quinta-feira, 5 de maio de 2022

Figueira da Foz

Tremi o queixo, depois de sair dos lavabos municipais da Figueira da Foz, de me olhar, demoradamente, no espelho e de me pentear. Com a toalha, um livro de J. D. Salinger, o creme, um jornal diário, os pedúnculos dos morangos, os caroços das nectarinas e uma garrafa de água, caminho, de fresco, de camisola preta de manga curta, calção azul e com as baianas a criarem-me foles nos pés, pela avenida do Brasil, evitando as sereias, pétreas e concupiscentes, espalmadas na calçada, perdendo-me no silêncio sigiloso dos patos, prostrados no lago, glauco e artificial, do areal, nos braços ébrios das palmeiras às revoadas de vento e no tropel, no ir e vir, demoníaco. Vou tamborilando os dedos no parapeito da parede da marginal, ainda com o rosto a arder do sol que apanhei durante o fim da manhã e a tarde. A marginal é longa e adumbrada aqui e ali por choupos. Antes de visitar a feira do livro, nos fundos do porto, por detrás dos guinchos das gaivotas e dos escolhos negros, compro um gelado, desço uma escada de madeira e entro numa barraca com um toldo de lona. Com a temperatura ainda altíssima, rodopio, entre os livros expostos nas bancas, gotas caem-me dos cabelos pela face e esparramam-se no chão de terra batida. Abro e fecho livros. Hesito nos livros de Nietzsche, comparo preços e acabo por levar Beloved de Toni Morrison por apenas dois euros. Pergunto a hora à senhora da caixa, uma mulher roliça com sardas nas faces, dentes grandes, nariz de narinas bem abertas, como se estivessem a inspirar o ar todo da barraca enquanto arfo e suo, cabelos castanhos, soltos e espigados, e voz aveludada de senhora ínclita, munificente: – Olhe, são seis e meia. e, como se eu não ouvisse bem: – Falta meia hora para as sete. Tresandando a suor, volto a subir a escada e lajeio o estuário do rio: as asas refulgentes e os barcos ancorados em limos, a tinta estalada e os mastros, as velas, brancas e azuis, no céu etéreo, os cabeços ferruginosos, os pescadores arriscando os ossos, pescando por detrás dos escolhos onde o mar bate, veementemente e ensurdecedor, e os gritos irascíveis de advertência e, concomitantemente, de ameaça entre marujos. Sigo as águas, cada vez mais intemeratas, até ver uma ponte parda com pilares, descomunais e vermelhos, cortar o azul do céu. O pai vai comigo e diz-me a sorrir, com a boina basca pendente na mão endurecida, a perna direita tensa e a esquerda tenuemente dobrada, que isto é tudo maravilhoso, que ainda virá mais uma vez este ano. Eu oiço-o na corrente impercetível e um espasmo corre-me o corpo todo.

1 comentário:

Anónimo disse...

O que mais me chateia não é o lago pútrido no meio da rua artificial e barata tresandando a moscas, saltos altos, suores abafados e asas ancoradas.
O que mais me chateia é o Toni custar só dois euros na escada desajeitada onde o mar só bate num Nietzsche preso ao fundo dos dentes, sem luz nem reino, a tremer o queixo de óssea lucidez.

Melhor do que isso? A vida sem espasmos.

AINDA AS TERRAS RARAS

  Por. A. Galopim de Carvalho Em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais ...