Saiu em finais do ano passado o relatório do Conselho Nacional da Educação sobre o estado da educação em Portugal, relativo a 2018.
Na introdução intitulada À procura da mudança, a presidente desse Conselho explica porque é que a escola tem de mudar. Faz um apelo que é recorrente, tão antigo como a própria escola, a matriz é sempre a mesma: até aqui havia uma escola (tradicional) daqui para a frente quer-se (alguém quer) uma escola (nova).
Na Agenda do Horizonte 2030, o quarto objectivo operacionalizado pela OCDE em diversas versões, sendo a última também de 2019, o "bem-estar" surge como a razão central da mudança global da educação. O "bem-estar" não é fácil de apreender, mas percebe-se que está ligado às necessidades de uma economia de mercado na qual se introduzem preocupações com a sustentabilidade e o funcionamento social.
Esta introdução vai no mesmo sentido: a escola ditada pela sociedade industrial já não serve porque o modelo empresarial mudou: não basta, agora, que a escola responda às "necessidades do desenvolvimento económico, mas também do desenvolvimento ecológico e social sustentável". Mais uma vez se esquece a função primeira da escola como contexto educativo (contexto educativo entre outros) especialmente preparado para a formação e a instrução: a construção do humano em cada ser humano. É uma função da ordem da ontologia, pouco compatível, portanto, com as exigências avulsas que a sociedade faz à escola para que as resolva no imediato.
"Mudar a educação porquê?
Porque todas estas mudanças, levando a uma sociedade cada vez mais complexa, acarretam a necessidade de níveis mais elevados de educação e de uma educação para todos. Por uma exigência de justiça social, de cumprimento dos Direitos Humanos e dos princípios democráticos, mas também como uma consequência da própria organização económica desta sociedade em embrião que requer uma população mais qualificada, mais habilitada e com outro tipo de competências.
Tem sido defendido que a organização atual da escola é reflexo e foi moldada pela sociedade industrial e pelas necessidades de produção em massa: a separação entre gestão e execução, a estrutura piramidal e hierárquica, a divisão em departamentos rígidos em que aos trabalhadores são atribuídas tarefas claras e estanques, cumprindo regras e regulamentos pré-estabelecidos e executando ordens e planos definidos num escalão de direção.
A esta sociedade corresponderia uma escola rigidamente compartimentada em anos, turmas, disciplinas, com o saber cuidadosamente organizado do mais simples ao mais complexo, segundo programas definidos centralmente, aulas planificadas pelo professor, segundo regras, regulamentos e instruções que os alunos se devem habituar a cumprir.
Ora, segundo os novos estudos empresariais e de gestão, as novas empresas pós-industriais já não funcionam assim. O trabalho estará organizado em “equipas de projeto”, em “grupos de produção” – pequenas unidades flexíveis e efémeras onde não há uma clara divisão do trabalho e que se desfazem e se reconstituem conforme o problema a resolver, a tarefa a desempenhar. São pequenos grupos em que as decisões são tomadas em conjunto, por colaboração ou complementaridade. As regras, regulamentos e processos de funcionamento são criados e variam consoante a tarefa. Os trabalhadores que executam são os mesmos que definem os objetivos, delineiam os produtos e planificam o trabalho.
Necessitam, por isso, de competências muito diferentes das dos trabalhadores da era industrial: precisam de ser capazes de trabalhar em grupo, de colaborar e comunicar, de identificar problemas, imaginar soluções, planificar, ter autodisciplina e assumir responsabilidades pelos resultados.
Recordam os “quatro Cs” agora frequentemente apontados como competências a desenvolver: pensamento crítico, criatividade, capacidade de colaboração e de comunicação. Que implicações para a escola? Que transformações na organização do tempo, do espaço, na distribuição dos alunos? Trabalho em situações diferenciadas – pequenos grupos, trabalho individual, aulas com a totalidade dos alunos – em momentos diferentes e com uma diversidade de tarefas e de metodologias …
Autonomia dos alunos para identificarem problemas, escolherem os temas a trabalhar, as questões a debater, os projetos a desenvolver, compromisso na sua consecução e na colaboração com o grupo, capacidade de se autocorrigirem e auto regularem, responsabilidade perante o professor e perante os colegas - poderão ser estratégias mais apropriadas para desenvolver aqueles “quatro Cs”, as competências previstas no Perfil do aluno ou mesmo a aspiração a uma sociedade mais solidária.
Tudo isto implica uma grande transformação na educação e na escola.
