecem, mas também eu tenho direito a essa opinião.
Aproveito para dizer que acho legítimas as críticas de Desidério Murcho ao discurso homofóbico de JP II, profundamente atentatório da dignidade humana, a meu ver.

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...