quinta-feira, 9 de agosto de 2007

A DESCRENÇA EM DEUS NA LITERATURA PORTUGUESA

Tradução em português da minha entrada, com o título de cima, incluída, a convite do editor, na “The New Encyclopedia of Unbelief”, Prometheus Books, Tom Flynn (edição) e Richard Dawkins (prefácio). Esta enciclopédia de 800 páginas sucede à "The Encyclopedia of Unbelief" (Prometheus Books, 1985), editada por Gordon Stein, que entretanto faleceu. O seu lançamento está anunciado para Agosto.

Embora a palavra descrença tenha um sentido mais amplo, encaramo-la aqui como descrença religiosa: falaremos de descrença em Deus. Sendo o sentimento religioso em Portugal muito antigo e bastante forte (ele expressa-se pela larga adesão à Igreja Católica) e encontrando-se esse sentimento reflectido na literatura portuguesa desde os seus primórdios, apresentamos aqui um resumo do modo como a descrença surgiu e permaneceu na literatura portuguesa ao longo dos séculos XIX e XX.

No século XIX, o Romantismo português, como na Europa em geral, caracterizou-se por um retorno à religiosidade, num movimento de reacção ao racionalismo que tinha caracterizado o século das luzes. Alguns autores românticos exaltaram os valores morais do Cristianismo, enquanto outros preferiram o lado estético e sentimental da religião. Contudo, esse fervor religioso não impediu os primeiros escritores e talvez os maiores escritores românticos portugueses, Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877), de manifestarem a sua independência em relação ao pensamento da Igreja Católica como instituição e de porem em causa o poder da Igreja. Sendo ambos católicos mas ao mesmo tempo liberais, contribuíram para a secularização da cultura e para a separação do Estado e da Igreja: Garrett, mais mundano, defendeu a modernização dos costumes, desligando-se de qualquer forma de conservadorismo católico, e denunciou abertamente a corrupção do clero e a aliança deste com o poder conservador (ver o romance histórico O Arco de Sant’Ana). Por seu lado, Herculano defendeu publicamente o casamento civil e questionou a historicidade de certas posições doutrinárias oficiais (nomeadamente, o dogma da Imaculada Conceição e o milagre de Ourique, segundo o qual no início da nacionalidade uma grande batalha contra os mouros tinha sido ganha por intervenção divina); no seu romance Eurico o Presbítero (que, na sua época, foi um autêntico “best-seller”), criticou o celibato como condição obrigatória do magistério espiritual. Um outro escritor romântico católico bastante conhecido foi Camilo Castelo Branco (1825-1890), autor de Amor de Perdição: teve uma vida pouco de acordo com a doutrina católica e envolveu-se em várias polémicas com a Igreja.

A literatura da segunda metade do século XIX foi profundamente influenciada pelas correntes positivistas então emergentes e, por isso mesmo, declarou-se adepta da razão científica, iconoclasta e jacobina. As figuras mais marcantes desta geração, conhecida como a “geração de 70” e que provocou uma polémica contra os românticos em 1865 empreenderam uma intensa campanha anti-clerical, em textos literários e ensaísticos de grande divulgação: os romances realistas daquele que é provavelmente e ainda hoje o maior prosador da língua portuguesa Eça de Queirós (1845-1900) - O Crime do Padre Amaro e A Relíquia - , os poemas satíricos de Guerra Junqueiro (1850-1923) - A Velhice do Padre Eterno - , e as crónicas de Ramalho Ortigão (1836-1915) e de Fialho de Almeida (1857-1911) são os exemplos mais marcantes. Mas houve outros, como Antero de Quental (1842-1891), o poeta e filósofo que, nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, incluiu a influência nefasta da Igreja, e Oliveira Martins (1845-1894), o historiador autor de Portugal Contemporâneo. Todos eles defendiam uma sociedade laica e progressista, em que a razão, a ciência, a moral social substituíssem completamente os dogmas e a pedagogia religiosa. Não punham em causa a figura histórica de Jesus Cristo nem a sua lição evangélica, mas consideravam obsoleta e alienante e a influência da religião católica em geral e muito em particular do clero na vida social e política.

