domingo, 27 de janeiro de 2008

Zarco Sofia

Os estudantes Amândio Abreu, Catarina Andrade, Gonçalo Silva, Soraia Camacho, Tiago Aveiro e Tiago Santos, da Escola Básica e Secundária Gonçalves Zarco (Ilha da Madeira), pediram-me uma entrevista para a sua revista ZarcoSofia, que acaba de ser publicada. Eis a entrevista.

O que é que o levou a estudar filosofia?

Tinha um forte interesse naquilo que hoje sei que são problemas fundamentais; na altura não sabia que eram problemas fundamentais. Apenas me parecia que o tipo de assunto que me interessava não era estudado noutros cursos. Por outro lado, ao ler algumas passagens das Meditações e do Discurso do Método, de Descartes, no 12.º ano, fiquei fascinado com o rigor do raciocínio, com a profundidade dos problemas, com a lucidez do pensamento. E vi que era isso que eu queria fazer.

O que é que um filósofo faz? Pensa nos problemas, dá aulas? Qual a sua actividade?

Não há uma diferença substancial entre o que faz um filósofo e o que faz qualquer outro académico. As nossas actividades dividem-se geralmente em duas partes. A primeira parte é a investigação: estudamos problemas em aberto, publicamos artigos e livros que apresentam contribuições, modestas ou não, para tentar resolver esses problemas. A segunda parte é a actividade lectiva: damos aulas, orientamos estudantes pós-graduados, e, alguns de nós, procuram divulgar a filosofia a um público mais vasto e publicamos livros introdutórios que ajudem os estudantes a conhecer melhor a nossa disciplina.

Qual a principal função dum filósofo?

A principal função de um filósofo é filosofar. Tal como a principal função de um pintor é pintar. Contudo, nem todos os pintores são Picassos, e também nem todos os filósofos são Descartes. Mas, se somos realmente filósofos, e não apenas historiadores da filosofia, a nossa função é fazer filosofia.

Um filósofo tem de se reunir com outros filósofos de tempos a tempos?

Sim, a filosofia não se faz em solidão. É uma actividade profundamente dialogante; precisamos das objecções, sugestões e contra-exemplos dos nossos colegas. Precisamos de colegas que discordam das nossas ideias, para que procurem refutá-las — só assim podemos testar as nossas ideias para ver se realmente funcionam. Isto acontece assim porque nenhum ser humano é infalível e nenhum tem um contacto privilegiado com a verdade. Claro que há filósofos que gostam precisamente de dar essa ideia — que eles têm um acesso privilegiado à verdade — mas isso não passa de lérias.

Acha que a filosofia está a ser bem ensinada em Portugal?

A pergunta pressupõe que se ensina filosofia em Portugal, mas isso é coisa que praticamente não se faz; tudo o que se ensina no nosso país, e mal, é história da filosofia. Felizmente, as coisas estão a melhorar bastante; hoje em dia os estudantes do secundário têm manuais escolares que realmente lhes dão a liberdade para filosofar, ao mesmo tempo que lhes dão os instrumentos para o fazer. Quando eu era estudante, não havia tal coisa. E mesmo hoje, infelizmente, esses manuais são infelizmente minoritários.

O que se pode fazer para reavivar o ensino da filosofia em Portugal?

Talvez o mais importante seja ter vontade de pensar autonomamente, abandonando os constrangimentos da autoridade. Penso que os portugueses sempre tiveram muita dificuldade em fazer filosofia, como aliás a generalidade dos povos do mundo ao longo da história, porque para fazer filosofia é necessário abandonar os argumentos de autoridade e isso é algo difícil de fazer. Os seres humanos aceitam naturalmente a autoridade, mas para fazer filosofia é preciso não aceitar a autoridade — é preciso ter a coragem de discordar de Kant ou de Heidegger ou de Kripke ou seja de que filósofo for. Precisamente porque a nossa cultura não permite tal coisa, tendemos a fugir da filosofia para a história da filosofia — porque na história da filosofia já não se trata de tentar refutar autoridades, mas apenas de fazer o relatório do que as autoridades disseram. Assim, para reavivar o ensino da filosofia em Portugal é preciso começar por dar aos estudantes a liberdade para pensar, para enfrentar as autoridades. O segundo passo fundamental é dar aos estudantes e professores as bibliografias adequadas. Sem bibliografias de qualidade não pode haver filosofia de qualidade hoje em dia, a menos que queiramos reinventar a roda e fazer filosofia como fazia Platão ou Sócrates.

Para o Desidério, o que é a filosofia?

O mesmo que é para a maior parte dos filósofos, exceptuando-se apenas alguns antifilósofos que surgiram sobretudo no séc. XX. A filosofia é a tentativa de resolver problemas fundamentais insusceptíveis de serem estudados cientificamente; tentamos resolver esses problemas usando apenas o pensamento, pois tais problemas não são susceptíveis de serem estudados recorrendo a metodologias empíricas. E argumentamos, argumentamos, argumentamos. Ou seja, procuramos incansavelmente saber se as ideias que propomos são boas, ou se têm deficiências, pontos fracos, aspectos que possam ser melhorados.

Os filósofos têm vida social?

