domingo, 25 de março de 2007

Sexo e ciência: um tributo a Hamilton

No dia 7 de Março, o dia em que nos lançámos nesta experiência na blogosfera, fez sete anos que morreu o cientista que muitos consideram o pai da segunda revolução evolucionista: William Donald Hamilton.

Hamilton revolucionou a biologia com os artigos «The Genetical Evolution of Social Behaviour I e II», publicados no Journal of Theoretical Biology em 1964 e que explicam a base genética do altruismo. Estes artigos, considerados a maior contribuição à teoria da evolução depois de Darwin, foram enviados do Brasil, da UNESP Rio Claro, onde Hamilton mantinha uma colaboração.

Mas Hamilton forneceu igualmente a primeira resposta satisfatória à pergunta: para que serve o sexo? De facto, embora poucos discordem que sexo seja bom, o caso muda de figura quando a interrogação passa para o campo científico. Isto é, em termos biológicos o sexo é bom para quê?

Já em 1889 o biólogo alemão August Weismann tinha afirmado que a função do sexo não poderia ser apenas a de permitir a multiplicação dos organismos. Para a grande maioria das formas vivas, a reprodução assexuada, nas suas muitas variantes, assume-se como a forma predominante de reprodução. E não há indícios de que as bactérias se divirtam no processo, apesar do afinco com que se dedicam à reprodução.

A via sexuada é a forma de reprodução mais dispendiosa na perspectiva biológica, não só a nível fisiológico mas, quando os dois sexos correspondem a indivíduos distintos, também comportamental. Pensemos na energia investida em cantos, danças e outras exibições altamente elaboradas dos comportamentos de corte de muitas espécies, assim como no aparecimento e manutenção de características sexuais secundárias como as majestosas plumas dos pavões macho. Para não falar no desperdício de energia na produção de machos, criaturas quase inúteis do ponto de vista biológico, criadas e alimentadas com a função específica de doarem gâmetas para fertilizar as fêmeas.

Por outro lado, como apontou em 1971 o evolucionista inglês John Maynard Smith, na corrida evolutiva, na qual a passagem dos genes à geração seguinte é um grande objectivo, um indíviduo sexuado está em clara desvantagem em relação a outro que se reproduza assexuadamente já que o primeiro apenas passa à descendência metade do seu material genético. Esta desvantagem ficou conhecida por «o custo da meiose».

Em suma, a propagação genética sexuada é mais «cara» do que a assexuada; o sexo, em termos biológicos, é um «artigo de luxo»! Qual é então a razão para que se invistam tantos recursos neste artigo de luxo?

Maynard-Smith argumentou que o sexo só poderia ter evoluído se um benefício misterioso contrabalançasse o grande custo da meiose. A proposta revolucionária de Hamilton em 1980 para o aparente paradoxo é um corolário da teoria da evolução a que se chamou a hipótese da Rainha Vermelha, denominação inspirada no livro de Lewis Carrol, «Through the Looking Glass», no qual a Rainha Vermelha diz: «Now here, you see, it takes all the running you can do to keep in the same place».

Um meio ambiente em permanente mudança, especialmente no que diz respeito a parasitas (bactérias, vírus, etc., que se reproduzem assexuadamente), é a base desta hipótese de Hamilton sobre a origem e a manutenção do sexo. Os omnipresentes parasitas têm virulência específica, afectando apenas determinados genótipos dos hospedeiros. O tempo de vida dos parasitas é muito mais curto que o dos hospedeiros, ou seja, milhões de gerações dos primeiros sucedem-se durante a vida de um hospedeiro. As incontáveis gerações de parasitas, para os quais a principal fonte de variabilidade é a mutação, traduzem-se em taxas de evolução muito maiores, deixando como única saída para os hospedeiros mais longevos a reprodução sexuada e a produção de filhos diferenciados geneticamente e eventualmente resistentes aos parasitas.

Segundo Hamilton, uma «corrida às armas da adaptabilidade genética» entre hospedeiros e parasitas ocorre desde que a vida surgiu na Terra. Os parasitas estão sempre a furar as barreiras defensivas do genótipo dos hospedeiros, enquanto estes, com a ajuda do sexo, criam continuamente novas defesas. Na ausência do sexo, os hospedeiros permaneceriam geneticamente inalteráveis e seriam exterminados quando os parasitas conseguissem derrotar o sistema imunológico dos hospedeiros.

Hamilton desenvolveu uma visão parasítica do mundo que explica até a evolução de características sexuais secundárias como as cores brilhantes de alguns pássaros: propaganda genética. De facto, as fêmeas são muito exigentes na escolha dos machos com que acasalam e procuram garantias que o macho escolhido tenha «bons genes» contra parasitas. Para isso é necessário que os machos as convençam da excelência dos seus genes. Para evitar «gabarolices», isto é, publicidade enganosa, as provas da boa qualidade genética são muito dispendiosas em energia: apenas indivíduos com bons genes as conseguem exibir.

Os parasitas acompanharam Hamilton até ao fim da sua vida. Em 2000, numa expedição ao Congo, Hamilton contraiu malária tendo morrido pouco depois.

11 comentários:

Unknown disse...

António Parente:

É difícil responder às suas interrogações sem que saiba o B-A-BA da biologia. Respondendo a um pedido da Palmira para fazer tábua rasa do passado aqui vai:

1) Não faria sentido porque somos uma espécie longeva. Os nossos genes não se alteram ao longo da vida. Ao longo da vida de um humano os parasitas podem acumular milhões de mutações.

2)Não! Porque os parasitas evoluem.

3) Há espécies animais em que as fêmeas produzem anestésicos no acto sexual. O prazer humano é um acaso da evolução, uma forma biológica de recompensa génica. Há mais exemplos de mecanismos biológicos de recompensa quando fazemos coisas que fazem bem.

4)Há muitos factores biológicos no amor mas os homens são mais que meros animais.

5) Não há um contador biológico do número de namoradas. As características sexuais secundárias para os humanos são mais culturais que biológicas.

6) a 11) está a querer reduzir os humanos aos seus genes e esquecer o resto. Há uma base biológica para o resto mas os factores culturais são muito importantes. E está a confundir reprodução sexuada com sexo.

12 e 13 A ciência é amoral. Não venha com innuendos de que a ciência é má porque o conhecimento pode ser usado de formas imorais. Pode sair-lhe o tiro pela culatra...

Unknown disse...

Adorei o post! Agora falta um ou uns sobre o altruismo.

Cristina Melo disse...

Não tenho muitas dúvidas, estou apenas a aprender. acho apenas os posts muito interessantes, sobretudo este.

Unknown disse...

1) e 2) Eu sou ateia, não me ponho a inventar propósitos em acasos da evolução. Mas estas perguntas deviam mostrar que a haver design foi muito pouco inteligente.

3) Isso não funciona assim. Os mecanismos que entram em acção no acto sexual são independentes do propósito. Algumas espécies têm períodos de cio bem delimitados que dão maior hipótese de sobrevivência às crias que nascerão numa altura de abundância de recursos.

4) Eu disse algumas espécies, não disse todas. Nalguns macacos o sexo tem também uma função social.

5) Uma base biológica não quer dizer que os nossos comportamentos sejam regulados em exclusivo pela biologia. Não há dicotomia corpo-mente ou corpo-alma. A nossa mente é estritamente biológica mas a forma como se estabelecem sinapses e crescem neurónios é influenciada por padrões culturais/sociais. Pense nas crianças-lobo.

6a 11) Deixe os preconceitos católicos em relação ao sexo e ao sexo homossexual de lado para não contaminar a conversa.

7) Está a fugir ao tema. Tudo o que envolve a acção humana apresenta questões éticas. Eu acho que a religião é a construção humana que está mais a precisar de limites éticos, não a ciência. A ciência é aberta à discussão e a críticas e auto-regula-se, a religião é completamente fechada a tudo e está em total roda livre.

Unknown disse...

A ciência é totalmente aberta à crítica e à discussão e totalmente sem fronteiras. Dentro da comunidade científica: não faz sentido discutir críticas de quem não percebe do que fala.

