sábado, 28 de janeiro de 2023

O Futuro da Europa


Meu artigo  in Michela Graziani, Annabela Rita (edited by), Europa: um projecto em construção. Homenagem a David Sassoli, pp. 185-189, 2023, published by Firenze University Press, ISBN 979-12-215-0010-3, DOI 10.36253/979-12-215-0010-3

Em Maio de 2022 foi divulgado pela União Europeia o Relatório Final da Conferência sobre o Futuro da Europa. O italiano David Sassoli, Presidente do Parlamento Europeu que tinha lançado a iniciativa, falecera em 11 de Janeiro desse ano, com apenas 65 anos, pelo que já não pôde ver esse relatório. Um florentino que estudou Ciências Políticas na Universidade La Sapienza em Roma, tornou-se um dos mais conhecidos jornalistas italianos, designadamente na televisão, tendo abandonado essa actividade em 2009 em favor de uma carreia política, que iniciou com a entrada para o Partido Democrático italiano e com a sua eleição, por uma votação muito expressiva, nas listas desse partido para o Parlamento Europeu. Reeleito para o mesmo Parlamento sucessivamente em 2014 e 2019, foi eleito pelos seus pares dessa instituição, nesse último ano, Presidente da instituição (já era Vice-presidente). Morreu em funções de uma doença fulminante. Os seus ideais sempre foram a Europa, a democracia, a liberdade, os direitos humanos, a solidariedade e o desenvolvimento.

 A Conferência sobre o Futuro da Europa, que decorreu entre Abril de 2021 e Maio de 2022, foi uma das iniciativas europeias que mais mereceu o seu empenho nos seus últimos tempos de vida. Não se tratou de uma cimeira de líderes, mas sim de um conjunto alargado de debates que envolveram os cidadãos de todos os países (27, desde a saída do Reino Unido em 2020) que constituem a União, ultrapassando a barreira da diversidade linguística (existem 24 línguas) graças a meios tecnológicos inovadores (foi desenvolvida uma Multilingual Digital Platform). Mais de cinco milhões de cidadãos acederam à referida plataforma e mais de 700 000 cidades participaram nos numerosos eventos realizados em vários países, apesar da pandemia Covid-19 que então grassava. Foi a 24 de Março de 2021 que se iniciou formalmente a Conferência sobre o Futuro da Europa na sede da União Europeia em Bruxelas, duas semanas após a Declaração Conjunta sobre a Conferência, que foi assinada por David Sassoli, como Presidente do Parlamento Europeu, António Costa, o primeiro-ministro português então à frente do Conselho Europeu, e Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia. Disse David Sassoli nessa ocasião:

«O dia de hoje assinala um novo início para a União Europeia e para todos os seus cidadãos. Com a Conferência sobre o Futuro da Europa, todos os cidadãos europeus e a nossa sociedade civil terão uma ocasião única para construir o futuro da Europa, um projeto comum que permite o bom funcionamento da democracia europeia. Convidamos todos a participarem e a fazerem ouvir a vossa voz, a fim de construir o que será a Europa de amanhã, o que será a VOSSA Europa» (Sassoli 2021).

 A 9 de Maio de 2022, o Dia da Europa (por ser o aniversário da “Declaração Schuman”, de 1950), os corpos directivos da Conferência, reunidos em Estrasburgo, anunciaram os resultados das suas discussões, no Relatório no qual foram elencadas 49 propostas aos Presidentes da Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão. Os temas eram nove: alterações climáticas e ambiente; saúde; economia mais forte, justiça social e emprego; a União Europeia no mundo; valores e direitos, leis e segurança; mudança digital; democracia europeia; migrações; e, finalmente, educação, cultura, juventude e desporto. As centenas de medidas concretas que foram apontadas constam do referido relatório. 

Os resultados dessa Conferência ficaram como pujante testamento político de David Sassoli, que acreditava firmemente no futuro da Europa. Tal como ele (acontece sermos da mesma idade), acredito que a Europa tem futuro, embora tenha de o construir colectivamente ultrapassando mil e uma dificuldades (Sassoli assistiu ao alastramento da pandemia de Covid-19; mas já não assistiu à invasão da Ucrânia pela Rússia, duas adversidades que vieram reforçar a debilitada coesão europeia). Tal como ele, estou convencido de que a Europa não tem outro futuro a não ser aquele que conseguir pelas suas próprias mãos, dadas em conjunto. A Europa é o Velho Continente, cujas origens remontam à pré-história (estão documentadas pela arte rupestre e por primitivos artefactos líticos), mas cujos alicerces estão na herança deixada pelas Antiguidades Grega e Romana (que nos legaram, para além da arte, a ciência e o direito), e na herança cristã (que impregnou a comunidade de valores que ainda hoje prevalecem). A história da Europa foi marcada pela Revolução Científica e pela Revolução Industrial, a primeira ocorrida nos séculos XVI e XVII e a segunda nos séculos XVIII e XIX, que foram semente do conhecimento e do desenvolvimento mundiais. A Europa foi o sítio da Magna Carta e da Revolução Francesa, que serviram para afirmar, não obstante todas as contradições, os valores da justiça, da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Apesar de ter sido palco de duas guerras mundiais, que originaram devastações terríveis, foi também o palco de afirmação de um grande alargamento da União Europeia. 

