ENTREVISTA A CARLOS FIOLHAIS FEITA POR LUÍS CAETANO (ligeiramente ediatada) IN "DEBAIXO DA LÌNGUA" (Almada: Câmara Municipal, 2019)
“Alguns dos primeiros livros de ciência no
mundo são escritos em português. É uma
língua culta e uma língua de cultura.”
Físico, professor catedrático, um apaixonado divulgador
de ciência e um grande amante dos livros. Afirma-se mesmo o resultado das leituras que fez. É director
do Rómulo - Centro de Ciência Viva da Universidade
de Coimbra e coordena a colecção Ciência Aberta da
editora Gradiva.
LCP- Participou há dias nos encontros Récherche et Création,
uma reunião de cientistas r artistas de diferentes áreas,
evento que faz parte do Festival de Teatro de Avignon.
Em debate esteve a questão de o que é criar. Que
diferenças existem no processo criativo entre as artes e as ciências? Chegaram a uma resposta?
CF- A resposta é a procura continuada. Em Avignon estiveram cientistas,
investigadores de diferentes disciplinas, e também autores
teatrais e encenadores, entre outros. Gente da criação científica e da artística. Em comum, são criadores de mundos.
E todos querem ir para além daquilo que já existe,
do que já é conhecido, e penetrar no mistério. Fazem-no
é de diferentes maneiras. Os cientistas usam um método aperfeiçoado ao longo do tempo, que passa pela
observação, experimentação, o raciocínio lógico, que constituem a forma
a verificar se o que foi descoberto corresponde à
realidade. Já no caso da arte, cria-se uma realidade, esta é
uma construção do próprio artista. Mas ambos estão
a gerar novos mundos, e ambos usam um grande instrumento
que é a imaginação. É ela que nos permite ir
além das nossas circunstâncias.
LC- A curiosidade e a imaginação são chão comum às artes
e às ciências, mas na ciência também há espaço
para a emoção e para a fantasia?
CF- O cientista pode e deve tentar dominar as suas emoções, porque
elas existirão sempre. Mas ele está a trabalhar com objectos fora dele, fixos, e como observador deve
respeitar a distância, não se deixando levar pelo
lhe é particular, pessoal. O resultado é algo que tem de
ser partilhado com outros. Porém, se na arte se procura em geral o belo, na ciência também se é motivado
pelo impulso estético, pela busca da harmonia, pela proporção.
O processo científico procura o harmonioso, procura que as
partes encaixem, procura a ordem do mundo. É o caso das leis
da física, por exemplo, que estão por detrás de tudo.
Na descoberta, aí sim, existe emoção.
LC- A Inteligência Artificial traz-lhe mais fascínio ou inquietude?
CF- Eu estou mais curioso do que inquieto, mas há, de facto, quem
esteja muito inquieto, preocupado. A Inteligência Artificial é a tentativa
de descoberta daquilo que há de mais radical em nós,
que é o cérebro. O órgão do nosso corpo que nos conduz à
ciência e à arte, à ética e ao amor. A Inteligência Artificial
é uma demanda em que tentamos substituir algumas das
funções que o cérebro executa por algo que sabemos
controlar – tentamos que uma máquina imite o nosso
cérebro, programa-mo-la para jogar ou para reconhecer
padrões. Mas poderá algum dia ela amar, odiar, ter um
impulso religioso?
LC- O que lhe diz a sua intuição?
CF- É só isso que posso ter, uma intuição. Estou convencido
que não. Muito do que é humano pode ser imitado,
mas não tudo. Claro que não faltarão tentativas. Contudo,
aquela teoria de que um dia as máquinas nos vão
substituir, portanto a morte do ser humano, julgo que é manifestamente exagerada, evocando
Mark Twain.
LC- A língua portuguesa é uma língua de ciência?
CF- Sim. É uma língua antiga, que sempre se soube adaptar
às novas disciplinas e aos novos saberes. É uma língua
culta e uma língua de cultura. Alguns dos primeiros livros
de ciência no mundo foram escritos em português.
A obra "Colóquios dos Simples", de Garcia de Orta, por
exemplo, que descreve as virtudes medicinais das plantas
do Oriente. Estava-se no século XVI, uma altura em que a
ciência estava a aparecer, a ciência moderna baseada na observação, na experiência, no raciocínio. É um livro publicado
em Goa, no ano de 1563, que descreve novas realidades: novas plantas e as suas propriedades. O português tornou-se nessa altura uma língua global, e ainda hoje é a
sexta língua mais falada no mundo, sendo a mais falada no hemisfério
sul. A nossa língua, mais tarde, no século XIX, incorporou as ciências sociais
quando elas nasceram. Hoje, apesar de vivermos
no império do inglês, convém lembrar que tudo pode ser dito e apresentado
em língua portuguesa, e que devemos pugnar por manter o português como língua de cultura. Não devemos permitir que se
imponham apenas em inglês as coisas da física, da medicina,
de todas as disciplinas. O português é a nossa língua...
Porque dizemos "deep learning" quando podemos dizer "aprendizagem profunda"? Ou "machine learning" quando podemos dizer "aprendizagem por uma máquina"?
Habituámo-nos a usar termos importados, mas eu importo-me que os usemos. A nossa língua devia ser mais
afirmativa e devia reclamar novas realidades, parece-me que isso é mais importante do que a polémica do
acordo ortográfico. Devíamos procurar ser mais afirmativos na Internet,
até porque temos um tão grande património de criação literária e de criação científica. É muito fácil encontrar
hoje livros portugueses dos séculos XVIII ou XIX, por exemplo, na Internet porque grandes bibliotecas americanas ou europeias os digitalizaram ou deixaram digitalizar.
Porque não tomamos a digitalização do nosso património como um desígnio
nacional e não fazemos uma defesa activa da língua,
espalhando-a neste mundo global 0com os meios que a técnica
proporciona?
LC- É isso que tem sido feito em Coimbra através do Rómulo Digital, um projecto do Centro Ciência Viva da Universidade
de Coimbra?
CF- Sim, é um projecto que coloca a nossa cultura acessível a todos. Trata-se da digitalização de
um espólio considerével de livros, periódicos e outros documentos
que vão do século XVIII ao século XX e nos descrevem a relação
entre a ciência e a saúde, a ciência e o direito, a
ciência e a sociedade em Portugal e no mundo, porque
a importância da ciência vem de ela se relacionar com os vários
aspectos da nossa vida. Temos de respeitar os direitos de autor,
por isso são edições só até 1950, mais ou menos, mas
estamos a colocar na Internet centenas de livros que
continuam actuais. Os livros nunca perdem a actualidade mesmo quando parecem antigos. Porque são os livros de outrora que, em confronto com a nossa experiência e
o nosso conhecimento de agora, nos dão uma dimensão
essencial que é a dimensão de história. Dão-nos a ideia
de caminho, a noção de que somos o resultado de uma
herança. É nossa obrigação preservar o património
que nos foi deixado sob a forma escrita. No Rómulo estamos a colocar
cultura científica ao alcance de todos para percebermos
que sempre houve ciência em Portugal - com
maiores ou menores dificuldades – ela existe há séculos
entre nós, desde o início da língua, na cultura portuguesa. O Rómulo
Digital está no sítio da Internet Alma Mater, da Universidade
de Coimbra, que eu convido a visitar. É um sítio
riquíssimo, com milhares de documentos e livros, mapas
antigos, as obras mais valiosas da Biblioteca Geral da Universidade.
LC- Vou abrir ao acaso uma das obras que podemos encontrar
no Rómulo Digital...e eis que me surge um
livro do francês Camille Flammarion: As terras do
céo: viagens astronomicas aos outros mundos e descripção
das condições actuaes da vida nos diversos
planetas do systema solar, editado em 1900 e com as
marcas do português de então…
CF- É muito curioso, porque Flammarion era bastante lido em Portugal, os seus livros tinham grandes tiragens – maiores se calhar do que a maioria dos livros hoje – sendo por isso lido por imensa
gente. Hoje os livros vão reduzindo as tiragens. A mim
espanta-me, por exemplo, como é que a colecção que Bento de Jesus Caraça dirigiu na editora Cosmos,
em condições muito difíceis, ao tempo da II Guerra
Mundial, conseguiu tiragens fabulosas de dezenas de
milhares de exemplares! Ele foi um "apóstolo" da ciência,
espalhando-a através dos livros que editava, num país
que estava atrasado em muita coisa, a começar pela ciência. Eu acho que a história
da cultura científica em Portugal está ainda por
escrever. Aquilo que a Cosmos fazia é uma lição para
os nossos dias – juntar as ciências, sejam elas exactas e
naturais ou sociais e humanas, com as artes. E lá temos
a música, a medicina, tudo o resto. A cultura é essa junção. Uma das
grandes dificuldades do nosso tempo é juntar as partes que estão separadas. Não é fácil tentar falar numa linguagem que se entenda e procurar
entender a linguagem dos outros. E dessa forma
quebrar barreiras.