Mas se quisermos ir mais longe, não nos conformarmos em adaptar a escola às necessidades do desenvolvimento económico, mas também do desenvolvimento ecológico e social sustentável, duma sociedade mais igualitária, justa e inclusiva e do “empoderamento” de cada um como cidadão e capitão do seu destino, então temos de repensar a educação e a escola como motores – e não apenas reatores – de mudança."
Maria Emília Brederode Santos, 2019, 6-7
2 comentários:
Admito que a Revolução, de onde surgirá o Homem Novo, igualitário, justo e inclusivo, possa ser engendrada na Universidade. Por outro lado, só quem esteja desligado da realidade no terreno pode esperar que as crianças e adolescentes das escolas C + S e EB 1,2,3 + JI, atormentados com as dores próprias do crescimento, sejam os atores principais, motores ou reatores da conceção e concretização da sociedade perfeita. É verdade que os capitães de abril também eram muito novinhos, mas ao fim destes anos todos a sociedade portuguesa é das menos igualitárias, justas e inclusivas da Europa.
A Escola é e pode ser muito mais do que um instrumento de socialização programado, porque é investimento, ordenamento e controlo social e sistema institucionalizado de (des)classificação social, que tende a normalizar as ignorâncias instituídas e a promover os interesses reinantes, numa espécie de círculo vicioso.
Na sociedade tudo funciona. Funciona a ditadura, a democracia, o totalitarismo, a escravatura, o liberalismo, a república, a monarquia, o capitalismo, o socialismo...O cristianismo, o ateísmo...
Não nos deixemos enganar pelo critério da eficiência como boa racionalidade.
A eficiência pode ser obtida à custa de muitas coisas bem mais importantes.
Se a Escola não fosse obrigatória e não fosse Pública, as questões eram outras.
No caso da Escola obrigatória e Pública, compete ao Estado o discernimento, clarividência, bom senso e justiça de cuidar de um bem comum que é muito mais do que um instrumento de ordenamento da sociedade, com o séquito usual de sanções positivas e negativas e consequentes injustiças.
A Escola, como representante do saber e do conhecimento, gera expectativas muito elevadas, demasiado elevadas, mas tem de saber muitas coisas e uma delas é saber ser solução e saber não ser problema para os alunos e professores.
A Escola, em Portugal, ainda é um bicho de sete cabeças para toda a gente, menos para os políticos, que a resumem a um problema de números de orçamento, a eventuais prescrições económicas e a algumas más memórias suas.
Mas a Escola não pode ser aquele labirinto onde os teus pais te abandonam, fecham a porta e nunca mais encontras a saída e não te encontram, ou, por diversas razões, encontras a saída ou te encontram.
A Escola não pode, simplesmente, forçar o aluno a deslocar a sua atenção de si mesmo, dos seus problemas individuais, pessoais, e esperar que se dedique, abnegadamente, aos problemas da sociedade, como um sacerdote, sem uma razão convincente dessa abnegação (na perspectiva dele e não da sociedade)...
A Escola não pode ser o protótipo da Casa dos Problemas e dos Terrores, sem presente, onde tens de entrar no futuro ou no passado e onde tudo soa a ameaça e a fim do mundo, ou a depressiva e culpabilizante retrospectiva de uma História da humanidade, de horrores, infâmia, violência e destruição.
De cada vez que se introduz um novo projecto, seja de saúde, de sexualidade, de sustentabilidade ambiental ou de direitos humanos conexos, a advertência é grave e as perspectivas não são animadoras.
A Escola não é não será o paraíso dos crânios ermos, mas tem de ser mais do que o inferno ou o purgatório das jovens almas censuradas.
A Escola pode ter de ser subversiva para continuar a ser Escola.
E tem de ser diversa como diversos são os alunos e os professores.
Realista, para os alunos e os professores que existem.
A Escola não pode contar com um ideal de aluno e um ideal de professor, por mais perfis que se façam.
Os políticos da educação e os diretores das escolas deviam, obrigatoriamente, dar aulas, nem que fosse a uma turma e, de preferência, a que estivesse sinalizada como mais problemática.
De resto, para abreviar, premiar os alunos bem classificado e punir os mal classificados, em âmbito de escolaridade, parece-me um mau princípio.
O valor das classificações, para todos os efeitos e mais algum, está longe de corresponder ao interesse e ao valor das aprendizagens, para já não falar dos saberes e das competências e, mais ainda, do mérito e das realizações/reconhecimentos sociais e profissionais.
A Escola não pode ser, não deve ser, nem para alunos, nem para professores, mais labirinto do que a vida já é.
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