Na história da literatura portuguesa, como de resto na história da literatura em geral, é nítida a alternância de correntes estéticas e filosóficas. Assim, o forte movimento positivista teve a sua reacção dialéctica nos anos seguintes: nas correntes neo-românticas "fin-de-siècle", observa-se um certo retorno aos valores religiosos, à espiritualidade mística e às tradições da cultura nacional.

O século XX haveria de trazer a modernidade. Os poetas do chamado “Primeiro Modernismo”, nos anos 10 e 20 do século XX, que inclui grandes poetas portugueses como Fernando Pessoa (1888-1935), autor de uma única obra publicada em vida, o poema esotérico-patriótico Mensagem, e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), autor de A Confissão de Lúcio, são relativamente indiferentes em matéria de religião. Contudo, o “Segundo Modernismo”, nos anos 30 e 40, que inclui prosadores e poetas como José Régio (1901-1969), autor de Poemas de Deus e do Diabo, e Miguel Torga (1907-1995), autor de Contos da Montanha, traz um deísmo humanista que tem de novo a marca de alguma contestação clerical, embora não tão exacerbada como nos realistas do final do século XIX.

Fernando Pessoa, atendendo à sua originalidade e à dimensão que a sua fama atingiu a nível mundial, merece uma referência especial. Em Pessoa reúne-se uma série de heterónimos, como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alexander Search, etc., com personalidades e estilos completamente distintos. Por exemplo, Alberto Caeiro é um guardador de rebanhos, contemplativo e neoclássico, enquanto Álvaro de Campos é um engenheiro naval, sensacional e moderno. Os dois têm uma posição céptica perante Deus e a religião. Caeiro admira a Natureza em vez de Deus e Campos admira os feitos da ciência e a técnica. Escreveu Caeiro:

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...


E escreveu Campos:

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Do ponto de vista de crença pessoal, Fernando Pessoa era dado ao esoterismo: em particular, cultivava a crença na astrologia.

Nos escritores que se seguiram, no que toca ao tema da descrença religiosa, dois nomes merecem particular atenção, Vergílio Ferreira (1916-1996) e José Saramago (nascido em 1922).

Vergílio-Ferreira, não muito conhecido fora de Portugal (tem só traduções para castelhano e francês), é o autor de Manhã Submersa, Aparição e Para Sempre. É um escritor filósofo, simpatizantes das ideias existencialistas de Jean-Paul Sartre, e que se declara ateu depois de uma experiência algo traumatizante durante a infância num seminário católico (que ele aliás retrata no seu livro Manhã Submersa). Os seus personagens, fiéis ao autor, declaram a morte de Deus: apenas há o homem, com as suas angústias, muito em particular a angústia da morte. Escreveu Ferreira:

Ninguém pode ser em vez de nós – nem Deus.

O único substituto de Deus poderá, quando muito e segundo ele, ser a arte.

Por seu lado, José Saramago, Prémio Nobel da Literatura em 1998 (é, até hoje, o único português laureado com o prémio Nobel da literatura) é o autor de Memorial do Convento (sobre a construção de um grande mosteiro barroco, onde uma das personagens, Blimunda, tem poderes mágicos e, com o maneta Baltazar e um padre procurado pela Inquisição, acabam por fugir num balão), O Ano da Morte de Ricardo Reis (sobre o regresso de Ricardo Reis à cidade de Lisboa depois da sua morte), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (um relato da vida de Jesus na primeira pessoa, no conteúdo e no estilo contrário à tradição bíblica), Ensaio sobre a Cegueira, etc. Saramago declara-se descrente em Deus e a sua descrença estende-se muito além do domínio religioso. Pode até dizer-se que é um pessimista radical, uma vez que pensa que o homem é o pior inimigo de si próprio. É também conhecida a sua posição céptica sobre as possibilidades da ciência e da tecnologia contribuírem para o bem-estar da humanidade. As suas posições laicas estão bem patentes no romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que quando saiu causou bastante polémica em Portugal. O seu pensamento contrário a qualquer Deus encontra-se bem marcado no texto “Factor Deus”, que publicou na imprensa mundial pouco depois dos acontecimentos das Torres Gémeas, em Nova Iorque, em 2001:

Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel.

