A hipocrisia ou duplicidade intelectual parece desempenhar um papel importante na economia cognitiva de muitos seres humanos. Uma hipótese interessante para investigação em história será ver até que ponto a duplicidade intelectual tornou possível alguns dos maiores horrores da humanidade. Seria igualmente interessante investigar empiricamente, em psicologia cognitiva, o papel desempenhado por esta miserável prática na economia mental e comportamental das pessoas.
A duplicidade ou hipocrisia intelectual é uma forma particular de insuficiente honestidade intelectual e insuficiente amor à verdade — ou, na versão cínica do pós-modernismo, do perspectivismo e de outras correntes de pensamento, um desprezo pela própria categoria da verdade, substituindo-a desavergonhadamente pela categoria do interesse pessoal, de classe, de grupo, etc. A duplicidade intelectual caracteriza-se por rejeitar as próprias categorias de prova e argumento, ou de racionalidade e verdade, quando a aceitação de tais categorias conduz à negação óbvia das nossas crenças mais queridas — ao mesmo tempo que se aceitam tais categorias quando ajudam a sustentar essas mesmas crenças. Assim, a duplicidade intelectual permite racionalizar qualquer convicção, por mais que pesem contra ela argumentos ou provas. Uma pessoa pode deste modo sustentar o seu conjunto de crenças, sem ter de se dar ao trabalho de o rever.
Mas as crenças não são meras ficções causalmente inertes. Pelo contrário, são a origem causal dos nossos comportamentos. Daí a minha hipótese histórica, pois parece-me que pelo menos algumas das maiores misérias históricas da humanidade se baseavam não apenas em falsidades, mas em mentiras: falsidades que os seus carrascos estavam em posição de ver que eram falsas, se não usassem a sua duplicidade intelectual para justificar o injustificável e persistir no disparate. Pense-se na prática nazi de recusar os resultados científicos que não lhes interessavam declarando que eram “ciência judia”, ou na recusa dos marxistas em reconhecer que a teoria biológica de Lysenko era falsa, ou na recusa dos cientistas e religiosos do tempo de Galileu em aceitar os seus resultados. Hoje em dia, os criacionistas, os partidários da astrologia, da New Age, etc., seguem pelo mesmo caminho. E pelo menos algumas formas de vivência religiosa são plenas de duplicidade, declarando-se que a religião e a fé estão para lá da racionalidade, para logo de seguida se começar a apresentar pretensas “provas” da verdade de uma determinada religião — como os milagres, ou as afirmações da Bíblia, ou registos arqueológicos.
Em matérias mais ou menos privadas e algo triviais a duplicidade intelectual não terá efeitos sociais e culturais perversos. Mas se pensarmos nos grandes crimes da humanidade, mesmo os mais recentes, como as guerras anunciadas dos norte-americanos em territórios alheios, é arrepiante pensar que uma dose de honestidade intelectual, tanto de dirigentes como do público em geral, poderia bloquear grande parte das misérias, sofrimentos e injustiças humanas.
Afinal, trata-se apenas de assumir plenamente as consequências destas trivialidades: uma falsidade não se torna verdadeira por acreditarmos fortemente e sinceramente nela, e nós não somos omniscientes — pelo que temos de pensar e investigar cuidadosamente para ver se o que pensamos ou sentimos que é verdade é realmente verdade. Mas isto só é possível se estivemos dispostos a abandonar os mecanismos da duplicidade intelectual, que permitem continuar a sustentar o insustentável até ao fim dos tempos.
Se a minha hipótese estiver correcta, é ainda mais urgente estimular um ensino de qualidade, que dê não apenas aos estudantes informação fidedigna e instrumentos de pensamento crítico, mas que também lhes transmita virtudes epistémicas fundamentais: amor pela verdade e honestidade na investigação e no pensamento.
domingo, 19 de agosto de 2007
Duplicidade intelectual
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48 comentários:
Desidério, tocaste aqui em dois pontos, que para mim são extremamente importantes:
- Na atitude e no exemplo, sem razão de Ser, o de continuar-se a sustentar o que é completamente insustentável
- E a urgência de Ensinar-se com Verdade e de forma exemplar de modo a Aprender-se a Saber Pensar.
Um abraço
Alice
Meu Caro Desidério
Não sei se pode chamar-se duplicidade intelectual aos comportamentos aqui referidos. Para mim trata-se de pura desonestidade, que entra no plano meramente ético do agir por conveniência. Quando Bismarck forjou o famoso telegrama que provocou a guerra com a França, estava a repetir momentos históricos do passado que se mantêm no presente, como no caso das malogradas armas que não havia no Iraque. E há quem diga até que o ataque a Pearl Harbor foi resultado de provocações americanas para dar aos EUA um “casus belli”... que salvou a Europa.
O nosso jornalismo é pródigo em comportamentos deste tipo. Eu mesmo já fui vítima de coisas do género. Por exemplo o seguinte. Tendo feito parte do primeiro governo (nomeado) dos Açores, aquele que preparou as primeiras eleições regionais, um jornal de Ponta Delgada disse que eu queria admitir na minha secretaria (equivalente às actuais direcções regionais) três elementos ligados ao PS. Por acaso havia, além de duas “vogalias” do PS (com várias secretarias cada uma), quatro do PPD, só com gente ligada a este partido. Eu não tinha a mínima intenção de admitir ninguém porque sozinho fazia todo o meu serviço. Mandei uma nota para o jornal a dizer que nem me dava ao trabalho de desmentir, porque o tempo provaria que a informação era falsa. O director do jornal deu como resposta que, se não tivesse levantado a questão, os três indivíduos iriam mesmo ser admitidos.
Duplicidade intelectual ou pura e simples desonestidade?
Lá está o Daniel de Sá com histórias longas de auto-promoção sem nada a ver com o qie se discute...
Quando andei envolvida na campanha do referendo deu para apreciar a duplicidade intelectual dos católicos e a forma sem espinhas como recorrem à mentira descarada.