A minha vida, tal como a de Sassoli e todas os outros europeus da nossa geração, teria sido outra sem o nascimento e desenvolvimento do projecto da União Europeia. Portugal entrou um pouco tardiamente, com a cerimónia protagonizada do lado português pelo primeiro-ministro Mário Soares realizada no Mosteiro dos Jerónimos a 12 de Junho de 1985, na qual ficou prevista a entrada de Portugal a 1 de Janeiro do ano seguinte na então chamada Comunidade Economia Europeia – CEE.

 Nessa data eu já tinha calcorreado uma boa parte da Europa, durante e após uma estada de três anos e meio, entre Agosto de 1979 e Dezembro de 1982, para realizar o doutoramento em Física Teórica na Universidade Johann Wolfgang von Goethe em Frankfurt/Main, a cidade onde hoje é a sede do Banco Central Europeu. Foi, para mim, uma oportunidade magnífica para conhecer um país muito mais desenvolvido, em múltiplos aspectos, que o Portugal da época. Do coração da Europa, e usando as boas vias ferroviárias europeias, pude viajar a vários países europeus, a começar pela própria Alemanha (conheci a Alemanha de Leste antes e depois da queda do muro, tendo notado a diferença), a Áustria, a Suíça (que, não pertencendo à União Europeia, não deixa por isso de ser europeia), a França a Espanha, a Itália, a Jugoslávia (que já não existe hoje, mas sim as partes em que se decompôs), a Bélgica, a Holanda, o Reino Unido, a Dinamarca, e a Suécia. Uma das experiências que mais me marcou foi o facto de poder viajar pela Europa da CEE com inteira liberdade. Antes de 1986, havia caricatas limitações à entrada e saída de pessoas em Portugal (as barreiras impediam em Vilar Formoso que se circulasse de noite: era como o país estivesse fechado para sono). Pude nessas viagens reparar que a liberdade era condição de desenvolvimento. Um dos meus primeiros vislumbres da liberdade de costumes que se vivia fora das portas portuguesas tive-o quando no Verão de 1975 estive quase duas semanas em Londres. A liberdade tinha chegado a Portugal há pouco tempo, mas no Reino Unido já campeava há muito.

 A diferenciação de línguas e culturas nunca foi obstáculo ao trabalho conjunto: pude, por exemplo, testemunhar a boa integração de trabalhadores portugueses na Alemanha (ao contrário do que acontece hoje, os portugueses emigrados eram em geral pessoas de condição social humilde, que fugiam à pobreza na sua terra natal). Noutro enquadramento organizacional, os trabalhadores portugueses eram tão bons como os melhores. Faltava-nos em casa – e falta-nos ainda – uma organização que seja aceite e consciencializada. 

Em 1987 pude assistir como muitos estudantes portugueses, alguns deles meus alunos, beneficiaram de estadas em instituições de ensino e investigação espalhadas pela Europa ao abrigo do programa Erasmus, uma das instituições europeias mais bem conseguidas. Em 2002, muitos anos volvidos após o meu regresso em Portugal, pude assistir, com satisfação, à entrada em circulação do euro, feito em Portugal ao mesmo tempo que em vários outros países europeus. Pertenci ao grupo daqueles muitos europeus, que viram com mágoa a saída do Reino Unido da União Europeia, depois do referendo de 2016, pois aquele país, pese embora a ruptura com a união política a que pertencia desde 1973, não deixou e não deixará de ser parte da Europa. 

