domingo, 22 de maio de 2022

Cosmos em Português

MEU ARTIGO NO ÚLTIMO JL: 

 São muitos e alguns deles muito bons os livros de divulgação científica sobre o Cosmos em português. Podemos hoje chamar clássicos aos que saíram nos anos de 1980 na Gradiva, como Cosmos, de Carl Sagan, e Os Primeiros Três Minutos, de Steven Weinberg, dois autores que já não estão entre nós. Continuam a sair livros sobre o mesmo tema, devidamente actualizados, já que a ciência está como o Universo em expansão: acaba de ser publicado, nas Edições 70, Uma Breve História do Universo, de Neil deGrasse Tyson, Michael Strauss e J. Richard Gott, e não tardará a surgir, na Gradiva, O Pequeno Livro da Cosmologia, de Lyman Page. 

 Como a ciência conheceu também entre nós um período de expansão acelerada (graças sobretudo a clarividência de José Mariano Gago, que faria agora 74 anos, não fora o seu falecimento prematuro), é natural que apareçam obras de divulgação da cosmologia e astrofísica escritos por cientistas portugueses. Acabam de sair dois excelentes livros de autores nacionais: um incidindo mais sobre cosmologia – isto é, o início, a dinâmica e a estrutura geral do Cosmos – e o outro mais sobre astrofísica – isto é, o seu enchimento com estrelas de vários tipos, agrupadas em galáxias. O primeiro, que se intitula simplesmente O Universo, com o subtítulo mais longo Do Big Bang aos Buracos Negros, é o n.º 121 da colecção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos, dirigida por António Araújo. É seu autor o cosmólogo Paulo Crawford, professor aposentado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Curiosamente, Crawford, que escreveu a primeira tese doutoral sobre cosmologia no nosso país foi, quando era mais jovem (ainda é!), o autor do prefácio e notas da tradução portuguesa de Os Primeiros Três Minutos. O segundo dos novos volumes tem por título Qual é o Nosso Lugar no Universo?, com o subtítulo mais comprido Uma viagem pelo mundo da astronomia e das nossas origens pela mão de um astrofísico, saiu do prelo da Planeta. O seu autor é David Sobral, mais jovem que Paulo Crawford, doutorado na Universidade de Edimburgo e hoje professor de Astrofísica na Universidade de Lancaster (no Reino Unido) depois de ter sido investigador no Observatório de Leiden (na Holanda) e no Observatório Astronómico de Lisboa, associado à referida Faculdade de Ciências. Crawford é físico teórico, especialista na Teoria da Relatividade Geral de Einstein, na qual assenta a cosmologia, ao passo que Sobral é um astrónomo observacional que tem usado os maiores telescópios do mundo, incluindo o Telescópio Espacial Hubble. Ficou justamente famoso em 2015 pela sua descoberta de uma galáxia brilhante, nos confins do Universo, a que deu o nome de CR7: não, o CR não significa Cristiano Ronaldo 7, mas sim Cosmos Redshift 7, uma medida da posição no tempo cósmico. Os dois autores têm evidente talento para divulgarem a ciência que tão bem conhecem e fazem. 

O Universo, com 121 páginas, depois de um prefácio e uma introdução, tem cinco capítulos em prosa clara, que são seguidos por uma curta bibliografia. Começa pela Via Láctea, contando como se descobriram outras galáxias para além da nossa, continua com a teoria de Einstein e os modelos cosmológicos nela baseados, conta a seguir como as observações do afastamento das galáxias e da radiação cósmica do fundo tornou verosímil uma das soluções das equações de Einstein, fala na sequência dos constituintes mais exóticos do Universo (incluindo buracos negros e as ondas gravitacionais que as suas colisões originam), e, finalmente, discute questões em aberto como a expansão acelerada do Universo (que obriga a postular a energia escura) e a possibilidade de universos paralelos.

 Por sua vez, a pergunta Qual é o Nosso Lugar no Universo? é respondida, depois de um preâmbulo e antes de uma bibliografia, num total de 245 páginas, que se repartem por 14 capítulos, numa prosa que por vezes tem ressonância literária (ou não tivesse o autor escrito no DN Jovem e publicado ficção). Alguns tópicos são os mesmos que no livro de Crawford, como a descoberta do universo extra-galáctico e do afastamento das galáxias por Hubble, num movimento que hoje sabemos ser acelerado, mas Sobral debruça-se também sobre a vida e a morte das estrelas, a matéria escura (que existe nos halos de todas as galáxias), os buracos negros supermaciços (que estão nos centros das galáxias, desde logo a nossa), o que ele chama a «crise cósmica» (que significa o actual declínio da formação de estrelas), e, quase no fim, a sua descoberta da CR7. Sobral, que invoca Álvaro de Campos logo no inicio («Não sou nada,/ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo»), fala da influência que teve na sua vida a oferta da Poesia Completa desse poeta quando andava na escola secundária, o triunfo num concurso juvenil de ciência e a aventura que foi para um rapaz do Barreiro fazer a primeira viagem aérea a Dublin para representar Portugal. Haveria de ir mais longe ao Havai e ao Chile, para ver o céu. No capítulo final fala não daquilo que se sabe, mas daquilo que falta saber e que talvez se venha a saber, usando novos instrumentos, nos quais sobressai o Telescópio Espacial James Webb . 

Recomendo vivamente os dois livros. Deixo um pouco do «sabor» da prosa dos dois autores. Escreve Crawford, no início: «Ao admitir que o mais simples é considerar a organização autónoma da natureza, direi que, no caso de um cientista que não seja crente o mais natural é ignorar a pergunta sobre a origem das leis físicas e supor simplesmente a existência do universo». Por seu lado, Sobral, quase no fim, revela o que é a ciência em acção, impregnada pelas reacções humanas, ao insurgir-se contra as invectivas que um investigador japonês fez, a ele e à sua equipa, a propósito da descoberta da CR7: «Quando uns putos da Europa, sem recursos, sem dinheiro, e por isso vulneráveis a ataques descobriram galáxias e obtiveram resultados que acabariam por transformar o campo de investigação, deu-se uma reacção emocional quase imparável.» 

 Os dois livros mostram que o Cosmos não só pode ser contado em português, como pode ser descoberto na língua de Álvaro de Campos. Basta sonhar e perseguir o sonho.

 CARLOS FIOLHAIS

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