Fartei-me de calcorrear o país a desfazer as mentiras biológicas que os pró-prisão apresentavam como verdade. Os pró-prisão eram todos católicos, a maioria Opus Dei ou Comunhão e Libertação e todos diziam as mesmas mentiras coleccionadas num powerpoint cheio de apelo à emoção e mentiras.
Nas grandes cidades as mentiras eram mais subtis, mas no interior fazia impressão ver como a beatada mentia com quantos dentes tinham: até dizer que um embrião tinha dentes!
Passavam imagens de fetos do trimeiro trimestre a dizer que eram embriões de 10 semanas, diziam que os embriões sentiam dor e mais um ror de mentiras.
Mas a duplicidade mental e a falta de ética da ICAR podem ver-se bem em alguns coisas que eu acho que são sofismas e que gostava que o Desidério comentasse.
Sofisma nº 1- Duplo efeito:
Como muitos católicos não percebem como uma Igreja que não condena a pena de morte e que aceita como moral a legítima defesa contra um agressor injusto condene como crime moral grave o aborto quando o feto é um agressor injusto a Igreja inventou o duplo efeito.
Este diz que é aceitável e ético o efeito secundário de uma acção directa promovida por uma razão moral.
Trocado por miúdos: numa gravidez ectópica é um crime horrível fazer uma incisão na trompa para tirar o feto ou dar um comprimidozito mas é completamente moral mutilar desnecessariamente a mulher e tirar-lhe a trompa.
Em cada 40-100 gravidezes há uma gravidez ectópica, uma gravidez extra-uterina, frequentemente uma gravidez em que o embrião se fixa nas trompas de Falópio. O embrião não tem qualquer hipótese de sobrevivência e a mulher corre risco certo de morte se a gravidez não for interrompida.
Também se a mulher tem um cancro no útero que se não for removido antes da viabilidade do feto causará a morte da mulher é «moral» remover o útero para evitar a morte da gestante. Mas é um crime horrível remover só o embrião sem mutilar a mulher.
Já se a mulher tem um cancro noutro sítio é sempre um crime abortar. A mulher deve fazer quimio ou radioterapia grávida e esperar que o embrião/feto morra do tratamento.
Todos os hospitais e restantes instituições de saúde católicas, pagas com o nosso dinheiro, regem-se por isto.
Eu sou bióloga, não sou bioética mas isto parece-me anti-ética. Peter Singer diz o mesmo:
A distinção entre efeito directo intencional e efeito indirecto é um artíficio. Não podemos evitar responsabilidade simplesmente dirigindo a nossa intenção para um efeito em vez do outro. Se prevemos ambos os efeitos devemos assumir responsabilidade por todos os efeitos prevísiveis das nossas acções.
Estando fartinha que a beatada me acuse de ser imoral ou ter uma moral «utilitária» porque sou ateia, andei à procura nos documentos do Vaticano de morais «utilitárias». Há muitas, mas esta é a melhor.
Em relação ao aborto, isto é em relação às mulheres, seres humanos de segunda para a ICAR
Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social.
Lá arranjaram o duplo efeito para deixar uma saída às mulheres que não se querem suicidar. As mulheres são fracas, nem todas têm a "força moral" da santinha Gianna Beretta Molla, canonizada com o título Mãe de Família em recompensa pelo seu suicídio.
O problema é que há vacinas feitas a partir de fetos abortados, como a vacina da rubéola. Não há outra forma de produzir esta vacina. O Vaticano não pode proibir a vacinação contra a rubéola, hepatite, sarampo, poliomelite, etc. porque ninguém lhe ligava.
Solução: Manda os católicos lutar contra as empresas que produzem vacinas que são crimes morais, e lutar contra a investigação em células estaminais, outro crime moral grave.
Mas podem à vontadinha usar tratamentos obtidos por crimes morais graves - por enquanto ainda não arranjaram uma desculpa para tratamentos com células estaminais porque ainda não esses tratamentos, mas arranjam de certezinha quando for preciso.
A obrigação moral de evitar colaboração material passiva com um «crime»(ser vacinado com uma vacina obtida criminosamente) não é obrigatória se existir um inconveniente grave. Como?
Os criminosos dos cientistas que disponibilizam tratamentos "imorais" exercem «coerção moral da consciência dos pais que são forçados a agir contra a sua consciência ou então pôr em risco a saúde dos seus filhos».
DIzem que "Esta é uma escolha alternativa injusta, que deve ser eliminada tão cedo quanto possível" mas que os pais podem vacinar os filhos à vontade e sem problemas morais nem éticos com vacinas obtidas de forma criminosa.
Parece a resposta do bispo mexicano Ramon Godinez ao porta-voz do governo, Ruben Aguilar, que avisou que a ICAR não devia aceitar dinheiro do tráfico de droga. Os traficantes de droga no México são muito católicos e contribuem generosamente para a Igreja.
O bispo disse que o dinheiro pode ter origem criminosa e ser sujo inicialmente mas "transforma-se" mal entra na Igreja. E depois "Se eles têm dinheiro têm de gastá-lo; não percebo porque se fez um tal escândalo disto".
Desidério:
Tens escrito um conjunto de artigos sobre este tema que é verdadeiramente excelente!
Muito obrigado!
Ah! E nunca percebi, com tanto sofisma à disposição, porque é que a ICAR continua a proibir o uso do preservativo, mesmo no caso de um casal em um está infectado.
Podiam usar o duplo efeito: porque é que não é aceitável e ético o efeito secundário (contracepção) de uma acção directa promovida (usar preservativo) por uma razão moral (não contaminar a mulher ou o marido)?
Será mais uma forma de combate à tal "ideologia do sexo", contra a tal "tríplice concupiscência que São João recorda, ao falar da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da soberba da vida" denunciadas por Ratzinger?
Porque «O prazer sexual nunca ocorre sem pecado», papa Gregório Magno dixit, convém desencorajar as pessoas de terem sexo?
Os fundamentalistas cristãos americanos opõem-se à introdução da vacina contra o Human papillomavirus ou HPV e opõem-se ao desenvolvimento de vacinas contra a SIDA, porque os adolescentes deixariam de ter medo de serem contaminados.
