quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

O futuro, que afinal já foi

Por João Boavida

O Romantismo começou por atacar a harmonia iluminista e racionalista, valorizando o excesso, a inspiração, as forças da natureza, as dinâmicas profundas das pessoas e dos povos. Ou seja, forças mais ou menos obscuras que, não sendo propriamente maneiras irracionais do agir humano, fogem em boa parte ao controlo racional e vão mergulhar em zonas em que a racionalidade deixa de ser central, ou até predominante.

Entre muitos outros fatores e a influência de muita gente, as convicções racionalistas perderam terreno com o contributo das psicologias da profundidade, ou abissal, ou seja, de zonas até então ignoradas, ou só intuídas vagamente. 

Pelos trabalhos de Carl Gustavo Jung, que foi beber a Schopenhauer o valor e peso do irracionalismo, ficamos a saber do inconsciente coletivo, essa parte da essência humana que não controlamos conscientemente e que nos é transmitida pelo envolvimento cultural e humano, para além do mesmo Jung ter estudado os sonhos, os mitos, a psicologia das religiões e outros domínios afins. E pelos estudos de Sigmund Freud, que descobriu, por baixo da nossa camada racional, outras, mais obscuras e difíceis de controlar (como o subconsciente e, mais profundo ainda, o inconsciente) fomos confrontados com campos novos e assustadores no comando da alma humana.

A descoberta destes novos domínios e forças não só revelou dimensões que só vagamente pressentíamos, com alterou muitos dos nossos comportamentos e motivações, proporcionando inúmeros campos de exploração e de realização artística. 

A razão, a análise objetiva, o juízo correto e as operações racionais logicamente válidas veem reduzidos o seu âmbito e valor ao descobrirem-se estas vastíssimas e desconhecidas forças motivacionais. As racionais continuam a ser valiosas, certamente, até porque são o que mais nos especifica e distingue da restante natureza, mas estão longe de ser, e de poder compreender, toda a nossa realidade. 

E, por outro lado, vêm realçar o quanto precisamos de treino, de bons hábitos e de melhores práticas para as desenvolver, porque estão longe de um acesso imediato, espontâneo e generalizado. Nada é dado de mão beijada, os níveis mais elevados de comportamento humano e da organização social precisam de educação. O que há a fazer, portanto, é educar cada geração sistemática, repetida e insistentemente porque o que se consegue num lugar, pode ficar longe, noutro, e o que se alcança numa geração pode perder-se na seguinte. 

Foram essas forças que a criação artística começou a valorizar e a explorar, e o facto de a razão estar sempre pronta para fugir ao nosso domínio e ceder a forças que dominamos mal, ou não dominamos mesmo, pode ser uma perda, em termos racionalistas, e em certo sentido é, mas a descoberta de novos campos e de muitas dinâmicas novas e complexas foi uma bênção para a criação artística e os domínios da sua manifestação.

Por outro lado, as ideias humanistas e iluministas não resistiram ao brutal ataque que resultou de duas guerras mundiais, e o absurdo que sacrificou milhões de vidas e destruiu a Europa não podia deixar de influenciar o pensamento e a arte. Que força tinha a razão humana se tais desastres não evitou? Podíamos continuar a acreditar nela? Qual é o seu verdadeiro peso nos comportamentos humanos?

Face à irracionalidade e ao barbarismo a que se chegou era inevitável que a crença na humanidade enfraquecesse muito, e que a ideia de um estado definitivo de racionalidade nas relações entre as pessoas e os povos entrasse em descrédito, provocando angústias de que certas filosofias e movimentos artísticos e contestatários foram sendo manifestações visíveis e bem demonstrativas.

Ora, nestas condições, a arte, que já tinha descoberto, com o Romantismo, as forças obscuras da inspiração, foi confrontada com campos novos, confusos mas fortíssimos, de algum modo até irracionais, e que implicaram – era inevitável – alterações profundas nos quadros e nos padrões criativos e interpretativos até aí mais ou menos estabelecidos. Claro que sempre houve exceções, (a pintura de Hieronymus Bosch, séculos XV-XVI, é um belíssimo exemplo das forças obscuras que podem mobilizar a arte) mas, dum modo geral, essas forças subterrâneas eram desconhecidas, e, sobretudo, reprimidas pela integração em quadros inteligíveis e racionalizadores, e com padrões de qualidade que a arte sempre teve como preocupação fundamental.

