quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A QUÍMICA AO PÉ DA LETRA


Minha recensão no último As Artes entre as Letras:

A Editora da Universidade do Porto, com a marca «U. Porto Press», acaba de publicar, na sua colecção «Transversal»,  o livro Química ao pé da letra, de um colectivo de seis autores: João Carlos Paiva, Carla Morais, Martinho Soares, José Araújo, Hugo Viera e Luciano Moreira. Os dois primeiros são professores no Departamento de Química e Bioquímica e investigadores da Unidade de Ensino das Ciências da Faculdade de Ciências daquela Universidade. O terceiro é investigador em Estudos Clássicos e Humanísticos e docente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.  O quarto e quinto estão ligados, pela formação e pela prática, ao Ensino e Divulgação das Ciências, em especial as Ciências Físico-Químicas. E o último, mestre em Psicologia, é docente na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Fica, pela variedade da formação dos autores, desde logo justificada a inclusão do livro numa colecção que se reclama da transversalidade.

O título da obra sugere que se trata de juntar a química e a linguagem. Cada ciência tem a sua linguagem própria, não fugindo a química a essa regra geral, embora haja alguma linguagem comum na ciência (a palavra «Laboratório», por exemplo). A epígrafe do livro remete para o uso da palavra “palavras” em poemas de António Gedeão, que foi o pseudónimo literário do professor de Física e Química Rómulo de Carvalho (“Por que, sem escolha, me entrego/ nas palavras escolhidas,/ sementes evoluídas/ cumprindo um destino cego»).

Na Introdução os autores explicitam o objetivo da obra:

«As palavras da química são descritas nesta obra de forma breve e de acordo com uma estrutura tripartida: a contextualização da palavra, onde se procura enfatizar a sua relevância social e, sempre que oportuno, as suas relações com outras áreas científicas, com a tecnologia e com o ambiente. Segue-se depois a sua definição científica, pautada pelo compromisso equilibrado entre o rigor e a simplicidade. Por último, procede-se à exemplificação que se traduz na apresentação de aplicações concretas do termo, em situações do nosso dia a dia. »

Os autores dão logo a seguir exemplos elucidativos:

«Estas palavras da química, categorizadas e apresentadas por ordem alfabética, são como que desmontadas, nas suas raízes etimológicas. (…) Talvez ajude saber que ‘molécula’ pode ter a ver com ‘muito pequeno’ e, daí, voltar a esse agregado com distância típica entre átomos da centena de picómetros. Talvez ajude saber que ‘substância’, uma palavra tão crucial em química, se pode ligar, no seu filão etimológico, a ‘estar na base de’, ‘que subsiste’, ‘que está dentro’. »

O livro divide-se em quatro capítulos: «Química: a História e o Lugar», que discute só três palavras («Alquimia», «Química» e «Laboratório»); «Conceitos e Entidades Químicas» (o maior, com 105 páginas, um verdadeiro dicionário de química, que vai de «ácido» a «volátil»); «Técnicas laboratoriais» (de novo vale a ordem alfabética, existindo entradas que vão de «Centrifugação» a «Titulação»); e, por último, «Instrumentos e Material de Laboratório» (a lógica é a mesma, com palavras que vão de «Almofariz» a «Vidro de relógio».

No posfácio subintitulado «Das raízes das palavras às rotas da química», que começa com o poema de Eugénio de Andrade «As palavras» (“São como um cristal,/ as palavras./  Algumas, um punhal/ um incêndio./ Outras,/ orvalho apenas.»), os autores sumariam a arte de usar as palavras na ciência química.

Quem não souber poderá neste livro aprender que «átomo» é a justaposição dos elementos gregos a, que significa negação, e tomo, que significa corte. Portante «átomos» são entidades que não admitem cortes, isto é, indivisíveis: de facto, para os antigos gregos, os átomos eram as partículas que não se podiam dividir. A diferença entre os químicos e  os físicos é que, hoje em dia, os primeiros tratam dos agrupamentos de átomos, que se pode fazer das formas mais variadas, embora obedecendo a certas leis, ao passo que os segundo tratam dos constituintes fundamentais dos átomos e das suas interacções.  Hoje continuamos a  usar a palavra «átomo», apesar de sabermos que eles se dividem em núcleos atómicos e electrões, os núcleos atómicos em protões e neutrões, e estes em quarks, uma palavra retirada à literatura (surge em Finnegan’s Wake, de James Joyce).

Outra palavra da química: catálise. Resulta do prefixo kata (para baixo, sobre, contra), e lya (desligar, soltar, libertar), pelo que a ideia  subjacente é «dissolver, destruir». O Prémio Nobel da Química deste ano foi atribuído a investigadores que desenvolveram uma nova forma de catálise (a «biocatálise assimétrica»): Benjamin List, alemão, professor da Universidade de Colónia actuivo no Instituto Max Planck para a Pesquisa com Carvão, em Mülheim an der Ruhr, e David MacMilan, norte-americano de origem escocesa, professor da Universidade de Princeton, colocaram à disposição dos químicos uma nova ferramenta que permite acelerar reações químicas.

Um outro exemplo do muito que se pode aprender neste livro é a origem da palavra «colóide». Vem do grego kola (cola) + eidos (forma, aparência, semelhança), pelo que colóide significa «semelhante a cola». De facto, a cola é uma substância coloidal. Colóides em geral são misturas de materiais cujos componentes têm dimensões minúsculas. Os aerosóis, as espumas, as emulsões, os sóis e os géis são todos eles colóides.

Estamos, como se vê, em presença de uma excelente obra onde podemos aprender química sabendo línguas ou aprender línguas sabendo química. O conhecimento pode e deve ser transversal.

No final da Introdução, os autores salientam a metáfora entre átomos e palavras:

«Regista-se uma cumplicidade analógica entre a química e a palavra, que merece aqui ser sublinhada. Há corpúsculos a que chamamos átomos (quais letras), que se podem agrupar em moléculas e outros agregados (quais palavras), que no seu conjunto originam estruturas mais complexas (quais frases e textos), que constituem a matéria (quais livros), que se transforma e dá vida. E depois há o fascínio de como as coisas são… como há na poesia!»

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...