sábado, 23 de fevereiro de 2008

ADN e evolução

Por razões que nunca percebi, há algumas pessoas que atribuem uma «mágica» especial ao ADN e se recusam a admitir que esta macromolécula, não obstante o que representa em termos biológicos, é uma molécula como todas as outras. Do ponto de vista químico, há algumas propriedades do ADN que são muito interessantes, propriedades essas que resultam essencialmente das características das bases azotadas que o compõem. Arriscando maçar os nossos leitores, antes de passar a essas características, e porque se fala tanto de ADN no De Rerum Natura, vou tentar descrever em termos químicos o ADN.

O ADN é uma molécula polimérica que muitos designam por polímero. Tal como os polímeros, o ADN é uma cadeia longa obtida a partir de unidades mais pequenas, os monómeros, mas o número de unidades nessa cadeia não é variável. Isto é, enquanto numa amostra de um polímero típico encontramos cadeias de dimensões diferentes, as dimensões e sequência (a ordenação das unidades repetitivas) das minhas, por exemplo, cadeias de ADN são iguais em todas as células do meu corpo.

A unidade fundamental do ADN (ácido desoxirribonucleico) é o nucleótido, o qual resulta da reacção entre uma base azotada, um açúcar (a pentose desoxirribose representada) e um grupo fosfato. Os açúcares reagem com o grupo fosfato nas posições 3' e/ou 5' (representadas a verde) por uma reacção denominada reacção de esterificação, em que é eliminada uma molécula de água. A base azotada reage com a posição 1' do açucar (a azul).

As bases azotadas presentes no ADN e ARN, indicadas na tabela seguinte, ligam-se às riboses pelos azotos indicados a azul.

Purinas
Adenina, A
Guanina, G

Pirimidinas
Citosina, C
Timina, T (ADN)
Uracilo, U (ARN)
citosina
timina
uracilo

Os polinucleótidos são obtidos por condensação dos nucleótidos, em que o grupo -OH de um nucleótido reage com o fosfato de outro nucleótido.

A importância das bases azotadas na determinação das características do ADN traduz-se no facto de que muitas vezes nos referimos aos nucleótidos apenas como bases. A estrutura primária do ADN é a sequência de bases começando no terminal 5', por exemplo, o fragmento representado tem estrutura primária 5'-TAG-3'. Por sua vez, a estrutura secundária do ADN é a sua estrutura tridimensional. Para o ADN, a estrutura secundária mais importante consiste numa dupla hélice antiparelela, i.e, 5' a 3' numa cadeia, e 3' a 5' na outra cadeia, mantida por ligações de hidrogénio entre as bases.

As ligações de hidrogénio estabelecidas entre as bases determinam algumas das propriedades que tornaram o ADN a molécula da vida. Numa dupla hélice não é possível o estabelecimento de ligações de hidrogénio entre bases pertencentes à mesma família por razões estereoquímicas. Os pares purina-pirimidina apresentam dimensões semelhantes mas o par A-G é demasiado volumoso e as distâncias entre o par T-C demasiado grandes para o estabelecimento de ligações de hidrogénio. Assim, uma purina liga-se sempre a uma pirimidina. Por outro lado, as ligações de hidrogénio que é possível estabelecer nos pares adenina/citosina e guanina/timina são muito fracas, pelo que a adenina se liga sempre à timina e a guanina à citosina. Estas interacções definem um par de bases.

Assim, só existem dois pares de bases azotadas no ADN em que a principal diferença estrutural entre os dois pares reside no número de ligações de hidrogénio estabelecidas em cada par: duas ligações de hidrogénio no par A-T e três ligações de hidrogénio no par G-C. Esta especificidade nas ligações de hidrogénio entre as bases ajuda a evitar que ocorram mutações no ADN.

Adenina-Timina
Guanina-Citosina


Guanina - Timina

Fala-se muito na informação guardada no ADN. Mas afinal o que é essa informação e como se transmite? A famosa «informação» do ADN não é mais que a sequência das bases que o constituem. Por exemplo, o ADN dito codificante é responsável pela síntese das proteínas que constituem todos os seres. O processo resume-se, basicamente, na transformação da linguagem codificada do ADN (sequência de nucleótidos) para a linguagem das proteínas (sequência de aminoácidos).