«quanto á religião só se fechará de a tornar completamente privada»

é, vê-se com o fundamentalismo islâmico. E viu-se na Idade Média com o fundamentalismo católico. Muita abertas: quem divergia uma vírgula das patetadas do Vaticano, fogueira com eles. Uma abertura como nunca se viu. As atrocidades em nome do catolicismo na Europa só pararam como se mandou a religião para o beco. Agora quer sair outra vez...

Unknown disse...

Meu caro:

E eu a pensar que estávamos a falar de ideias: a ciência é aberta à discussão de ideias; na religião a discussão de ideias é heresia.

Mas já que estamos a falar de dinheiros públicos e do direito que o António acha que tem para vetar investigação de que não gosta e que falar do dinheiro público que vai para a Igreja? E daquele dinheiro de impostos sobre actividades lucrativas que a Igreja não paga? Do IVA que a Igreja não paga?

Vai muito mais dinheiro para a Igreja do que para investigação em Portugal!

E não me parece que a Inquisição, a tortura, os churrascos de hereges e bruxas, tenha desculpa! Ou seja invenção de um ateísmo pimba, o que quer que isso seja!

Desidério Murcho disse...

Caro Parente

Meto aqui uma colherada, se me permite. Diz que "não faz sentido pertencer a uma comunidade se não se comungar com as ideias dessa comunidade", mas isto é parcialmente falso. Faz pleno sentido pertencer a uma comunidade e discutir ideias frontalmente com os nossos pares. Na verdade, raios, é isso que faço na minha vida profissional. E é isso que vê se ler revistas académicas de qualidade em qualquer área: x procura mostrar que y não tem razão sobre um dado assunto. Pertencem à mesma comunidade? Claro que sim. Só que pertencem a uma comunidade crítica, e não dogmática. As comunidades religiosas não são assim. E essa diferença é crucial.

Desidério Murcho disse...

Caro Parente

Eu compreendo que quem não tem formação em filosofia possa ficar algo irritado quanto um filósofo declara que há uma falácia num argumento. E concordo que se pode abusar da acusação de falácia. Na verdade, muitas pessoas não sabem o que é uma falácia, porque não sabem sequer o que é um argumento — e não sabem lógica. Mas não é possível hoje ser um bom filósofo sem dominar a lógica, pois seria como ser hoje um físico sem dominar a matemática, ou um músico erudito sem saber ler uma partitura. Há competências básicas sem as quais não se pode pura e simplesmente fazer filosofia hoje.

Mas não se pode abusar; isto é, se eu estou a falar com um leigo em filosofia não posso começar a usar conceitos que essa pessoa não domina. Mas se for mesmo necessário dominar tais conceitos para poder discutir as coisas com seriedade e a outra pessoa se recusa a ir estudar ou até a aprender com quem sabe, bom, então a conversa chegou claramente ao fim.

Em qualquer discussão de ideias há um conjunto de condições prévias sem as quais a discussão não faz sentido. Eu destacaria as seguintes: 1) confiança na boa-fé da outra pessoa; 2) boa-fé da nossa parte, o que implica estar disposto a mudar de ideias, analisar cuidadosamente os dados e os argumentos contrários e não usar conscientemente falsidades nem falácias na nossa argumentação; 3) predisposição para aprender com a outra pessoa sobre os domínios que a outra pessoa domina melhor — o que implica acreditar que a outra pessoa não vai usar o conhecimento maior que tem para deturpar as coisas.

No caso da filosofia acontece muito as pessoas que nada sabem do assunto, ou que têm da filosofia um conhecimento de leigo (como eu sei, por exemplo, de biologia), arvorarem-se em filósofos. Um pouco como se a filosofia fosse cultura geral, em que toda a gente é especialista. Isto é um erro. Sem um bom conhecimento da bibliografia fundamental e sem um domínio das competências filosóficas básicas as opiniões de um leigo são tão desinteressantes quanto as minhas opiniões sobre a física quântica — sei umas coisas vagas, por ler coisas de divulgação.

