terça-feira, 20 de março de 2007

A génese do criacionismo

Em finais do século XIX, umas escassas décadas após a publicação d’«A Origem das espécies» de Charles Darwin, em 1859, a teoria da evolução, aceite pelos cientistas no mundo inteiro, começou a difundir-se entre a população em geral, mesmo nas comunidades cristãs de todas as variantes. Os líderes religiosos aceitavam não só a evolução das espécies como a ideia de uma Terra que o avanço da Ciência comprovava cada vez mais antiga. No entanto, defendiam uma «criação especial» do Homem e a literalidade da Queda, causadora do pecado original e da necessidade de um Salvador.

Muitos pensaram então que as inúmeras evidências da evolução do Homem, especialmente as fósseis, ditariam o fim até da crença da «criação especial», já que apenas subsistia um pequeno número de cristãos norte-americanos que conservavam uma leitura literal do Génesis. Mas o virar do século, que viu logo no seu alvor descobertas científicas que revolucionaram o mundo, viu nascer igualmente os movimentos que culminaram no atavismo que amanhã será debatido na Faculdade de Ciências.

Assim, em 1909 foram redigidos os «Fundamentals», textos de natureza doutrinária elaborados por teólogos de diversas confissões protestantes, que advogavam o literalismo bíblico. Estes movimentos evangélicos norte-americanos assumiriam uma postura que viria a ser muito característica dos movimentos fundamentalistas, e que se prende com a sua natureza política. De facto, os fundamentalistas, que se caracterizam pela oposição (muito veemente) a tudo o que possa, de alguma forma, colocar em causa a autenticidade e literalidade do seu livro sagrado, combatem a laicidade, nomeadamente a existência de leis e ensino «seculares». E combatem igualmente a ciência «secular»...

Um pouco antes, Ellen Gould White (1827-1915), uma americana semi-iletrada, tinha sido agraciada com mais uma de muitas «visões proféticas» - provavelmente originadas por uma lesão causada pela pedrada na cabeça em criança que a deixou em coma durante 3 semanas.

Este «transe» em especial é a pedra basilar de todos os criacionismos actuais já que foi uma «visão» da «Criação». White afirmava ter «testemunhado» que a Criação ocorreu em apenas 7 dias e que foi o Dilúvio de Noé que esculpiu a Terra tal como a conhecemos e simultaneamente enterrou animais e plantas no registo fóssil que enganou (e, segundo os criacionistas da Terra jovem como Jónatas Machado, engana ainda hoje) os cientistas.

Um jovem sem formação científica pelo nome de George McCready Price (1870-1963) juntou-se no final do século ao pequeno número de visionários liderado por White e resolveu dedicar a sua vida a uma defesa «científica» do «transe» da líder religiosa.

A cruzada de Price contra a evolução consistiu principalmente numa guerra «geológica» inicialmente sem disseminação fora da pequena comunidade dos Adventistas do 7º Dia. Mas após a publicação dos Fundamentals, a sua prosa absurda começou a ser distribuida entre os fanáticos norte-americanos de outras confissões evangélicas, que apreciavam o empenho anti-evolução do auto-didacta.

Embora não acreditassem na «geologia do dilúvio» defendida por Price nem vissem necessidade de uma Terra jovem, os fundamentalistas usavam todas as armas na guerra pela proibição do ensino da evolução nos Estados Unidos. Assim, depois de o ensino da evolução ser declarado crime no Tennessee, Mississippi e Arkansas - e proibido em Oklahoma e na Flórida (que o declarou impróprio e subversivo) - durante o Scopes Monkey Trial, em 1925, o advogado de acusação do criminoso professor evolucionista citou em defesa do criacionismo o trabalho do «cientista» Price.

As visões de White foram traduzidas por Price em 1923 num jargão menos analfabeto e publicadas num amontoado de disparates que dá pelo nome The New Geology. O New Geology foi ridicularizado pelos geólogos do mundo inteiro devido à enormidade dos erros e inanidades que continha. Nele Price defendia que as características geológicas actuais - incluindo a deriva dos continentes - são o resultado do Dilúvio Universal de Noé e não dos lentos processos geológicos descritos pelos cientistas. Price afirmava que a «coluna geológica» era constituída pelos sedimentos depositados pelo Dilúvio, enquanto que a totalidade dos fósseis eram simplesmente os corpos mortos dos organismos que não tinham tido a sorte de uma boleia na Arca. A geologia convencional, ululava Price, era uma fraude, promovida entre um público crédulo por cientistas ao serviço do Demónio e não passava de um conjunto de «métodos enganosos» inspirados «pelo Grande Impostor» já que «A Bíblia não pode conter informações falsas, e assim, se as suas declarações indubitavelmente entram em conflito com os pontos de vista dos geólogos, então estes últimos estão errados».