O código de transformação corresponde a sequências de três bases, os codões como o representado. Estes codões são os mesmos para todos os seres vivos e, por isso, dizemos que o código genético é universal. O codão TAG em particular (assim como os codões TAA e TGA) não especificam nenhum aminoácido, mas indicam o fim de uma cadeia. O código genético é degenerado, ou seja, há mais de um codão com o mesmo «significado». A alanina, por exemplo, pode ser codificada por GCT, GCC, GCA e GCG. O grau de degenerescência não é igual para todos os aminoácidos e apenas o triptofano é codificado por um único codão, TGG.

Podemos guardar informação de muitas maneiras e os humanos fazem-no desde os tempos em que decoravam as paredes de cavernas. Mas muitas vezes surgem problemas na comunicação da informação guardada. Quem já alguma vez tenha tentado comunicar utilizando um código, por exemplo o código Morse, apercebe-se que é muito mais complicado do que parece à primeira vista, nomeadamente é quase impossível fazê-lo sem erros. Por isso, o código Morse evoluiu e hoje em dia utilizamos códigos desenvolvidos para evitar erros. De igual forma, podemos armazenar informação em moléculas mas temos de ter cuidado na forma como essa informação é «lida» e «transmitida» pra evitar erros. As moléculas replicadoras originais teriam certamente estruturas químicas diferentes das actuais e foram sendo seleccionadas aquelas cuja constituição química precavia o erro.

No processo de cópia do ADN, a dupla hélice abre como um fecho de correr e a especificidade das ligações de hidrogénio entre as bases assegura a minimização do erro. Mas não é apenas a transmissão de informação que interessa manter sem erros: é necessário garantir que a informação guardada não se altera. Por vezes não conseguimos ler ou não lemos correctamente a informação transmitida pelos nossos antepassados das cavernas porque as espécies químicas que a guardavam, corantes e pigmentos, se degradaram com o tempo, devido a uma enorme variedade de processos químicos e fotoquímicos que dependem do pigmento utilizado e dos ambientes a que foram expostos.

Existem na Natureza muitas mais bases azotadas das famílias das encontradas nos ácidos nucleicos - a cafeína, por exemplo, é uma purina -, porque razão foram estas e não outras bases as seleccionadas? A resposta, como iremos ver, reside na prevenção de erros, na transmissão de informação mas especialmente na sua armazenagem, que advém das propriedades químicas únicas das bases presentes no ADN.

17 comentários:

Unknown disse...

Nunca tinha pensado porque é que as bases do DNA são estas e não outras. Mas faz sentido que a selecção natural tenha excluído as que chumbaram nos erros.

Mesmo assim, acontecem carradas de erros na transcrição.

Também andava a ficar farta da mística do DNA dos criacionistas que infectam o DRN que nem devem sonhar o que é uma base ou um fosfato e regurgitam asneira atrás de asneira quando falam em DNA.

É que é tudo tão sem sentido que nem dá para refutar a não ser assim, com uma explicação detalhada com todos os pontos nos i's.

Aquela do Jónatas de que

O DNA tem uma componente imaterial (informação codificada, código) e material (compostos químicos)

já me estava a complicar com o sistema nervoso! O DNA é um composto químico, nada mais.

A informação do DNA é uma informação material; não tem nada de transcendente nem de místico!

Santiago disse...

Palmira:

A menina esqueceu-se da Metionina (ATG), não foi? É outro aminoácido que só tem um codão...

Unknown disse...

santiago:

A metionina é um aminoácido àparte, como deves saber :) No caso da metionina, o mesmo codão codifica duas coisas.

Como há o codão Stop existe um codão de iniciação (AUG) que indica que a sequência de aminoácidos da proteína começa a ser codificada ali. Este codão condifica o aminoácido Metionina (Met) de forma que todas as proteínas começam com o aminoácido Met.

Santiago disse...

rita:
Ah! Ah! Ah!

Já agora deixo a referência a um paper notável do Sydney Brenner (um dos muitos - papers, não Brenners - que são notáveis).
[http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?db=pubmed&uid=3136396&cmd=showdetailview&indexed=google]

Nele se fala de um dos mais "promíscuos" aminoácidos - codificado por nem mais nem menos do que 6 (!) codões...

Ludwig Krippahl disse...

Palmira,

Tenho uma dúvida acerca disto:

«O ADN é uma macromolécula que alguns designam (erradamente) por polímero. Erradamente porque embora o ADN seja, como os polímeros, uma cadeia longa obtida a partir de quatro unidades ou monómeros, o número de monómeros nessa cadeia não é variável.»

Isso é parte da definição de polímero em Português? É que o Introduction to Organic Chemistry de Streitwieser e Heathcock inclui proteinas nos «polymers». O Genes do Lewin diz que o ADN é um «polymer», e até as enzimas que sintetizam ADN e ARN chamam-se «polymerases».