Desidério Murcho disse...

Caro Parente

Quanto aos outros aspectos do seu comentário. As diferenças são profundas, entre a filosofia e a religião. Pense no seguinte: Russell e Frege são dois dos filósofos mais importantes e respeitados do séc. XX. As suas ideias sobre filosofia da linguagem, metafísica e epistemologia deram origem a inúmeros estudos e desenvolvimentos na filosofia contemporânea. Contudo, Kripke ficou famoso precisamente por refutar (ou pelo menos procurar refutar) uma das teses centrais destes filósofos. Ninguém o excomungou, não teve de fundar uma nova “escola” ou igreja, não houve gritos de “Blasfémia!” nem sugestões de que devia ficar calado ou ser afastado. Não. A comunidade filosófica, como a científica ou qualquer comunidade academicamente séria, acolheu as ideias de Kripke — porque baseadas em argumentos poderosos e teorias bem fundamentadas. E, claro, hoje há quem as conteste. Isto é saudável.

Mas isto não acontece na religião, como você reconhece. Se você desatar a escrever por aí que discorda das ideias do seu bispo, está tramado. E de nada serve dizer que pode haver crítica, mas “lá dentro” — diacho, António, isso era o que os comunistas diziam relativamente à União Soviética: que toda a gente podia criticar o regime, mas “lá dentro”. Mas a gente não quer a crítica só “lá dentro”. Queremos a crítica pública, “cá fora”. E não é verdade que para termos uma comunidade temos de ter este conceito de comunidade. Os cientistas e filósofos, os académicos em geral, constituem comunidades, mas não impedem que se conteste as ideias dos colegas “cá fora”. O mesmo se pode dizer de uma comunidade democrática; eu não sou menos português se contestar o presidente da república ou o primeiro-ministro. Raios, dado quem eles são, até me parece que sou mais português... 

Agora repare uma coisa: significa isto que não se pode ser religioso sendo-se cientista ou filósofo? Claro que não. Alguns dos grandes cientistas foram e são religiosos. O mesmo se pode dizer dos filósofos. Kripke, tanto quanto sei, por exemplo, é religioso. Putnam é. E poderia dar-lhe dezenas de nomes.

Quanto a doutrinações (catecismo) no ensino da filosofia, só se for mau ensino. Se for bom, tem por principal missão dar aos estudantes os instrumentos para que possam contestar as ideias dos filósofos, assim como apresentar e defender rigorosamente as suas ideias. O Guia das Falácias do Downes não é doutrinação. Dizer tal coisa seria como dizer que ensinar a tabuada é doutrinação.

Mas há um fenómeno bizarro que já observei com as pessoas religiosas em Portugal — e até algumas com formação, obviamente deficiente, em filosofia. Por algum motivo que desconheço sentem-se desconfortáveis com a lógica contemporânea, mas confortáveis com a de Aristóteles. Isto é bizarro, dado que alguns dos mais importantes filósofos da religião contemporâneos, cristãos, são igualmente proficientes em lógica contemporânea — como o caso de Plantinga e Swinburne. A lógica é neutra, Parente. É como a matemática. Aceitar a lógica contemporânea (ou as lógicas, porque há várias) não nos compromete com o ateísmo — pensar isso só revela desconhecimento bibliográfico básico. O que não é nenhum problema — estamos aqui para aprender uns com os outros.

Desidério Murcho disse...

Parente, só mais uma coisa: não se pode demonstrar que uma falácia é falsa, porque só as afirmações são verdadeiras ou falsas e as falácias são argumentos. O que quer dizer é que um dia tentará mostrar que a falácia do verdadeiro escocês não é um argumento falacioso. Mas para fazer isso tem primeiro de saber a diferença entre afirmação ou proposição e argumento, tem de dominar o conceito de falácia e tem de distinguir falácias formais das informais. Coisa que quem o lixa com essa acusação também não sabe, com toda a certeza... Mas sempre se aprender qualquer coisa interessante pelo caminho.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

E, destes idos, colaborara na evolução, segundo William Donald Hamilton o cientista.

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