sexta-feira, 23 de março de 2007
O PORTO E A TÍSICA
O que têm em comum (por ordem alfabética, estando entre parêntesis a respectiva idade quando morreram): Lorde Byron (36 anos), Frédéric Chopin (39 anos), Bento Espinosa (45 anos), Franz Kafka (41 anos), John Keats (26 anos), D. H. Lawrence (45 anos), George Orwell (47 anos), Edgar Allan Poe (40 anos) e Anton Tchekov (44 anos)?
São todos eles nomes das artes e das letras, mas não só. Estará o leitor confuso? Então acrescentemos uma lista de nomes portugueses, todos eles ainda da área das artes e das letras: António Aleixo (50 anos), Júlio Dinis (42 anos), António Nobre (33 anos), António Soares dos Passos (34 anos) e Cesário Verde (31 anos)?
Não, não é apenas a data da morte, que em todos esses casos ocorreu precocemente. É a causa da morte, que foi a mesma em todos eles: a doença que o povo chamava tísica e a que a ciência deu o nome de tuberculose. A tuberculose, causada pela terrível bactéria que dá pelo nome de Mycobacterium tuberculosis (ou bacilo de Koch) foi uma das enfermidades mais letais para as artes e para as letras. Paradoxalmente, como se pode avaliar pelas obras dos autores listados, marcadas em grande medida pela fatalidade, e ainda por obras como “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann (que descreve a estada de Hans Castorp num sanatório suíço para tratar a tísica, uma história inspirada pela doença da mulher do escritor), ou a “A Dama das Camélias” de Alexandre Dumas (baseado num facto real e mais tarde adaptado a ópera por Giuseppe Verdi: no final de “La Traviata”, a jovem Violeta esvai-se, completamente tísica), que teria sido das artes e das letras sem essa doença? Também em “Crime e Castigo”, Fedor Dostoievski conta uma morte por tuberculose inspirado provavelmente na morte similar da sua mulher. E até o famoso quadro “O Grito” de Edvard Munch pode ter sido influenciado pela morte, por tuberculose, da mãe e da irmã do artista.
Também a ciência sofreu com a tuberculose. Dois dos maiores matemáticos de todos os tempos: Niels Hendrik Abel (26 anos) e Georg Bernhard Riemann (39 anos) morreram de tuberculose. O mesmo sucedeu, embora em idades bem mais avançadas, com Julius Mayer (64 anos), um físico tísico que foi um dos criadores da termodinâmica, e com Erwin Schroedinger (73 anos), um dos criadores da teoria quântica. Um outro físico quântico, Richard Feynman, escreveu cartas comoventes à sua primeira mulher, Arline, quando ela estava a morrer de tuberculose e ele trabalhava no projecto Manhattan, em Los Alamos, de construção da bomba atómica.
Em Portugal, a doença conheceu particular incidência na cidade do Porto. Em 1899 o médico portuense Ricardo Jorge chamava-lhe “a sua cidade cemiterial”. E ainda hoje o Porto é uma cidade com uma taxa de casos de tuberculose que ultrapassa largamente a média nacional (infelizmente, Portugal também neste índice ocupa um lugar na cauda da Europa). A doença espalhou-se devido às más condições sanitárias, em particular as que existiam nas chamadas “ilhas” do Porto, que no século XIX e ainda no século XX tinham condições de promiscuidade inimagináveis. Eram verdadeiros “pastos” para a bactéria!
Não admira por isso que um médico pneumologista do Porto, António Ramalho de Almeida, tenha escrito um livro intitulado “O Porto e a tuberculose” e subintitulado “História de 100 anos de luta”. Ele conhece bem o problema por dentro, uma vez que trabalhou mais de 30 anos no Sanatório de D. Manuel II depois de se ter licenciado em Medicina na Universidade do Porto. O livro descreve a vida e a morte na cidade do Porto ao longo dos dois últimos séculos. Começa por falar do Cerco do Porto e de D. Pedro IV, um dos tísicos mais célebres. Porque vem a talhe de foice, acrescente-se, que Salazar, embora não tenha morrido da doença, foi outro tuberculoso célebre, tendo chegado a ser tratado no Caramulo (hoje, no Museu do Caramulo, pode ser visto um retrato dele na serra, da autoria de Eduardo Malta). Esse facto, que não foi muito divulgado, levou Winston Churchill a definir Portugal de uma maneira muito violenta, que só encontra eco no modo como Lord Byron nos tratou (“Com tal gente, / Ó Natureza! Por que desperdiçaste os favores?”):
“É um país de tuberculosos governado por um tuberculoso”.
O livro fala depois do Porto de Júlio Dinis, que apesar de médico doente não escreveu muito sobre a sua doença. Já o mesmo não se passou com António Nobre, também natural do Porto e o autor de “Só”, o livro mais triste que jamais houve em Portugal. São dele e desse livro os versos muito tristes (poema “Canto do Lume”):
“Mês de Novembro! Mês dos tísicos! Suando,
Quantos, a esta hora, não se estorcem a morrer!
Vê-se os padres as mãos, contentes, esfregando...
Mês em que a cera dá mais e a botica, e quando
Os carpinteiros têm mais obra p’ra fazer”.
E também são tristíssimos os versos do poema “Pobre tísica”, que começa assim;
“Quando ela passa à minha porta
Magra, lívida, quase morta,
E vai até à beira mar,
Lábios brancos, olhos pisados:
Meu coração dobra a finados,
Meu coração põe-se a chorar”.
A obra do Dr. António Almeida trata principalmente da longa luta travada contra a tuberculose no Porto, que incluiu, depois da chamada da atenção para a insalubridade nas “ilhas” do Porto por Ricardo Jorge em 1899, a criação pela Rainha D. Amélia nesse mesmo ano da Liga Nacional contra a tuberculose. Essa luta incluiu a angariação de fundos, como a venda do selo anti-tuberculoso, e a construção do Dispensário do Porto, da Colónia Sanatorial Marítima da Foz do Douro e do Sanatório Marítimo do Norte, na praia de Francelos (tal como os ares da montanha, os ares marítimos faziam bem à doença e houve quem fosse tratar-se para a Foz do Douro, assim como houve quem fosse – muitos deles nomes famosos – para a ilha da Madeira). O livro fala de outros sanatórios nortenhos como o de Montalto, no cimo da serra de Valongo, e o já referido Sanatório de D. Manuel II, que foi construído em 1933 no cimo do Monte da Virgem.
A tuberculose foi muito reduzida, em todo o mundo e também no Porto, com a descoberta da bactéria em 1882 pelo alemão Robert Koch (Prémio Nobel da Medicina em 1905). O primeiro sucesso de vacinação anti-tuberculose deveu-se aos franceses Albert Calmette e Camille Guerin em 1906. Foi a vacina BCG (Bacilo de Calmette e Guerin), usada pela primeira vez em seres humanos em 1921 (quem não se lembra dessa vacina no tempo da escola?). Mas só em 1946, com a preparação do antibiótico estreptomicina, o tratamento da doença se tornou possível. O norte-americano de origem russa Selman Waksman foi o autor da proeza, que lhe valeu o Prémio Nobel da Medicina de 1952.
No entanto, a luta com a doença está longe de estar terminada. A SIDA veio modernamente fazer recrudescer o velho mal. A tal ponto que o Dr. António Almeida termina o seu livro com um grito de revolta:
“Enquanto durar este tipo de mentalidade, enquanto as pessoas não forem informadas com verdade do poder da tuberculose, enquanto nas Universidades não se ensinar devidamente a realidade da tuberculose nas suas múltiplas facetas clínicas, enquanto a comunicação social não fizer uma campanha exigente, consertada e continuada no tempo, e enquanto a tuberculose não der votos, ou por outra, não sensibilizar os políticos, o Porto será a cidade portuguesa com maior número de casos de tuberculose, apesar de tudo o que atrás foi dito com verdade, com história e com alguma glória. Sinceramente não somos merecedores daqueles antepassados que tudo fizeram para que o mal não fosse maior”.
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5 comentários:
Há um erro. Amadeo morreu em 1918 com a gripe espanhola, não com tuberculose.
Muito obrigado pela correccao!
Já reli e não consigo ver no texto nenhuma referencia a Amadeo
Caro anonimo:
Retirei o erro!
Olá Carlos Fiolhais!
Tenho em minha posse um livro com o título "A Tizica" (tem um formato quadrado, com apenas esta história), escrito por J. de Miranda! O livro é do principio do século XX. Gostava de saber quem é o autor do livro, será que usou um pseudonimo? Você, ou alguém que leia esta mensagem, puderá ajudar-me nesta busca? Obrigado!
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