É óbvio que a literatura não podia ficar de fora desta vaga transformadora. Talvez possamos dizer que a grande contribuição é a do romance, sem esquecer a poesia e o teatro, por exemplo. Mas é com o romance dos séculos XIX e XX (e alguns bons exemplos anteriores, de que já aqui se falou), que trazendo a narrativa literária do céu à terra e das altas cavalarias e aristocracias à vida corrente, operária, burguesa, campesina, em todo o caso plebeia, vem valorizar tudo o que até aí era desprezível, ou sem valor social e humano, alargando temas e formas de realização, o que significa que as técnicas e os modos de fazer se diversificaram, multiplicaram e alteraram profundamente. 

Depois, há autores como Dostoiévski, que pela capacidade de revelar personalidades caóticas, perversas, cruéis, com comportamentos moralmente repugnantes, ou angélicas e de grande elevação moral, as transformou em temas literários de primeira grandeza, revelando o tal fundo obscuro e inconsciente que os psicólogos referidos vieram descobrir e estudar. De facto, o grande interesse, ainda hoje, de Dostoievski não é propriamente a qualidade da escrita, que podia ser melhor, mas a capacidade de intuir o mais fundo da alma humana, mesmo nas manifestações mais aberrantes, e descrevê-las inserindo-as nas situações e à luz das convulsões sociais e psicológicas do seu tempo, aliás numa premonição notável dos acontecimentos que depois se deram na Rússia e em toda a Europa. 

Problemas morais, e existenciais, que sempre dilaceram os homens, como o bem e o mal, a culpa e o remorso, a condenação e a salvação são dominantes nas suas obras. E, talvez, acima de tudo, o que tem a ver com a relação da teologia com a ética, de grandes tradições na nossa cultura mas que os racionalistas desvalorizaram pela crença excessiva na componente racional dos comportamentos humanos. Dostoiévski recupera todos esses problemas com uma força criativa impressionante expondo-nos as feridas profundas que se estavam a abrir, ou já estavam abertas, e de que o vazio moral dos nossos dias é consequência e exemplo. 

Quando se lê o Manifesto Futurista, de Filippo Marinetti ou o famoso Manifesto anti-Dantas, de Almada Negreiros (ou quando se lê, por exemplo, a Ode Marítima, de Álvaro de Campos, que nada tem que ver com os referidos manifestos) não podemos deixar de ser tocados pela premência de romper quadros anteriores, visto já não representarem as novas realidades psicológicas e sociais, nem a nova dinâmica que se adivinha por todo o lado. O futuro era, para eles, uma realidade fulgurante, embora nebulosa, uma enorme força atrativa mesmo que sem grande rumo. 

E as vanguardas, tão pujantes e irreverentes em todo o século XX, não só encontraram campos novos, vastos e riquíssimos, como foram, por sua própria natureza, à procura deles. Era preciso dar conta destas novas realidades, ir ao seu ao encontro, acertar o passo e ser dessa novidade a cúpula, o zénite. Foi sobretudo este impacto renovador que as identificou e dinamizou. Se é certo que reagiram a um “falso artisticismo”, o que provocou quase sempre revoluções formais, a sua intenção fundamental era a inovação pela libertação dos condicionalismos que as novas realidades psicológicas, sociais estavam a exigir. 
 
É claro que o futuro, à custa de se presentificar cada vez mais rapidamente, em muitos casos depressa se esgotou e ficou para trás, e que muitos dos movimentos pujantes que pareciam capazes de projetar sempre o futuro em novas formas, acabaram por ser, em muitos casos, devorado pela própria pressa e sofreguidão. A vertigem da inovação acabou por transformar muitos projetos inovadores em simples velocidade, e esta, em valor, e, assim perdendo metas à custa de fazer do incessante correr a própria meta. 

E, por isso, hoje restam muitos cacos, ao lado de coisas magnificamente conseguidas, e de que a famosa ode pessoana é um bom exemplo. Tudo isso teria, necessariamente, que alterar os cânones artísticos. Até porque, muito daquilo que era desconhecido, ou reprimido, transformou-se em tema privilegiado, e em muitos casos até dominante. As inúmeras novidades formais que foram tentadas não são mais do que esforços para encontrar as formas adequadas ou mais suscetíveis de expressar essas novas realidades. Mas que não podiam deixar de ser fonte de desentendimentos, de reações, e até de aversões mais ou menos militantes, porque estavam em causa, como sempre estão, alterações canónicas de maior ou menor amplitude.

