segunda-feira, 7 de janeiro de 2008
LUIZ PACHECO (1925-2008)
Morreu Luiz Pacheco, um dos nossos maiores prosadores do século passado. A Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra está desde há meses a preparar uma homenagem sob a forma de exposição ("Luiz Pacheco e as edições Contraponto"), que terá lugar em Março próximo, no quadro da Semana Cultural da Universidade. Em sua memória, transcrevo dois trechos de "O Teodolito" (tenho em mãos a edição da Rolim de 1985). No primeiro, a propósito do instrumento que dá o título ao conto, descreve a sociedade humana:
"Ora o que é um teodolito? Vou ver; diz assim o meu dicionário: "instrumento astronómico e geodésico que serve para medir directamente as distâncias e as alturas zenitais". Retenhamos isto: que serve para medir as distâncias. E o mais importante vem agora: directamente. Quer dizer, rapidamente, quase imediatamente, num clin d'oeil. Gosto deste francesismo: por isso o emprego. O nosso trivial olhadela ou piscadela) exprime qualquer coisa de namorador, de intencional. sim, mas distraidamente, superficialmente, sem causalidade forte. Miradela ainda é pior, soa mal, deve ser (é?) nome de terra lá para o Norte. Olhadura e olhadeira parecem nomes de maleitas de animais, carrapatas de jericos a escorrerrem pus e sangue, salpicadas de varejeiras peganhentas. Mas estou-me a perder noutra história.
O que são as distâncias? São as realidades. Ou por onde estas se definem e singularizam. Como não pode estar tudo no mesmo sítio, o caos inicial, as pessoas e as coisas afastam-se, tendem a fugir para os seus lugares próprios, com as suas fórmulas de conduta rigorosamente necessárias e próprias. Algumas voltam para trás, enrodilham-se; outras vão alargando cada vez mais a sua órbita, fogem às origens, rodopiam num turbilhão, e nunca se pode prever onde irão acabar. Quero eu dizer: parar. Parar acabadas. Determinar, primeiro, onde se está (é o mais doloroso, porque a humana fraqueza é não estar sempre no mesmo sítio, é mudança, é ir resvalando). Depois, e só depois é possível fazê-lo, saber exactamente e depressa (nisto os segundos contam por êxitos ou fracassos) onde estão os outros. Avaliar a sua capacidade de ataque e defesa, preservando o seu alarme, medir a velocidade da sua rotação, conhecer as distâncias que nos separam. Chama-se, pode chmar-se a isto, estar (ou andar) oprientado."
Pacheco foi um daqueles que fugiu às origens, rodopiou num turbilhão, sem nunca se poder prever onde iria acabar. No segundo trecho de "O Teodolito", Pacheco, que parou só agora, descreve a morte:
"Naquela altura morria muita gente de tuberculose, hoje é de cancro ou do coração, morre-se de qualquer coisa, tanto faz, vivemos entre mortos, gente que vai morrer e sabe que vai morrer e gente que já morreu, gente morta ou provavelmente morta ou morta daqui a bocado, amanhã, hoje ainda talvez, morte súbita, morte zás! e adeus... os mortos caem em todos os lados, caem-nos em cima, apertam-nos, já não metem medo, são tantos, há muitos, há cada vez mais companhia de mortos, tornam-se maçadores, abafam o ar. Aparecem-nos às vezes com um sorriso, fingem bem, mas debaixo dos fatos vem um cheiro que não engana, os olhos são vazios e lúcidos, já não querem ou esperam nada, estão mortos por detrás da gravata.
(...) Vamos criando distâncias pela vida fora, vamos morrendo uns para os outros. E também vamos morrendo dentro de nós. Dou os bons-dias a tipos que já matei; passo na rua por alguns satisfeitos fantasmas que se espantam (gritam-me: Ó pá, inda és vivo?) quando me vêem respirando e mexendo dentro da minha farpela pobre. Dormi mais de dez anos com o cadáver da minha mulher e na mesma cama. Jamais nos conhecemos, fomos sempre dois mortos um para o outro. São coisas que acontecem."
Luiz Pacheco caiu-nos em cima. Que descanse em paz!
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1 comentário:
Por o nosso destino ser o de "cadáveres adiados que procriam" (Fernando Pessoa)-ou não procriam! - , ou como disse, salvo erro, Ruy Barbosa, "a minha morte nasceu no dia em que eu nasci", a angústia da morte continuará a ser mote para textos como este que angustiam por denunciar a fragilidade da vida humana. É este um exemplo de rara e macabra beleza.
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