Nunca vi esta restrição que o polímero tem que ter tamanho variável, mas também nunca vi a definição de polímero em Português. Podes dar uma fonte para isto?

De qualquer forma, em detalhe esta parte está errada:

«as dimensões e sequência (a ordenação das unidades repetitivas) das minhas, por exemplo, cadeias de ADN são exactamente iguais em todas as células do meu corpo.»

Todos os cromossomas (nos eucariotas) têm telómeros, sequências repetidas nas extermidades do ADN, porque o sistema de duplicação do ADN não consegue copiar tudo até ao fim. Os telómeros ficam mais curtos conforme as células se dividem, por isso vais ter ADN de muitos comprimentos diferentes pelo teu corpo (as telomerases regeneram os telómeros, mas não adicionam sempre o mesmo número de repetições, e não actuam em muitas das linhagens celulares).

Palmira F. da Silva disse...

Olá Ludwig:

Um polímero é caracterizado por uma massa molecular média e por uma distribuição de massas, mais ou menos alargada consoante a reacção de polimerização que lhe dá origem.

Os livros (de química) mais antigos incluem proteínas e ácidos nucleicos nos polímeros naturais. Os mais recentes reservam o termo para polímeros como a celulose ou a borracha natural e designam proteínas e ácidos nucleicos como macromoléculas.

Em relação à designação polimerase, bem, nós continuamos a chamar átomo ao átomo apesar de sabermos há uns anitos que é divisível.

Sobre os telómeros, não quiz sobrecarregar o post com demasiados detalhes. De qualquer forma embora espere que os meus telómeros ainda não tenham encolhido demasiado :-) concordo que devia ter usado o neto da minha irmã como exemplo e não eu :-)

Ludwig Krippahl disse...

«Em relação à designação polimerase, bem, nós continuamos a chamar átomo ao átomo apesar de sabermos há uns anitos que é divisível.»

Pelo que percebo isto é diferente. Antigamente definia-se polímero como sendo uma molécula criada pela ligação de monómeros, mas agora exige-se também que a dimensão seja variável. É isso?

Só que não consigo encontrar esse requisito em lado nenhum. Por exemplo, o Principles of Biochemistry, de Horton, Moran e Scrimgeur, de 2005, diz:

«Many biological molecules are macromolecules, polymers
of high molecular weight assembled from relatively simple precursors. Proteins, nucleic acids, and
polysaccharides are produced by the polymerization of relatively small compounds with molecular weights of 500 or less.»
(p 15)

Tens alguma fonte à mão para isso? Estou curioso se será daquelas coisas como dizer "o enzima" ou "a enzima" e afins...

Palmira F. da Silva disse...

Eu suponho que a diferença venha do facto de eu dar química e tu dares bioquímica :-)

Durante muito tempo usou-se como sinónimo polímero e macromolécula. Na altura das supramoléculas, pelo menos para nós químicos, qualquer que seja o prefixo molécula designa uma espécie química bem determinada.

Isto é, quando eu escrevo H2O tenho bem identificada a água. Quando escrevo -(CH2CH2)-n refiro todos os polietilenos, desde os sacos de plástico até ao usado em coletes à prova de bala.

Para além de questões como a cristalinidade, etc., preciso identificar o polímero pelo número médio de meros, o n, e pela dispersão das cadeias. Isto é, num polímero não tenho uma molécula, tenho várias (muitas).

Isso não se passa com uma proteína ou com um ácido nucleico em que posso saber a estrutura primária. Se eu tiver uma amostra de ubiquitina, tirando eventuais impurezas, tenho sempre a mesma molécula.

Se tiver uma amostra de P3HT, um polímero semi-condutor, tenho cadeias de comprimento diferente - e normalmente tenho amostras diferentes consoante o batch.

Ludwig Krippahl disse...

Mas nessaa definição uma molécula nunca pode ser um polímero. O polímero tem que ser sempre um agregado de muitas moléculas que não podem ser todas iguais. Parece-me uma definição estranha.

Será que o que aconteceu foi que o pessoal dos materiais começou a usar «polímero» para referir o material e não as moléculas e, por isso, em vez de dizerem que têm um agregado de polímeros de vários tamanhos dizem que o polímero é um agregado de moléculas de vários tamanhos?

Era para esclarecer isso que me interessava comparar as fontes que definem polímero desta maneira com as que eu conheço.