«Vacinar jovens mulheres contra o HPV pode ser potencialmente perigoso, porque elas podem ver isso como uma licença para praticarem sexo pré-marital» Bridget Maher da Family Research Council
«Os conservadores religiosos acreditam que o uso massivo da vacina HPV encoraja os adolescentes a desenvolverem um comportamento sexual inaceitável» Reginald Finger, Focus on the Family
Penso que este conceito de duplicidade intelectual do Desidério coincide com o conceito de “dissonância cognitiva”, termo introduzido pelo psicólogo americano Leon Festinger (1957), tendo chamado a atenção para o impulso que as pessoas têm para negar e dar a volta aos argumentos quando incorrem em “dissonância cognitiva”. Quando uma pessoa incorre numa incoerência, numa contradição ou num absurdo cognitivo, dentro de um determinado sistema de crenças, caindo portanto na “dissonância cognitiva” (ou na duplicidade intelectual), adopta uma estratégia de tal modo inesperada que o leva a produzir argumentos muitas vezes bizarros, só para manter um determinado grupo de crenças intacto.
É de facto um fenómeno frequentemente encontrado na clínica médica e psiquiátrica, e perceptivelmente crescente nos últimos tempos, também confirmado por alguns psicólogos clínicos.
as crenças não são meras ficções causalmente inertes. Pelo contrário, são a origem causal dos nossos comportamentos. (...) pelo menos algumas das maiores misérias históricas da humanidade se baseavam em falsidades que os seus carrascos estavam em posição de ver que eram falsas, se não usassem a sua duplicidade intelectual para justificar o injustificável e persistir no disparate
Assino por baixo!
É pena que os seguidores das instituições que criaram alguns carrascos da História não reconheçam que as crenças que os produziram não mudaram. Essas instituições continuam a produzir falsidades com base nessas crenças que só a duplicidade intelectual ministrada com as crenças não deixa reconhecer.
Falo também da ICAR, e não é perseguição, o catolicismo é a religião maioritária em Portugal, interessa discutir a duplicidade intelectual do catolicismo por isso.
B16 acha que impor a todos as posições da Igreja "não se trata de impor aos não-crentes uma perspectiva de fé, mas sim de interpretar e defender os valores radicados na natureza mesma do ser humano".
Condena o "relativismo moral" da sociedade moderna mas ao mesmo tempo que condena o aborto em nome da defesa da vida mostra-se compreensivo para com a pena de morte. E mostra-se mesmo muito compreensivo com padres pedófilos.
Os 'valores morais universais e absolutos' que a ICAR defende são apenas a supremacia das posições do Vaticano sobre todas as outras, com os golpes de rins regionais e temporais que forem necessários.
Como 'não há salvação fora da Igreja Católica' vale tudo, mesmo tirar olhos!
Uma duplicidade já discutida é a questão das excomunhões.
Partindo das premissas da ICAR
1. Não há salvação fora da Igreja Católica;
2. "A ICAR é uma comunidade de amor" e uma das factas do amor é o perdão.
porque há excomunhões? Na lógica da ICAR uma excomunhão é negar a possibilidade de salvação, é condenar às profundas do Inferno os excomungados. Isso nega a premissa que a ICAR é uma igreja de amor, nega aquela coisa que o JC perdoou até aos seus algozes. Se JC perdoou os seus assassinos porque é que há tanta coisa imperdoável para a Igreja, sua herdeira legítima?
Haverá mais pecados imperdoáveis para além da blasfémia contra o Espírito Santo?
Mas aquele que blasfemar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é réu de pecado eterno. (Mar. 3:29)
Negar factos:
O Wikipedia Scanner permite saber que organização está por trás de mudanças na Wikipedia por meio do IP.
O Wikipedia Scanner descobriu que computadores do Vaticano foram usados para mudar o conteúdo de páginas inconvenientes.
O director dos serviços de informação da Santa Sé, Pe. Federico Lombardi, negou que o Estado do Vaticano tenha sido o responsável.
"no Vaticano há muitos computadores e é possível que alguém possa ter tido acesso à Wikipédia".
"A Santa Sé, contudo, não tem obviamente nada a ver com isso".
Pergunto-me: quem tem acesso aos computadores do Vaticano?
O Arcebispo Dominique Mamberti justificou a recusa da Santa Sé em renunciar ao seu estatuto diplomático porque "a Santa Sé está sempre ao serviço da salvação integral do homem, segundo o mandato recebido de Cristo"
Pergunta: A Santa Sé precisa de imunidade diplomática para cumprir esse mandado? Ou o mandato não foi gralha e precisam de imunidade para fugir aos mandatos judiciais?
Foram aprovados numa cerimónia no Vaticano os estatutos dos Franciscan Missionaries of Mary.
Objectivos do grupo: lutar contra o secularismo. Como: instilando o medo do Inferno
Q: What problem did you see?
Father Martín: Secularism. The work I have founded is oriented directly against this evil that uproots God from man's heart and, as a consequence, casts God and all religious matters away from society.
In the last few years, a suicidal perversion has come about in the message transmitted by certain ecclesial persons.
They have stated that hell does not exist or that it is empty, and that everyone goes to heaven. This is not so, but most people now believe it.
Most people that acted, stirred either by fear or convenience, have suddenly been told that, no matter what they do, they will get the same payment. They have ceased to be driven by religious motivations.
These motivations, which were so strong in the past, have proved ineffectual, particularly in countries in which the standard of living has improved considerably and there is not much material suffering.
In this way, the crisis in the belief in heaven and hell has accentuated secularism and has led people to forget about God, at least in everyday life.
Pergunta 1: Porque é que é preciso meter medo com o Inferno para angariar clientes?
Pergunta 2: Como é que uma instituição que diz defender a liberdade religiosa diz que é preciso lutar contra o secularismo?
As duas coisas não são mutuamente exclusivas? Ou lutam contra o secularismo nos países onde estão em maioria e defendem a liberdade religiosa e o secularismo nos países onde estão em maioria?