Por tudo isto, a arte moderna é o resultado de um vasto e indefinido campo de influências e de forças que estão longe de ser dominadas, ou até de o quererem ser, mas que refletem a pretensão a ser, delas, concretização estética. E a sua eventual complexidade, ambiguidade e ininteligibilidade, resultante da multiplicação e reconversão da ângulos e perspetivas, teria forçosamente que refletir, a muitos níveis, essa revolução.

É bom não esquecer que a revolução industrial veio levantar problemas nunca antes vividos, e transformar modelos de vida, de sensibilidade e de entendimento com séculos e séculos de vigência. Era inevitável pois que a chamada arte moderna procurasse traduzir tudo isto, mas também era de prever que iria criar anticorpos e reações um pouco por todo o lado. É hoje evidente que muito do que foi tentado não tinha condições para vingar, e todos os que, sem talento, tentaram navegar as novas ondas, talvez pensando que as condições de matéria e forma podiam subverter-se sem males de maior, perderam e continuam a perder a batalha. Entretanto, imensos contributos modernos foram já assimilados e tornados indispensáveis, nos atuais cânones.

Neste sentido, a arte moderna – das artes plásticas, à música, da arquitetura à literatura – é um extraordinário campo, de glórias e de desgraças, de sucessos e de insucessos, de aceitações e de repúdios, mas que o tempo já vai separando, e continuará a separar. 

João Boavida

7 comentários:

João Boavida disse...

O seu comentário, caro Dr. Carlos Ricardo Soares, é tão variado e toca tantos pontos que podia dar para muitos artigos. Claro que a racionalidade é fundamental nos humanos mas ela é uma faculdade exigente que obriga a práticas intelectuais rigorosas, e que muitas vezes, é obscurecida e superada por sentimentos, paixões, ódios e todas essas manifestações que em geral degradam o ser humano. Além disso, necessita de honestidade intelectual, coisa que nem toda a gente tem ou de que sente necessidade. Os racionalistas foram um pouco ingénuos ao pensar mais em termos universais e menos em termos locais e pessoais, que são aqueles em que a maioria das pessoa se move. E, além disso, há componentes do comportamento, que não controlamos porque não os conhecemos, mas que têm um peso excessivo e são responsáveis por grandes erros, injustiças e faltas de clarividência, que vão gerar reações, em cadeia, muitas vezes péssimas e de resultados funestos. Os desastres cometidos no século XX foram tantos e tão grandes que a descrença na razão era inevitável. Sem educação racional, social e moral tudo está em perigo e cometem-se, como sabe, as maiores barbaridades. E voltamos sempre ao mesmo: a educação!

Isaltina Martins disse...

Belíssima análise e síntese da evolução das artes, como manifestação da vida, do pensar da sociedade de cada época. Num texto curto e bem fundamentado, abrangendo um largo período histórico, o Doutor Boavida conseguiu abarcar os vários domínios do pensamento, as relações entre a razão e o "coração" na diversas formas de manifestação artística. Obrigada e parabéns por esta síntese tão proveitosa. É sempre um gosto ler os seus textos e aprender consigo.

João Boavida disse...

Obrigado, Drª Isaltina, mas não exagere.

Carlos Ricardo Soares disse...