Para Saramago, a crença em Deus não só não é a solução para os problemas do homem como pode ser a fonte dos maiores males.

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA
(Apenas obras com tradução em língua inglesa)

Queirós, Eça, Crime of Father Amaro: scenes from the religious life; translated and with an introduction by Margaret Jull Costa, New Directions Publishing Corporation, 2003.

Pessoa, Fernando, The keeper of sheep / by Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) ; translated by Edwin Honig and Susan M. Brown, New York, N.Y.: Sheep Meadow Press, 1986.

Pessoa, Fernando, Selected poems by Fernando Pessoa, including poems by his heteronyms: Alberto Caeiro, Ricardo Reis [and] Alvaro de Campos, as well as some of his English sonnets and selections from his letters. Translated by Edwin Honig. With an introd. by Octavio Paz, Chicago, Swallow Press, 1971.

Pessoa, Fernando, Selected poems. Edited and translated by Peter Rickard, Austin, University of Texas Press, 1972.

Torga, Miguel, Tales from the Mountains, translated by Ivana Carlsen, QED Press, 1991.
Saramago, José, Baltasar and Blimunda ; translated from the Portuguese by Giovanni Pontiero, San Diego : Harcourt Brace & Co., 1998.

Saramago, José, The year of the death of Ricardo Reis ; translated by Giovanni Pontiero, San Diego : Harcourt Brace Jovanovich, c1991.

Saramago, José, The Gospel according to Jesus Christ ; translated from the Portuguese by Giovanni Pontiero, New York : Harcourt Brace & Co., c1994.

Saramago, José, Blindness : a novel ; translated from the Portuguese by Giovanni Pontiero, London : Harvill Press, 1997.

Saramago, José, The factor God, translated by George Monteiro, http://www.plcs.umassd.edu/plcs7texts/monteiro.doc

7 comentários:

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

Exmo Carlos Fiolhais
Sem ofensa, permita-me observar que o título A Descrença na Literatura Portuguesa - é problemático.
Poderia eventualmente resolver-se sendo
''Descrença e Literatura Portuguesa'', por exemplo.
Cumprimentos

Anónimo disse...

The New Uncyclopedia of Unbelief?

Uncyclopedia?

Anónimo disse...

Excelente referência. Vou consultar.

Valter Boita disse...

Não conheço texto que Saramago escreveu por ocasião dos ataques às Torres Gémeas. A confiar na citação desse texto, não é verdade que Nietzsche tenha afirmado que se Deus não existisse, tudo seria permitido. Trata-se antes de uma afirmação de Dostoievski presente em "Os irmãoes Karamazov" e noutros textos do autor.
Será um atentado intelectual ao pensamento de Nietszche fazer este tipo de afirmação que contradiz o seu pensamento filosófico.

Carlos Fiolhais disse...

Ja emendei o título para ficar mais claro. E a tgralha óbvia no título do livro. Quanto à referência de Saramago a Nietzsche, ela está no texto original como se poderá ver pelo limk. O escritor poderá não ter verificado a citação...
Carlos Fiolhais

Valter Boita disse...

Prof. Fiolhais, obrigado pelas suas correcções. Na verdade, referia-me ao erro cometido por Saramago e não por si.

Marco Oliveira disse...

Carlos Fiolhais,
Se o anti-clericalismo é a marca dominante do Crime do Padre Amaro, consegue explicar a personagem do Abade Ferrão? Seria a influência desta personagem igualmente “obsoleta e alienante”?
E já agora: Se Eça era assim tão anti-clerical e descrente, porque razão uma personagem como Fradique Mendes passa um ano na Pérsia a assistir ao nascimento do Babismo? E porque razão ficou o interlocutor de Fradique tão fascinado com o Bab?
Seria o Eça um anti-clerical, ou simplesmente uma pessoa capaz de apontar os aspectos bons e maus da religião?

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