Isso não é duplicidade?
Gralha:
As duas coisas não são mutuamente exclusivas? Ou lutam contra o secularismo nos países onde estão em maioria e defendem a liberdade religiosa e o secularismo nos países onde estão em minoria?
Isso não é duplicidade?
«Se a minha hipótese estiver correcta, é ainda mais urgente estimular um ensino de qualidade, que dê não apenas aos estudantes informação fidedigna e instrumentos de pensamento crítico, mas que também lhes transmita virtudes epistémicas fundamentais: amor pela verdade e honestidade na investigação e no pensamento.»
Caro Desidério, serei talvez muito cínico, mas acho que precisamente porque a sua hipótese está correcta (ou é pelo menos plausível) é que não temos um ensino de qualidade.
Caros leitores
Obrigado pelos vossos comentários.
F Dias: a duplicidade intelectual não é o mesmo que a dissonância cognitiva. A dissonância cognitiva ocorre quando uma pessoa adquire uma crença incompatível com as outras que já tem. A duplicidade intelectual consiste em usar dois pesos e duas medidas. O que se passa é que há dados que apontam para o facto de a duplicidade intelectual ser sistematicamente usada por algumas pessoas quando estão num estado de dissonância cognitiva. Ou seja, em vez de tentarem honestamente resolver o conflito de crenças, optam por fingir que não há qualquer conflito.
Sarmento, concordo consigo. Afinal, as doutrinas e práticas a que o Ministério da Educação tem implantado ao longo de décadas, por mais obviamente erradas que sejam, e lesivas do interesse nacional, são sempre defendidas como perfeitamente boas, mesmo quando os seus resultados são obviamente maus. Um dos factores que explica o insucesso escolar, por exemplo, deve-se à progressiva eliminação dos exames nacionais; mas para os ideólogos do ministério a solução para o insucesso escolar é eliminar ainda mais exames.
Joana: o princípio do duplo efeito é muito discutido em filosofia, e temos de distinguir duas coisas.
1) O princípio em si, que pode ser sólido (por exemplo, faz intuitivamente sentido dizer que é diferente matar 5 pessoas inocentes porque queremos matá-los, ou matá-los porque não temos outra maneira de salvar mil crianças numa escola a arder).
2) Os usos que a igreja católica faz do princípio.
E já agora, convém distinguir também o pensamento ético da igreja católica com o pensamento ético cristão. A generalidade dos filósofos cristãos que defendem uma ética cristã não concordarão com as posições bizarras da igreja.
Sobre o princípio do duplo efeito aconselho a leitura da tese de mestrado sobte o tema, de Pedro Galvão: http://criticanarede.com/tes_pretender.html
Manifesto (parte II)
Autopromoção
Fui acusado aqui, várias vezes, de estar a tentar autopromover-me. Mais uma razão para desaparecer dos diálogos, para que não se julgue que pretendo tal. É certo que aludi com frequência aos meus livros, mas nunca disse o título de um que fosse. Nem sequer mandei ainda ao Carlos Fiolhais, como já é costume, a minha novela mais recente, para que ele não pensasse que eu estava à espera de uma referência no blog. E, quando lha mandar, será exigindo-lhe que não fale dela aqui. O reconhecimento que tenho basta-me, apesar de eu saber o seguinte, como escrevi num dos meus romances: “Parte-se sempre com atraso quando se parte das ilhas.”
A questão de Deus
Não preciso de milagres para acreditar em Deus. Basta-me a minha ignorância quanto à explicação da complexidade da vida. Sob este ponto de vista, nem discuto que Deus será esse: se o de Stuart Mill, se o de Espinosa ou o de Paul Davies.
Os milagres, ou uma razoável crença neles, servem, quando muito, para acreditar razoavelmente na religião que professo.
A qualidade do blog
Não é apenas e economia portuguesa que depende de subsídios. Infelizmente, a nossa cultura também. Nunca um rasgo de génio, um pensamento próprio, uma aventura, um atrevimento de pensar diferente. Na física, João Magueijo “ameaçou”, mas acabou por não cumprir, pelo menos por enquanto. E, como citou o meu amigo Onésimo Almeida no livro que referi (aliás esta ideia é bem conhecida), o padre Manuel Antunes disse: “Se é nacional não é filosofia, se é filosofia não é nacional.” É certo que já lá vão cinquenta anos desde esta afirmação, mas o panorama não mudou muito. E há gente aqui que poderia arriscar-se a ir mais longe, como o Carlos Fiolhais ou o Desidério Murcho.
Os argumentos que tenho lido não passam de variações sobre velhos temas, já tratados por exemplo por Jacques Monod, ou Bertrand Russel, ou o próprio “Lucrécio”, patrono do blog.
Voltarei cá de vez em quando a ver se há alguma coisa que valha a pena ler. Porque há, com frequência.
Boa tarde, amigos. E até sempre.
Um abraço a todos.
Daniel
"estimular um ensino de qualidade".
Sobre a falta de qualidade do ensino em Portugal já muito se disse. Mas talvez seja necessário encarar a hipótese perversa de uma acção deliberada.
Ou seja, a equipa dirigente instalada no Ministério da Educação promove deliberadamente a má qualidade do ensino em Portugal.
Ou, numa versão mais mitigada, se não actua deliberadamente, a sua acção é tolerada, ou subtilmente instigada, por sectores sociais que se conseguem fazer representar no Governo. Porquê? A quem interessa esta situação?
Naturalmente, àqueles que querem garantir uma vantagem competitiva aos seus filhos e descendentes.
Por um lado, evitam que a generalidade dos jovens portugueses adquira uma preparação escolar elevada. Diminuem assim a probabilidade de observar um maior número de jovens em condições de disputar aos seus descendentes os lugares profissionais mais cobiçados.
Por outro lado, não faltando aos descendentes a possibilidade de estudarem em boas escolas particulares, a má qualidade do ensino oficial não constitui preocupação.