Caro Doutor João Boavida, em matéria de esperança do que venha a ser a humanidade, a minha posição tem sobretudo a ver com a explicação e a compreensão do ser humano, enquanto indivíduo e ser social. Infelizmente do facto de alguém ser humano não decorre nem a compreensão, nem a explicação, conhecimento, do que se é. Mas a opacidade não é total e, como muitas vezes acontece, temos de recorrer à ajuda de um espelho, ou de uma microcâmara na ponta de um fio, ou numa cápsula ingerível e outras técnicas de observação, para ultrapassarmos os limites naturais dos nossos sentidos periféricos que, não raro, estão avariados, ou inutilizados.
De qualquer modo, estes processos exploratórios costumam ser realizados por equipas organizadas e munidas de planos e de objetivos que ultrapassam em muito a simples curiosidade e interesse de A ou B.
Quando passamos da natureza física e biológica do ser humano para a história, para aquilo que somos capazes de identificar e de atribuir aos humanos, como marcas do que fizeram, dificilmente deixamos de sentir profunda desilusão mas, por outro lado, não deixamos de nos identificar, ainda que a contragosto, com as suas razões. E o mesmo acontece relativamente aos seres vivos, em geral, que seguem uma linha de acomodações e de "incomodações", tanto endógenas como exógenas, que nos são profundamente familiares, para não dizer nossas.
Na realidade, embora a história possa ser vista e pensada das causas para os efeitos e dos efeitos para as causas, dificilmente ou nunca veremos que os efeitos pretendidos tenham sido alcançados e, por outro lado, dificilmente ou nunca deixaremos de ver que os efeitos foram causados menos em função dos efeitos pretendidos do que em função dos efeitos que eram desconhecidos, imprevistos e indesejados.
O indivíduo faz tudo o que está ao seu alcance para sobreviver.
Em casos limite, por ironia “do destino”, já aconteceu, e parece que é normal, estou a pensar em prisioneiros que são levados e amarrados e abatidos, o indivíduo parece ter escolhido não resistir e não lutar por acreditar que teria hipóteses de ser poupado. Deixa-se amarrar e neutralizar, ou mesmo opta por não se rebelar, por acreditar que, assim, tem mais hipóteses de sobreviver. A perda de liberdade apresenta-se como possivelmente temporária e estamos, de algum modo, habituados a ela, até ao limite da morte.
Mas o indivíduo já não fará qualquer coisa que esteja ao seu alcance, por ex., para obter prazer, ou, mais genericamente, satisfação. Neste caso, as situações podem ser muito diversificadas, desde obter prazer sexual a obter satisfação alimentar, passando por formas de prazer e de satisfação lúdica, intelectual, artística, moral, social, onírica, bem estar corporal...
O grau de satisfação que o indivíduo busca pode, aliás, estar muito abaixo daquilo que seria uma ambição, e limitar-se a desejar viver modestamente, em paz, com o seu riacho debaixo do travesseiro e os grilos a cantar no campo. Em determinadas condições, este pode tornar-se um desejo que não será satisfeito. Há situações em que o indivíduo é arrastado para uma espiral de violência e de medo e de terror.
A minha esperança é que o homem aprenda, nem que seja à força, a respeitar a força. Não tenho esperança em que o homem faça o favor de respeitar o homem. Não conto com isso, não por pensar que é impossível, mas por pensar que só posso contar com o que é inevitável. Deve-se tentar tudo antes de usar a força, até porque não se sabe antecipadamente de que lado está a maior força.
O resto da história já é conhecido. E o problema que subsiste, desde sempre, é que o ser humano, embora seja a única fonte e autoria de significado e de sentido, criador dos deuses e dos estados e das leis e das igrejas, continua a ser subestimado e desrespeitado pelos representantes dos deuses, dos estados, das leis e das igrejas.
Dir-se-ia que o “espírito” da arquitetura egípcia, das pirâmides faraónicas, continua a ser mais facilmente adotada, também na estrutura da nossa cultura, do que a beleza democrática da arquitetura grega do Partenon, de Péricles.

João Boavida disse...

Os comentários do Dr. Carlos Ricardo Soares vejo-os sobretudo como formas de complementar o que nos artigos não foi dito porque eles obrigam a uma certa linha e não é possível desviarmo-nos para todos os atalhos sem perder o caminho principal, nem analisar sem perigo tudo o que vai aparecendo pela esquerda e pela direita de um raciocínio que leva o seu caminho. Se o fizéssemos nunca chegaríamos ao fim. Por isso são sentidos como complemento, e como forma de dar luz a muitos aspetos laterais, ou desenvolvimentos possíveis que o texto de partida não poderia ter, ou que o levaria à pulverização se o tentasse. Só tenho, portanto, que os agradecer e integrar no tema, de acordo com as minhas possibilidades, as suas sugestões e ideias.

João Boavida disse...

Também quero comentar o comentário que fiz ao comentário da Drª Isaltina Martins. É que, lido na sua forma breve pode parecer seco e mal agradecido, mas não o pretendeu ser. É um comentário muito simpático, e só tenho que agradecer. Mas não sou especialista em literatura, nem em teoria da literatura, e como pouco posso ensinar para lá do que é possível pensar qualquer leitor informado, achei-o exagerado, sobretudo vindo de uma pessoa com a cultura clássica e pedagógica da Drª Isaltina Martins. Talvez seja preferível dizer que vamos aprendendo uns com os outros..

João Boavida disse...

É o que eu penso: ocasião para esclarecer pontos de vista ou percorrer atalhos que, no final, pertencem (ou podem pertencer) a uma campo mais vastos em que todos os assuntos se integram, ou podem integrar. O domínio das minudências teóricas não tem fim e se queremos chegar a qualquer parte temos que deixar muita coisa para trás, que, é pressuposto ou fica à espera de outros desenvolvimentos necessários a esses novos campos.

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