Sobretudo os estudantes de classes sociais que não incluem na sua família professores universitários têm uma grande dificuldade em conceber o que será a vida de um filósofo, ou de um físico ou de um matemático. A vida dos filósofos é como a de qualquer outro académico, e as vidas dos académicos são como as vidas das outras pessoas. Vão ao supermercado, lavam os dentes, namoram, casam, têm filhos. São pessoas como as outras. Só que em vez de passarem oito horas por dia noutro trabalho qualquer, passam oito horas por dia a estudar e a escrever.

A maior parte dos alunos dizem não gostar da disciplina de filosofia mesmo antes de a conhecer. Porque é que acha que isto acontece?

Dado que o ensino da filosofia é em geral muitíssimo deficiente — porque o programa é uma anedota, o que por sua vez estimula manuais de fantasia — os estudantes sabem que os seus colegas mais velhos não gostaram da disciplina. Por isso, têm tendência para já não gostar da disciplina ainda antes de a conhecerem. Felizmente, acontece cada vez mais os estudantes terem uma enorme surpresa, pois há cada vez mais professores a ensinar filosofia bem. De modo que hoje em dia muitos estudantes acabam por preferir a filosofia a qualquer outra disciplina — até porque é a única que lhes dá os instrumentos e a liberdade para pensarem por si mesmos.

Será que a filosofia terá no futuro mais impacto na sociedade?

Não sei. Há razões para pensar que sim. A julgar pelo que consigo observar nos últimos anos, parece-me que a filosofia é cada vez mais vista como muitíssimo importante. Não apenas por causa da importância intrínseca dos seus conteúdos próprios, mas porque um ensino correcto da filosofia dá aos estudantes uma capacidade única para saber pensar. Dada a complexidade crescente do mundo contemporâneo, saber pensar correctamente torna-se cada vez mais importante, pois quem sabe pensar correctamente sabe adaptar-se a um mundo em mudança acelerada.

Segundo a experiência que tem, quais as principais diferenças que encontra entre o ensino da filosofia em Portugal e no estrangeiro?

Depende do estrangeiro. Não devemos pensar que no que respeita à filosofia Portugal é a pior coisa do mundo. Na verdade, o ensino de filosofia na maior parte do mundo é tão mau quanto em Portugal. O que é uma excepção é a filosofia bem feita e bem ensinada e não o contrário. Se nos compararmos com os países onde há mais filósofos (e onde a filosofia é bem ensinada), poderemos ficar desencorajados: nas nossas universidades pouco mais se aprende a fazer do que a repetir mais ou menos o que dizem os filósofos, e mal. Mas não há razão para nos sentirmos diminuídos. Na maior parte dos países e na maior parte da história da humanidade, a maior parte das pessoas pouco mais consegue fazer do que o que nós fazemos, e mal. Por isso, temos de compreender que a qualidade em filosofia e no seu ensino, como em tudo, não é o estado natural das coisas; é o resultado de um investimento sério, de uma dedicação constante e de uma vontade contínua para fazer melhor.

Gostava de dar aulas na ilha da Madeira?

Gostei muito de visitar a Ilha da Madeira e teria muito gosto em dar aulas aí. É impossível não gostar da Madeira.

Qual o problema filosófico que mais se trata mundialmente?

Não há tal coisa. Há uma enorme diversidade de problemas filósofos muitíssimo discutidos hoje em dia, em todas as áreas da filosofia: filosofia da mente, filosofia da linguagem, estética, filosofia da religião, teoria do conhecimento, metafísica, ética, filosofia política...

Por fim, ficamos curiosos com uma pergunta: Gostou de responder à nossa entrevista?

Vocês são o futuro do mundo. Tenho sempre muito gosto em responder às perguntas dos estudantes.

4 comentários:

JDC disse...

De facto, mesmo sendo estudante de uma disciplina tão matemático-física como é a engenharia mecânica, a filosofia teve um impacto enorme na minha vida. Ensinou-me o que era pensar, as regras e como desmontar argumentações. Enfim, permitiu-me crescer e ver o mundo com outros olhos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Apenas gostava de saber quem são os "anti-filósofos" do século XX!
De resto, como diz, o ensino da filosofia é mau em Portugal, devido ao facto dos professores não serem filósofos. O espírito crítico e o pensamento não se cultivam sem conteúdos objectivos de conhecimento. Sem isso é tudo mera opinião. O que sucede... :)

Manuel Traquete disse...

Sou estudante de Filosofia no 10ºAno. Tenho de confessar que, antes de começar a estudar a disciplina, tinha uma ideia um pouco distorcida acerca da mesma (a ideia que o homem comum costuma ter acerca da disciplina). Mas rapidamente essa ideia errada foi eliminada, e, neste momento, adoro Filosofia, também graças ao meu professor,Dr. Luís Gottshalck, que me motiva imenso para a disciplina, além de me conceder muita liberdade para exprimir os meus pontos de vista.

marcia adriana disse...

Parabéns aos alunos! Obrigada ao prof. Desidério Murcho q tão positiva/te tem contribuido para a disseminação , o estudo e apreciação da filosofia e q sempre tão bem recebe os que o procuram.
Já era sua admiradora e agora ainda mais. Obrigada professor Desidério.

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