É uma hipótese com um evidente carácter conspirativo, mas que deve ser colocada, porque a má qualidade do ensino em Portugal já se arrasta há demasiado tempo, sem que nenhum governo, desde o 25 de Abril, seja qual for o partido no poder, tenha feito o que quer que seja para alterar a situação.
Jorge Oliveira
Belo tema, sim senhor! :)
Ainda assim, mais genericamente, eu punha só a questão na honestidade... "tout court"!
Há um livro belíssimo, do psicólogo humanista Carl Rogers, "Tornar-se pessoa", em que ele dedica um capítulo inteiro à defesa da verdade e honestidade nas relações pessoais e também institucionais e entre estados.
Talvez seja ainda uma utopia podermos avançar tão longe, mas reportando-me unicamente ao plano pessoal, só seremos de facto honestos para com os outros se possuirmos mesmo esse desejo de autoconhecimento que nos leve a aceitarmos aquilo que deveras somos. De novo, é mesmo em casa que tudo começa, antes de transformar o mundo há que aceitar a mais básica transformação interior, a vitória sobre si próprio que é a raiz de todas as realizações!
Felizmente, tem-se avançado alguma coisa nestes domínios ligados à psicologia e ainda às outras ciências que têm a ver com o estudo do Ser Humano, por modo a conhecermos cada vez mais a nossa própria realidade.
Ainda acerca disto, li há uns 2 anos um livro que apreciei bastante, um diálogo entre 2 autores norte-americanos - "Honest to God: A Change of Heart That Can Change the World". Um deles é Brad Blanton, que escreveu uma série de livros em que defende a "honestidade radical", um movimento que aliás também promove através do site Radical Honesty.
Muitíssimo mesmo há a dizer sobre tudo isto, que tem naturalmente a ver com essa "duplicidade intelectual", a qual não me parece ser nenhum exclusivo de religiosos e afins... é uma fraqueza humana generalizada!!!
Eis como Blanton descreve uma das grandes dificuldades em ser radicalmente honesto e abandonar essas muletas das falsas crenças, logo a tal duplicidade também:
The person who learns to tell the truth is the most free, most alive kind of adult human being you'll ever see, but is more insecure than normal. The insecurity comes from having fewer beliefs to rely on for security.
Ora bem, pessoalmente eu creio que basta UMA SÓ crença acima e para além de qualquer outra:
To believe in ME... with all I feel and see!
Ah! Mas este autoconhecimento é ainda demasiado radical...
Rui leprechaun
(...muito para além dos relativos "bem" e "mal"! :))
Creio que me enganei ao "colar" o que escrevera. Peço desculpa.
O meu manifesto (parte I)
Ontem assisti a um encontro cultural deveras relevante. No Centro Cultural da Caloura, no concelho da Lagoa, foi feito o lançamento “açoriano” do livro de actas do Congresso Internacional “Interfaces da Cultura Portuguesa e Europeia” sobre o padre Manuel Antunes. Da apresentação, brilhante como sempre, encarregou-se o meu amigo Medeiros Ferreira, com uma “ajuda” do Prof. José Eduardo Franco, um dos coordenadores da edição.
A certa altura pensei que, no meu lugar, o padre Manuel Antunes decerto não perderia tempo com conversas longas e repetidas, em que ele não pudesse aprender nem ensinar nada. E isto é o que me tem acontecido aqui. Com certeza que por incapacidade minha, nada tenho aprendido nos diálogos de comentários; e, por falta de cultura quanto baste, nada tenho ensinado. Inútil, pois, continuar – concluí.
Além disso, Medeiros Ferreira teve uma expressão verdadeiramente inspirada que não esquecerei. Disse que o padre Manuel Antunes não usava o saber como opressão. Temo que essa tenha sido a minha postura, embora inconscientemente e com resultados nulos, felizmente. Mas temo igualmente que seja isso que pretendem, talvez sem intenção, muitos dos outros comentadores e, com frequência, os autores do blog.
Ingenuamente pensei que “De Rerum Natura” não passava do recurso a uma referência clássica, mas, afinal, tive de concluir que era o resumo de um programa de intenções. Antes de mim alguém já o havia percebido. De facto, desde a química à física, passando pela filosofia, tudo serve para – parafraseando Umberto Eco, conforme citação feita aqui um dia destes – começar falando de Tombouctou para acabar em Roma. O pior não é que assim seja, porque os autores do blog têm todo o direito de escrever nele o que quiserem; o pior é a agressividade, o desrespeito, a verrina de certos diálogos, a que se junta a inutilidade de muitos deles, como a maior parte das minhas participações. Mas, ao menos, tive a virtude de provocar respostas que com certeza enriqueceram a caixa de diálogos. Por isso vim da Caloura firmemente decidido a reduzir ao mínimo a minha participação no blog. Antes, porém, quero deixar claras algumas questões. E peço desculpa pela rudeza e pela extensão deste “manifesto”, o que espero me seja desculpado por ser a última vez que estendo o “lençol”. Mas, para quebrar a monotonia, divido-o em duas partes. A segunda vem já a seguir.
Manifesto (parte II)
Autopromoção
Fui acusado aqui, várias vezes, de estar a tentar autopromover-me. Mais uma razão para desaparecer dos diálogos, para que não se julgue que pretendo tal. É certo que aludi com frequência aos meus livros, mas nunca disse o título de um que fosse. Nem sequer mandei ainda ao Carlos Fiolhais, como já é costume, a minha novela mais recente, para que ele não pensasse que eu estava à espera de uma referência no blog. E, quando lha mandar, será exigindo-lhe que não fale dela aqui. O reconhecimento que tenho basta-me, apesar de eu saber o seguinte, como escrevi num dos meus romances: “Parte-se sempre com atraso quando se parte das ilhas.”
A questão de Deus
Não preciso de milagres para acreditar em Deus. Basta-me a minha ignorância quanto à explicação da complexidade da vida. Sob este ponto de vista, nem discuto que Deus será esse: se o de Stuart Mill, se o de Espinosa ou o de Paul Davies.
