domingo, 23 de junho de 2024

Ponham-nos a ler!

Por Cátia Delgado
 
 
Foi apresentado, na passada quarta-feira, o novo livro, de título sugestivo - Ponham-nos a ler! - do reconhecido Michel Desmurget. O neurocientista francês, vem, com o resultado de novos estudos, asseverar que o melhor “antídoto”, a melhor forma de resistência para a escalada desmedida do digital é a leitura
 
Numa escrita que prima pela clareza, suportada por inúmeros estudos dignos de crédito, como já nos habituou, o autor não deixa dúvidas: o melhor caminho para a aprendizagem de qualquer área académica e, por inerência, para o desenvolvimento de aptidões intelectuais, é a leitura. De facto, pelo desenvolvimento de competências linguísticas podemos dotar as crianças e jovens das tão ambicionadas competências de espírito crítico e de pensamento complexo.  
 
Questionado, após o lançamento do primeiro livro, que alerta para os perigos que a exposição excessiva aos ecrãs representa para as crianças, o autor revela, agora, a melhor estratégia, de entre outras estudadas – como a arte, a música ou o desporto – para inverter os efeitos nefastos que esta tendência amplamente vulgarizada tem na cognição, em particular, mas também no desenvolvimento físico e emocional das crianças e jovens. Na apresentação do livro, Desmurget lembra que os jovens leem cada vez menos e pior, embora circulem informações contraditórias, e que, apesar dos esforços dos media para nos convencer do contrário, o uso indiscriminado de telemóveis nas escolas em nada ajuda. Embora se diga que ler no telemóvel também é ler, sobretudo o que é publicado nas redes sociais, o neurocientista afirma que ler o que está na internet não é muito nutritivo para a linguagem, sendo o tempo passado nos ecrãs inversamente proporcional ao tempo de leitura, além de que rouba tempo precioso às interações familiares e ao sono.

Partindo do pressuposto que ler é compreender, o grande problema da (não) leitura é a (não) compreensão do que se “lê”. Assim, a leitura (em papel) tem um valor acrescentado, não apenas para a aprendizagem de disciplinas como as línguas ou as humanidades, mas para se conseguir:
- alcançar aspetos cognitivos e emocionais;
- níveis mais elevados de inteligência.;
- desenvolvimento da linguagem;
- cultura geral;
- maior concentração, ao contrário dos ecrãs;
- desenvolvimento da expressão escrita;
- capacidade de pensar;
- melhor expressão oral;
- criatividade ...
Em entrevista recente, e focando-se no papel da escola e dos professores nesta batalha, o autor esclarece o que está a ser negado às crianças com a perda da leitura:
"Nos livros há mais palavras, mais gramática e mais complexidade [do que na língua falada] e esta complexidade e esta linguagem são a linguagem do pensamento. Quando a linguagem se deteriora nas crianças, o mesmo acontece com os conhecimentos gerais. Se compararmos as crianças que veem muita televisão com as que leem muito, as que leem têm mais conhecimentos gerais, mas não apenas sobre coisas que poderíamos pensar que são elitistas. A leitura dá-nos conhecimentos muito específicos sobre a vida e o nosso ambiente. Se o perdermos, perdemos a nossa capacidade de pensar de forma crítica. Um estudo da Universidade de Stanford perguntou se as crianças compreendiam o que era dito na Internet e a resposta é que tinham dificuldades. Tinham as palavras, mas faltava-lhes o conhecimento do mundo.
(...)
Antes, pensávamos numa educação humanista que não era para criar canalizadores, padeiros e médicos, mas para criar cidadãos. Isso é importante. E sim, estamos a perder isso. Agora falamos de saber-fazer. Penso que foi o Núncio Ordine que, numa das suas obras, falou da utilidade inútil da literatura, e é uma expressão magnífica. Não tem um efeito concreto, mas torna-nos mais inteligentes e mais capazes de pensar sobre tudo o que nos rodeia.
(...)
ninguém está a dizer que todos os ecrãs têm de ser retirados. Se os utilizarmos para computação, para procurar informação, ninguém nos dirá que não são corretos. A questão é saber a partir de que idade. Ensinar a utilizar os ecrãs não é o mesmo que utilizar os ecrãs para ensinar. Na verdade, o problema não é ensinar informática às crianças, mas sim o facto de não se poder contratar professores e ter de se pôr algo à frente dos alunos. Como não há professores, os ecrãs são melhores do que nada. Todos os estudos mostram que um professor competente é sempre melhor do que todos os ecrãs que podemos dar às crianças.
(...)
[Quanto à leitura] Não conheço nenhuma outra atividade que tenha um impacto tão profundo e universal na vida de uma criança como a leitura. Se queremos mudar as suas vidas em todos os aspetos, não há nada melhor. É a única coisa que traz o máximo pelo mínimo de investimento.
(...)
Quando pegamos num livro, ele tem uma espessura. O cérebro lida com a informação espacial do livro e é mais fácil lembrar-se e mover-se [através dele]. Num e-reader é o caos. Não há unidade e não se sabe onde se está. O tempo, graças à forma do livro, torna-se concreto. Há uma marca temporal, que é o número de páginas ou a relação entre as personagens. Vai-se compreender melhor um livro de papel do que um livro eletrónico.
(...)
temos de voltar a colocar a leitura no centro do sistema e limitar o tempo de ecrã. O que é reconfortante é o facto de haver uma sensibilização crescente para esta questão. Os meios de comunicação social, as pessoas, começam a interessar-se pelo assunto, porque se apercebem que existe um problema. O que é preocupante é que os estudos mostram que os professores já não leem e têm défices de linguagem.
(...)
É preciso que as pessoas compreendam que a leitura, quando se diz que é importante, é porque nos torna mais inteligentes e tem um efeito sobre o conhecimento, a criatividade, a imaginação e a nossa capacidade de escrever."

1 comentário:

António Pires disse...

Este problema da falta de leitura vai-se agravando no próprio ensino universitário, já para não falar no chamado ensino politécnico, onde nos últimos tempos pontifica a chamadas escolas superiores de educação que arrebentaram com o ensino secundário público em Portugal. No meu tempo de estudante universitário, há muito, muito tempo, para o estudo de muitas cadeiras a base ainda era a leitura do livro. Agora verifico que para fazer uma disciplina nos politécnicos, como o Instituto Superior de Engenharia do Porto, os estudantes já não precisam de ler livros. Basta decorar, exercícios atrás de exercícios e aplicar os formulários fornecidos, mesmo sem entender patavina da matéria, nomeadamente os conceitos da física implicados na resolução de problemas, para ser aprovado com distinção. É o chamado ensino para o diploma.

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