domingo, 5 de fevereiro de 2023

CANETA DE SUA MÃO


O formol é uma solução aquosa de metanal ou formaldeído (o aldeído mais simples), que, por sua vez, é uma substância orgânica, cujas moléculas são constituídas por um átomo do elemento químico carbono, um átomo do elemento químico oxigénio e dois átomos do elemento químico hidrogénio, apresentando a fórmula química CH2O e a seguinte fórmula de estrutura condensada:

Esta solução aquosa é usada na conservação de tecidos mortos, uma vez que atua como fixador químico, isto é, liga-se à estrutura das proteínas alterando-a e evitando a sua decomposição por bactérias. Assim, o coração de D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal (1798-1834), que no término da sua vida se opusera à escravidão, permanece conservado em formol. 
Ora, recentemente, enquanto lia o livro "Entre dois rios e outras noites", da poetisa Ana Luísa Amaral, reencontrei-me com o formol, que é também usado como desinfetante, neste belíssimo soneto:

CANETA DE SUA MÃO

                       (Para a Celina)

Seguro esta caneta, escrevendo
por varanda de hospital. É bonita,
a caneta, eu é que tenho estado
um pouco mal. Derramei-me por

sangue e tinta preta, reencontrei
o sol, as borboletas roçaram-me 
o seu pólen de veneno, salvou-me 
um balão de horas e formol.

Suspenso, o mal que tive foi um mal
civil, não foi um mal de Império,
felizmente. É bonita a caneta

com que escrevo daqui, desta varanda
de hospital. E não é feia a minha
mão. E é pequena. E sente. 

Na literatura universal, ninguém amou mais as borboletas do que Nabokov. Nas suas memórias, escrevera: "Do nada, uma borboleta-polygonia, pousando em um degrau alto da varanda, estirou, plana, suas asas de bronze esculpidas, fechou-as de imediato para mostrar os suportes brancos na parte de baixo cor de ardósia, cintilou uma vez mais - e se foi". Só a paixão por uma mulher, para este escritor russo, poderia superar a paixão pelas borboletas. A razão de adejarem para as varandas, já a sabemos, talvez não saibamos do perigo que corremos ao agarrá-las, e não sabemos nada sobre o amor. A vida, porém, vai nos ensinando, entre outras coisas, que, pelos nossos verdadeiros amigos, podemos pôr as mãos no fogo; que temos de desconfiar da beleza, caso contrário, corremos o risco de uma queimação; e que a mulher amada, quando a julgamos ter na mão, pode abandonar-nos de súbito. Por outro lado, quando penso numa caneta na mão, volto-me sempre para um verso de Dylan Thomas: "The hand that signed the paper felled a city". A literatura, seja de que gênero for, nem sempre é dirigida ao coração de quem a lê como o são os romances "Doutor Jivago", de Boris Pasternak, ou "Anna Karenina", de Leon Tolstói. Contudo, apesar de amar os livros e de gostar de escrever, a meu ver, nada é mais belo e sublime do que o calor de uma mão em outra mão. Por isso, "Dá-me a tua mão, companheira/ Até o Abismo da Ternura Derradeira 1."

1- Versos de José Gomes Ferreira


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