Os milagres, ou uma razoável crença neles, servem, quando muito, para acreditar razoavelmente na religião que professo.
A qualidade do blog
Não é apenas e economia portuguesa que depende de subsídios. Infelizmente, a nossa cultura também. Nunca um rasgo de génio, um pensamento próprio, uma aventura, um atrevimento de pensar diferente. Na física, João Magueijo “ameaçou”, mas acabou por não cumprir, pelo menos por enquanto. E, como citou o meu amigo Onésimo Almeida no livro que referi (aliás esta ideia é bem conhecida), o padre Manuel Antunes disse: “Se é nacional não é filosofia, se é filosofia não é nacional.” É certo que já lá vão cinquenta anos desde esta afirmação, mas o panorama não mudou muito. E há gente aqui que poderia arriscar-se a ir mais longe, como o Carlos Fiolhais ou o Desidério Murcho.
Os argumentos que tenho lido não passam de variações sobre velhos temas, já tratados por exemplo por Jacques Monod, ou Bertrand Russel, ou o próprio “Lucrécio”, patrono do blog.
Voltarei cá de vez em quando a ver se há alguma coisa que valha a pena ler. Porque há, com frequência.
Boa tarde, amigos. E até sempre.
Um abraço a todos.
Daniel
tempos de sofística...
e concordo com quem lá em cima trcou tudo nos 'miúdos' adequados, chamando os bois pelos nomes: qual 'duplicidade intelectual', desonestidade intelectual, isso sim...
(acho eu)
Caro Desidério:
Muito obrigado pela resposta. Mas a resposta levanta outras dúvidas.
Aquela da:
por exemplo, faz intuitivamente sentido dizer que é diferente matar 5 pessoas inocentes porque queremos matá-los, ou matá-los porque não temos outra maneira de salvar mil crianças numa escola a arder
Há um tempo com um grupo de amigos discutíamos isso. Há aquela clássica do comboio cheio de gente que se vai despenhar e que a única forma de o travar é matar alguém (que não vai no comboio).
Eu acho que não importa ser para salvar 1, 100, 5000 ou um milhão. Não é ético matar ninguém para salvar outros. A única saída ética é a altruista: eu sacrificar-me para salvar esses 1, 100, 5000 ou um milhão.
Se eu matar outra pessoa porque tenho a crença, justificada, que vou contribuir para o bem geral salvando muitos mais, como é que eu posso condenar, sei lá, o Hitler ou o Estaline?
Eles também agiam de acordo com as suas crenças, de que matavam pessoas para o bem comum. Estou a dizer que eu posso fazê-lo porque eu estou certa, porque a minha crença de que vou salvar não sei quantas pessoas é justificada e a deles não?
E se alguém decidisse matar toda a gente infectada com SIDA com a justificação de que se os matarem deixa de haver SIDA e salva-se a vida de milhões?
Não sei se estou certa ou errada, mas para mim é eticamente errado matar 5 pessoas inocentes para salvar mil.
Que deus?
«N'y a-t-il pas quelque chose d'un peu absurde dans le spectacle d'êtres humains,
qui tiennent devant eux un miroir et qui pensent que ce qu'ils y voient est tellement excellent,
que cela prouve qu'il doit y avoir une Intention Cosmique
qui, depuis toujours, visait ce but...
Si j'étais tout-puissant
et si je disposais de millions d'années pour me livrer à des expériences,
dont le résultat final serait l'Homme,
je ne considérerais pas que j'aurais beaucoup de raisons de me vanter . "
[Bertrand Russell]
E prontos, porque é que não estou surpreendida com a apoteose do Daniel de Sá? Perguntas muito difíceis é o que é, e gente que não vai em converseta da treta...
Embora a Joana dirija a questão ao Desidério Murcho, poderei meter a minha colherada dizendo que a posição de Joana é Kantiana, isto é, segue uma ética que obedece ao imperativo categórico. Já a ética que deriva de David Hume e seguida pelos utilitaristas, a atitude é vista em função das consequências e não de qualquer princípio “a priori” como defendia Kant. Mas o exemplo da Sida poderá estar desfocado porque coloca a atitude de matar como estratégia. Ao passo que o exemplo do autocarro insere-se num contexto contingencial, isto é, do mal menor, depois de sermos confrontados por uma situção para a qual não contribuímos intencionalmente.
[…] nenhum testemunho é suficiente para demonstrar um milagre, a não ser que o testemunho seja de natureza tal que a sua falsidade seja mais milagrosa do que o facto que tenta demonstrar.
David Hume, «Dos Milagres» (1748)
Joana
O F Dias respondeu já, em termos eruditos, digamos, ou históricos. Conceptualmente falando, é pura e simplesmente implausível a sua posição. Uma pessoa que para não matar outra deixa morrer 100 mil seria considerada monstruosa. E, parece-me, com razão.
Mas, claro, se partir do seu ponto de vista, então não há necessidade da doutrina do efeito duplo, porque a sua resposta é que é SEMPRE errado matar um inocente. Só que isto é incompatível com o aborto, por exemplo, quando se descobre que a mulher tem cancro com 5 meses de gravidez e tem de fazer quimioterapia para se salvar. A ideia de que o aborto neste caso é permissível é porque se trata de salvar uma vida com mais valor do que outra. Eu sei que incomoda muita gente esta coisa de dizer que uma vida pode ter mais valor do que outra, mas paciência.
Caro Desidério e F. Dias:
O Desidério bem tinha dito que devíamos deixar a bioética para os filósofos :)
No caso do aborto do Desidério em termos biológicos é diferente: um feto não viável não tem consciência de si. Não há identidade nem há pessoa, é uma forma de vida com mais valor que um embrião mas menos que uma pessoa.
Eu nunca tive problemas em trabalhar com células estaminais que também são vida humana.
Esqueci-me de dizer uma coisa na questão do comboio. Não me fazia confusão matar alguém que fosse no comboio para salvar os outros.