Muito da «geologia do dilúvio» de Price pode ser encontrada, quase intacta, nos textos dos criacionistas modernos*, nomeadamente é a base dos textos dos inventores do «criacionismo científico», Henry Morris, e John C. Whitcomb.


*Quem tiver estomâgo para tal pode assistir aqui a uma hora de um seminário sobre o tema de Kent Hovind, o DrDino que não conseguiu convencer o IRS americano de que não tinha jurisdição sobre os seus bens por estes serem de Deus. Hovind encontra-se na cadeia a cumprir pena por 58 acusações federais, de que se destacam a recusa em pagar impostos, incluindo segurança social para os seus funcionários - que Hovind pretende serem missionários - e ameaças a investigadores do IRS.

9 comentários:

Unknown disse...

lol, eu sabia que os delírios criacionistas tinham que ter origem numa grande pedrada.

Adorei a posta!! Muito didáctica. Vou usar e abusar. Esta história da pedrada é um achado, lol, lol

Unknown disse...

E o vídeo é bestial!

Junto estes para a troca:

http://www.youtube.com/watch?v=Z7Z82lm5oGQ

http://www.youtube.com/watch?v=hjxCp9LJLP0

Rui M disse...

Excelente texto. Realmente devia ter desconfiado que essas teorias da Terra Nova só poderiam ter resultado de "visões"

JVC disse...

As bactérias e os vírus também tiveram bilhete para a arca? E viajaram aos casais?

CAA disse...

Informação preciosa, texto muito bom. Parabéns Palmira!

Palmira F. da Silva disse...

Olá Carlos e todos os restantes comentadores:

Também achei esta informação preciosa :-)

Obrigado pelos cumprimentos, mas não há grande mérito no texto: os factos falam por si :-)

Eurydice disse...

Post magnífico!... :)
Para mim, a coisa mais difícil de entender neste tipo de fundamentalismo, é aquela incapacidade de compreender que DEUS PODE TER CRIADO UM MUNDO "EVOLUCIONAL", digamos... Seria bem mais complicado, e só abonaria em favor da sua magestade e omnipotência!...:))
Eu não sou propriamente crente, mas parece-me que a evolução não é incompatível com a crença de que deus criou o universo...

CN disse...

"não conseguiu convencer o IRS americano de que não tinha jurisdição sobre os seus bens por estes serem de Deus."

Dizer que são de Deus é como afirmar que são do proprietário como direito natural.

Podemos ser jusnaturalistas pelo uso da nossa razão ou filosofia como o podemos afirmar que os direitos negativos foram concedidos por Deus e não podem ser retirados pelos Homens.

Não vi o doc, mas não me parece disparate nenhum se fôr algo parecido com isto.

Na verdade, ninguém pode ter jurisdição sobre a propriedade honestamente adquirida de alguém.

O direito divino de um soberano ou de um grupo de pessoas já acabou há muito.

Quanto muito essa juridição é concedida a uma determinada entidade (IRS, Estado) voluntáriamente.

Se não é voluntária é porque a força e a ameaça de violência está a ser usada.

E o "direito" do mais forte ou da "multidão" não faz direito, ou faz?

E se assim é, será um crime, e como crime é contra Deus.

É fácil ridicularizar pessoas e pensamentos simples. Mas costumam ser os mais verdadeiros.

Paulo Kafka disse...

Gostei muito do texto...
Agora andando em remas:

A teoria do criacionismo é somente um suporte para determinadas crenças. O fato de Deus ter criado tudo(para quem acredita) não dá cabimento algum ao estabelecimento de dogmas que, supostamente, ele inspirou em seus discípulos...

Dogmas religiosos são uma forma de estabelecer um pacto social, ou seja, uma forma de estabelecer um "melhor" convívio em sociedade.
É incrível como Deus na visão religiosa somente age conforme ações humanas:

Ele pune os "ímpios";
Ele inspira livros;
Ele reza por nós;
Ele ensina...

Pelo pouco conhecimento que tenho, nenhum pássaro, elefante, girafa têm a capacidade de realizar tais ações...dizer que Deus é superior é a mesmo que nos vangloriarmos?

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