Mas se a diferença é entre os químicos e os bioquímicos, com o ADN são os bioquímicos que ganham :)

Quidquid latine dictum sit, altum videtur disse...

Também nunca percebi porque há algumas pessoas que atribuem uma "mágica" especial ao Mozart, ao Kant, ao Cantor, ao Borges ou ao Deco. Em termos biológicos, são pessoas como as outras.

Palmira F. da Silva disse...

Ludwig:

Ninguém define um polímero assim :)
Nos livros de QG mais recentes que li, recomenda-se para não haver confusões que se distinga macromoléculas poliméricas como proteínas e ácidos nucleicos de polímeros. O que segue uma norma já antiga da IUPAC a que ninguém ligava mas agora se reconhece ser necessária

Um livro de bioquímica ou biologia que li referia que os polímeros apresentam estrutura primária, secundária, terciária e quaternária :-) Na quaternária, falava em proteínas que eram dímeros, trimeros e tetrâmeros...

Seguia com uma caracterização dos polímeros que excluía aquilo a que chamamos polímeros dessa caracterização.

A tal norma diz:

«Conventionally, the word polymer used as a noun is ambiguous; it is commonly employed to refer to both polymer substances and polymer molecules. Henceforth, macromolecule is used for individual molecules and polymer is used to denote a substance composed of macromolecules. Polymer may also be employed unambiguously as an adjective, according to accepted usage, e.g. polymer blend, polymer molecule.»

Ou seja, podes chamar a uma proteína ou ao ADN uma molécula polimérica mas não lhe deves chamar polímero.

Ludwig Krippahl disse...

Obrigado, Palmira. Acho que já percebo melhor o que se passa.

O IUPAC Compendium of Chemical Terminology define ADN assim:

«deoxyribonucleic acids (DNA)
High molecular weight, linear polymers, composed of nucleotides containing deoxyribose and linked by phosphodiester bonds;»


O mesmo compêndio define polymer de acordo com a recomendação que citaste, «A substance composed of macromolecules», mas não funciona bem com quem lida com antibióticos e esteroides, por exemplo.

A IUBMB continua a usar «polymer» para referir moléculas (exemplo), e essa é a prática aceite em bioquímica. Seria estranho que fosse incorrecto durante 12 anos sem que se corrigisse nada.

Por isso penso que não devias dizer que é incorrecto chamar polímero ao ADN. O ADN é uma molécula formada por "meros", todos os bioquímicos a consideram um polímero, a IUBMB e a IUPAC chamam-lhe polimero e este prefixo poli-qualquer coisa é usado para designar moléculas desde Berzelius, que inventou o termo polimero para designar moléculas feitas pela junção de moléculas mais simples.

Se a malta das polymer sciences quer usar o termo para designar a mistura de moléculas tudo bem, mas isso não torna errado o uso tradicional do termo. Experimenta dizer aos químicos orgânicos que só podem chamar polisulfeto a uma mistura de moléculas diferentes e não podem usar isso para uma molécula e vais ver para onde é que eles te mandam ;)

Palmira F. da Silva disse...

Ludwig:

Não quero ofender a susceptibilidade de nenhum bioquímico nem continuar a discutir lana caprina :-)

Pessoalmente tento seguir tanto quanto possível as normas da IUPAC e esta de facto parece-me muito boa para evitar confusões.

Mas vou alterar a prosa :-)

Acho que a discussão na caixa de comentários elucidará quem tiver dúvidas do género :-)

Ludwig Krippahl disse...

Por mim não te preocupes. Temos coisas mais engraçadas com que guerrear, esta não vale a pena :) Era mesmo só curiosidade.

Ludwig Krippahl disse...

De qualquer forma, obrigado pelo esclarecimento.

Migof disse...

Boa noite,
Eu sei que este post já é algo antigo, mas só me foi necessário vê-lo agora. Gostaria de vos por uma questão, foi-me dito que nem todas as proteínas são iniciadas por Metionina, mas alguém contradisse isto num comentário, gostaria que alguém me assegurasse que o comentário é verdadeiro ou, caso não seja, que me desse um exemplo de uma proteína que não seja iniciada por Metionina, por favor.
Aguardo resposta, tanto neste blogue como no meu.

Migof disse...

Ontem deixei aqui uma pergunta e hoje já tive a resposta, por isso pensei que deveria colocá-la aqui. De facto, todas as proteínas são iniciadas pela Metionina, mas esta pode desprender-se e, por esta razão, nem todas as proteínas contêm Metionina.

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