Agora não acho que fosse ético matar alguém que não fosse no comboio. Porque se era eu que tinha a capacidade de decisão e achava que o valor da vida das pessoas que iam no comboio valia mais que a vida de uma pessoa então porque não me sacrificava eu?
Se eu achava que a minha vida valia mais que todas as outras que iam no comboio, que direito tinha eu de pensar que a pessoa que escolhia para o sacríficio também não pensava o mesmo?
Olá, Joana
E se o feto não fosse viável, mas fosse como um bebé, com o mesmo tipo de actividade cerebral?
No caso do comboio, tens de imaginar um cenário em que a tua morte nada resolve. Por exemplo, há uma encruzilhada, tu estás no controlo das linhas e se fizeres o comboio ir por um lado, ele passa por explosivos postos por um terrorista na linha e morre toda a gente do comboio, se passar pelo outro lado mata apenas uma pessoa que está a passar a linha. Como resolves isto? O princípio do duplo efeito existe para que possamos ser kantianos ao mesmo tempo que queremos fazer o mesmo que faz um utilitarista (não confundir com utilitário): desvia o comboio de maneira a matar o mínimo de pessoas possível. Só que o kantiano quer dizer que é sempre moralmente errado ter a intenção de matar pessoas inocentes, e daí arranja-se o tal princípio. Infelizmente, não conheço mais bibliografia em português sobre isto que te possa aconselhar além do que já te disse e que não é introdutório, apesar de ser muito bom. Mas aconselho uma excelente introdução à ética, que trata deste e de muitos outros assuntos importantes: Elementos de Filosofia Moral (Gradiva).
Olá Desidério:
Podes por favor indicar bibliografia que trate do princípio do duplo efeito?
Tenho estado a ler os comentários e perece-me ser um assunto interessante...
Muito obrigado,
José Oliveira.
Olá, José
Vê aqui:
http://criticanarede.com/tes_pretender.html
João Paulo, a excomunhão não é o mesmo que «condenar às profundas do Inferno os excomungados». Significa apenas o que a palavra diz, ou seja, que a pessoa em questão deixa de estar em comunhão com Roma. Por exemplo, no caso da excomunhão automática é a própria pessoa que abandona a Igreja de sua livre vontade, ao realizar determinado acto. A Igreja não «condena» ninguém e o que a doutrina católica afirma é que apenas Deus decide quem é "salvo" ou quem "vai para o Inferno". Se a pessoa que é excomungada será salva ou não só Deus sabe. É por estas e por outras que afirmo que muitos comentadores que aqui atacam a Igreja (e há tanta coisa nela que podiam atacar!) têm um conhecimento muito superficial da mesma.
P.S.: note que embora a Igreja afirme ser "a única via para a salvação", o facto de estar fora da Igreja não significa ir para "as profundas do Inferno". A doutrina católica fala do Purgatório (e até há bem pouco tempo, do 'limbo'). Por muito que lhe custe a crer, os católicos acreditam num Deus bom, justo e misericordioso.
Filipe alves, apesar do seu esclarecimento, parece-me que a dúvida mantém-se. A Igreja não pedoou o excomungado, afastando-o da sua Igreja, o que não está de acordo com os valores que apregoa. Onde está o perdão, quando é preciso?
Olá Desidério:
Só há actividade cerebral num feto depois da viabilidade por isso a primeira questão não se põe.
Posto dessa forma a questão do comboio não tinha dúvidas: desviava o comboio para a linha sem explosivos.
Acho que vou comprar esse livro da Gradiva. Só espero que não esteja esgotado... Também acho que devíamos ter aulas de ética na faculdade e mesmo nas escolas.
O encerramento do limbo pelo Gato Fedorento.
O Vaticano decidiu o encerramento do limbo, da mesma forma que o inventou: sem provas, fabricando a realidade com argumentos de autoridade.
Mais uma verdade «absoluta» da ICAR que foi... para o limbo, vítima do relativismo moderno. A Igreja estava a perder terreno para a concorrência nos países subdesenvolvidos onde a mortalidade infantil é muito elevada à conta do limbo e vá de encerrá-lo :))
Não sei é como vão resolver a questão espinhosa de João 3, 5:
«Em verdade, em verdade Eu te digo: quem não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus».
Cá para mim o limbo não foi encerrado, está em obras de remodelação :)))
Joana: «Em verdade, em verdade Eu te digo: quem não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus». - Isto não quer dizer que a pessoa em causa esteja condenada às "profundezas do Inferno", como disse o João. Pedro: Foi o excomungado que se afastou da Igreja, ao praticar algo que vai contra os valores dessa mesma comunidade. É quase a mesma coisa que um comunista ser expulso do PCP por acreditar na economia de mercado e tornar-se especulador na bolsa; este comunista há muito que deixou de o ser. Quanto ao perdão, tem razão, a doutrina cristã assenta no perdão. Mas também no arrependimento.
Pedro:
Pelo que li do direito canónico, a excomunhão acontece quando alguém se atreve a contrariar a ICAR, quando comete "pecados" imperdoáveis contra a ICAR. Ungir bispos e assim, contrariar a doutrina católica, não obedecer às ordens da igreja - há carradas de padres excomungados -, pertencer à Maçonaria ou ser comunista, ou então abortar.
Mais depressa é excomungado um católico à la carte que comece a ser muito conhecido que um assassino em massa.
Nos últimos anos praticamente só têm sido excomungados padres e "abortistas".
O bispo Fabian W. Bruskewitz foi excomungado duas vezes, para não deixar dúvidas, por pertencer ao movimento Call to Action, que pede a revisão da doutrina do Vaticano em relação à contracepção (que ninguém segue).
O arcebispo de St. Louis, Raymond Burke, excomungou o padre Marek Bozek e os seis membros do conselho de direcção da igreja de St. Stanislaus Kostka por causa do controle financeiro da paróquia.
Alguns são des-excomungados post-mortem como Marcel Lefebvre, arcebispo tão reaccionário que JPII excomungou e B16 recuperou para bem da ortodoxia.
O caso mais emblemático é o do padre Johann Joseph Ignaz von Döllinger, excomungado por não aceitar o dogma da infalibilidade papal.