A relação entre a Europa e a ciência é íntima: se o conhecimento racional nasceu na Antiga Grécia, ele foi assaz revitalizado no Renascimento com o italiano Galileu Galilei, o ‘pai’ do método científico (que, tendo nascido em Pisa, viveu em Florença como Sassoli). A divisão religiosa que se deu na Europa no início do século XVI e que marcou a geografia cultural europeia não impediu que cientistas contemporâneos de Galileu, como o alemão Johannes Kepler, e sucessores, como o inglês Isaac Newton, fortalecessem em conjunto o poder da ciência. O trabalho da comunidade científica foi impulsionado por academias científicas como a Accademia dei Lincei e a Accademia del Cimento, respectivamente em Roma e Florença, em Itália, e a Royal Society de Londres, no Reino Unido, as duas primeiras ligadas a Galileu e aos seus discípulos, e a terceira a Newton. Portugal, que foi precursor da Revolução Científica com as viagens de Descobrimentos e que a transferiu para o Extremo Oriente, implantando-a nessas remotas terras, só no Iluminismo conseguiu, com a Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra em 1772, institucionalizar o ensino assente no método científico, ainda assim com algumas limitações (por exemplo, os chamados «estrangeirados», como João Jacinto Magalhães em Londres ou Luís António Verney em Roma, experimentavam alguma dificuldade em exercer o seu magistério em Portugal). O ‘atraso português’ pode ser comprovado pelo facto de a Royal Society ter sido fundada em 1660 (o rei inglês Carlos II, que lhe deu carta, foi casado com a nossa Catarina de Bragança); a primeira academia portuguesa de ciências, a Real Academia das Ciências de Lisboa, só foi criada em 1789. Beneficiei, como muita gente em Portugal, dos investimentos que a Europa fez em Portugal, designadamente na formação superior (pré e pós-graduada) e no desenvolvimento da investigação científica, que foi extraordinariamente fomentada por José Mariano Gago, professor de Física e político com quem tive o prazer de privar (foi o primeiro titular da pasta da Ciência e Tecnologia em 1995, no primeiro governo de António Guterres). Sem o financiamento europeu, a ciência em Portugal, estando ainda abaixo da média europeia (1,6% do PIB de investimento em contraste com os 2,2% da média europeia, segundo as estatísticas de 2020), estaria certamente num nível ainda inferior. Como professor e investigador visitei vários centros universitários e de investigação da Europa (o maior dos quais é a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear - CERN, um bom símbolo da pujança científica europeia) e participei em vários programas europeus. 

Voltando à Conferência sobre o Futuro da Europa, a característica que mais salta à vista é o seu carácter democrático: Sassoli e outros dirigentes europeus queriam uma Europa construída de baixo para cima, preocupada acima de tudo com as necessidades dos cidadãos, e não de cima para baixo. A Conferência proporcionou uma pluralidade de eventos em vários países, incluindo o nosso (embora Portugal não tenha sido infelizmente dos mais dinâmicos). Participaram mais ou menos activamente todos aqueles que o quiseram fazer

Na sessão plenária de encerramento da Conferência, cerca de uma centena de cidadãos, que representavam os numerosos e diversos participantes, enfatizaram que a Europa estava baseada na solidariedade, na justiça social e na igualdade; que devia ser uma meta a liderança europeia das transições climática e energética (que estão, de resto, associadas de perto) e a criação de uma economia que é sustentável; que a Europa precisa de ser mais democrática e participativa; que era necessária maior harmonização de políticas nacionais em vários domínios; que a Europa tem de procurar no mundo global em que hoje vivemos ser mais autónoma e competitiva; que está e deve continuar a estar baseada em valores; que é preciso reforçar a consciência europeia; e, finalmente que são assaz relevantes a educação e a formação ao longo da vida, pois sem elas não há verdadeiro poder dos cidadãos. 

Actualmente a Europa e o mundo enfrentam desafios tremendos. Vale a pena distinguir três, que as conclusões da Conferência sobre o Futuro da Europa valorizam: as questões das alterações globais (Portugal é um dos países mais sujeitos às alterações climáticas, dada a sua maior susceptibilidade a secas, que têm implicações nos fogos florestais, subida das águas do mar); as questões da inteligência artificial (que no mundo em geral e em Portugal em particular estão a mudar as nossas vidas); e as questões da saúde, em particular as doenças ligadas ao envelhecimento (Portugal vai ser em 2050 um dos países mais envelhecidos do mundo, o que trará encargos ao seu sistema de saúde). Essas grandes questões terão de ser resolvidas com base não só na melhor informação científico-técnica, mas também em sólidas noções éticas e numa actuação política orientada para o bem comum.

  melhor homenagem que hoje podemos prestar a David Sassoli consiste na fidelidade aos valores europeus, que ele tão convictamente defendeu. A ciência e tecnologia vão ser decisivas na determinação do nosso futuro, mas sem valores europeus como os da liberdade, da igualdade e da solidariedade a ciência e a tecnologia pouco poderão fazer. 

Referências bibliográficas 

Sassoli, D. 2021. “Conferência sobre o Futuro da Europa: Dialogar com os cidadãos para construir uma Europa mais resiliente.” Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia. https://www.2021portugal.eu/pt/noticias/conferencia-sobre-o-futuro-da-europa-dialogar-com-os-cidadaos-para-construir-uma-europa-mais-resiliente/ (10/22).

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