"Alguns são des-excomungados post-mortem como Marcel Lefebvre, arcebispo tão reaccionário que JPII excomungou e B16 recuperou para bem da ortodoxia."
Joana
Por favor, explique-me melhor como é que isto funciona. Mas qual é que é o papel de Deus no meio disto tudo? Nem depois de mortas, as almas ficam sob a Sua alçada?
guida martins
filipe: no entanto, afirmam que o excomungado pode obter a salvação, caso Deus assim o decida. Se Deus é capaz de lhe conceder perdão, porque não poderá a Igreja fazê-lo?. Não duvido que a excomunhão seja necessária em situações extremas, mas como a joana reportou existem casos em que é utilizada simplesmente para calar a oposição interna à suprema autoridade da igreja. Será esta uma prática correcta, não estará "contra os valores da comunidade"?
Mas há uma dúvida que ainda não foi esclarecida: poderá alguém que não faça parte da igreja aceder ao paraíso? Se sim, isto entra ou não em clara contradição com a premissa «A igreja é a única via de salvação» e «quem não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus»?
Olá Guida:
Acho que ninguém percebe bem como estas coisas funcionam :)) Devem depender de que lado sopra o Espírito Santo.
Lefebvre, autor do best-seller "Acuso o Concílio", fundou a FSSPX (Fraternidade Sacerdotal São Pio X) em 1970 com outros padres fundamentalistas desgostados com as modernices do Concílio Vaticano II. A FSSPX, uma coisa integrista, está ligada a grupelhos neo-fascistas em vários países: em Portugal, via PNR, em Espanha via partido (franquista) de Blas Piñar, em França com a Frente Nacional de Le Pen (Lefebvre apelou ao voto em Le Pen em 1985). O criminoso de guerra Paul Touvier foi detido num convento de Nice da FSSPX .
Marcel Lefebvre e os quatro bispos que ordenou foram excomungados por JP2. B16 quer receber a FSSPX de braços abertos e conceder-lhe o mesmo estatuto do Opus Dei.
As condições da FSSPX para regressarem ao seio da "família do amor" eram a revogação da excomunhão de Lefebvre e dos seus bispos e poderem celebrar a missa latina sem autorização escrita.
A missa tridentina já fez o seu regresso triunfal por Motu Proprio de B16 (Summorum Pontificum) com uma carta a explicar que tal era para ajudar á reconciliação no coração da Igreja e que tais.
Ainda vamos ver o Lefebvre transformado em santinho :)))
PS: Acho que nem Deus nem almas têm lugar nesta história que é só uma história de manutenção de poder :))
Pedro: «Se Deus é capaz de lhe conceder perdão, porque não poderá a Igreja fazê-lo?» - Não se trata de obter perdão, mas sim de conceder a salvação. Essa, segundo a doutrina católica, apenas Deus pode conceder.
«Não duvido que a excomunhão seja necessária em situações extremas, mas como a joana reportou existem casos em que é utilizada simplesmente para calar a oposição interna à suprema autoridade da igreja» - Claro que é um instrumento utilizado para calar a oposição interna. Também Acho um disparate excomungar alguém por causa de um aborto e não fazer o mesmo por causa de um homicídio.
«Mas há uma dúvida que ainda não foi esclarecida: poderá alguém que não faça parte da igreja aceder ao paraíso?» - Repare que o que eu disse é que o facto de não fazer parte da Igreja não significa um bilhete directo para "as profundezas dos infernos". Não falei no paraíso. O limbo era uma 'invenção' destinada a responder a esta pergunta. Não sei qual é a explicação actual para o destino além morte dos "justos pagãos". Uma nota final: ao discutir isto consigo não estou a falar da minha opinião pessoal sobre esta questão.
P.S.: ainda a respeito do perdão, repare que a Igreja pode perdoar alguém que foi excomungado e reintegrá-lo na comunidade, mas para isso é necessário arrependimento por parte da pessoa em questão.
Muito obrigada, Joana.
Pensei que a excomunhão ou a salvação concedidas pela igreja, eram uma espécie de pareceres negativos ou positivos, para Deus se orientar e que depois de mortas as almas não tivessem mais nenhuma conta a ajustar com o Papa. Sendo assim, enganei-me :)
guida martins
Sobre a salvação dos que não fazem parte da Igreja: «(...)graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita» (Catecismo da I. C.)
Como é possível descrever com tanta certeza e "conhecimento" de causa aquilo de que ninguém pode saber.
As caixa de comentários aumentam de facto quando o assunto é "religião"...Mesmo assim, nada de "científico" ou objectivo se escreve sobre "religião"
mcg
Voltando à minha atitude pro Rosseau e à minha oposição à expressão eduquês, como anteriormente terei escrito algures numa caixa de comentários: dos mesmos ensinamentos, os alunos, pessoas, tiram diferentes aproveitamentos, por vezes nenhum, por vezes até oposto ( como Marx e Hegel , neste caso discordar do mestre no bom sentido, nada tem de negativo).
Umberto Eco no seu recente livro "A Passo de Carangueijo", em crítica à proibição do uso de cruxifixos em ambientes escolares, comenta estatisticamente, sendo o cruxifixo algo que influenciasse os alunos, após a frequência dessa escola: os alunos nunca sairiam descrentes,( eu em criança era levada todos os dias para a frente de um enorme cruxifixo, numa capela para ali rezar, ou reflectir "religiosamente" e eu estou longe de ser "crente" actualmente ); o que não se confirma evidentemente, porque uma percentagem de alunos há-de ser descrente apesar de tudo, como a exclusão de símbolos religiosos também não torna pessoas descrentes.
Aquilo que quero apenas dizer é que por muito que se incentive pessoas com valores justos, nem todas as pessoas hão-de ser "justas".
As instituições têm de facto um grande peso, mas, a personalidade individual também.
( e Margaret Mead designou até de "personalidade padrão" a personalidade tipo que é inculcada nos indivíduos ).
MCG
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