LC- Não há melhor exemplo disso do que o professor que
dá nome ao Centro de Ciência Viva da Universidade
de Coimbra – Rómulo de Carvalho. Ele deixou
bem claro que a composição das lágrimas é igual,
independentemente da cor da pele, num dos mais
belos poemas da língua portuguesa…
CF- Ele disse algo muito profundo em poucos versos, contestou
o racismo com poesia, nesse Lágrima de Preta:
(…)
“Nem sinais de negro, /nem vestígios de ódio./ Água (quase tudo) /e cloreto de sódio.”
Foi um professor de física e química que usou a poesia
para dizer que o racismo é indefensável. Rómulo de
Carvalho foi inspirador.
LC- Um autor que contribuiu para que dedicasse a sua
vida à ciência e à cultura. Carlos Fiolhais dirigiu também
a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra,
que inclui a Biblioteca Joanina, uma das mais belas
do mundo, e dirige agora a coleção Ciência Aberta,
da editora Gradiva. Uma editora onde tinha já publicado
vários livros, nomeadamente Física Divertida,
em 1991, que foi um sucesso, com mais de vinte mil exemplares vendidos. Enquanto leitor, autor e também
coordenador desta coleção, desde o número
200, como é que vai observando o gosto pela leitura
hoje? Dos livros de divulgação científica e não só.
CF- A coleção Ciência Aberta continua a ter leitores. Ela começou
em 1981 e não há muitas colecções de livros que
possam invocar esta longevidade, extensão e diversidade. Dela constam
o Carl Sagan, o Stephen Jay Gould, o Richard Feynman…
O
LC- O próprio Albert Einstein, Stephen Hawking...
CF- Exactamente. Esta colecção alicerçou-se em gigantes.
Eu tinha acabado de chegar do meu doutoramento, em
1982, quando a conheci. Estávamos num tempo áureo
da confiança social na ciência. Acreditava-se nela como uma força transformadora, havia esperança e interesse pelo conhccimento. E havia uma aragem nova na educação em Portugal que eu sentia à minha volta, com as pessoas a aprenderem com
os livros, com estes livros. Muitos ainda me dizem que
os leram na altura certa e que eles contribuíram para
as suas escolhas de vida. Tiro o meu chapéu ao editor
Guilherme Valente que teve esta visão transformadora.
A ciência começou a aparecer nos jornais e na rádio,
não tanto na televisão. Hoje já não há, infelizmente, tanta gente
a comprar livros... Pode verificar-se isso pela tiragem das
edições. Existem várias razões para isso: as pessoas passam
muito tempo a olhar para ecrãs, os jovens em particular.
Eles, na maioria, deixam de ler a partir de uma certa
idade. E depois há razões económicas: o país viveu uma
crise e cortou em bens que não são de primeira necessidade.
Para mim são, porque se não lesse, morria. Por
isso gosto de fazer listas de recomendações de leitura. Há bons livros que, muitas vezes, passam entre nós despercebidos.
LC- Nomeadamente nas livrarias, onde tantas vezes o
destaque vai para livros que não valem nada, incluindo
alguns de pseudociência…
CF- É uma ameaça do mundo contemporâneo, a relativização,
a desconfiança em relação à ciência, e o espalhamento da pseudociência, daquilo que se
afirma como ciência só para atrair os incautos, usando
a respeitabilidade que a ciência foi conquistando ao longo do
tempo. Vivemos num mundo estranho, num mundo
até perigoso em certos aspectos, e não podemos desistir
de denunciar aquilo que se faz passar por ciência sem o ser.
LC- Até que ponto a sua vida foi marcada pelos livros?
CF- Sou o resultado dos livros que li, e espero ter inspirado
também alguém com aquilo que escrevi, traduzi, ou
editei. No fundo, o que mais prazer me dá é ler e dar
a ler. Ler é sempre enriquecermo-nos. E eu não quero
ficar rico sozinho, quero que todos o fiquemos.
LC- E para quando um álbum com o seu dinossauro
Plunk, que desenhava no início dos anos 70? Pranchas
que eram publicadas no jornal O Mocho, da Faculdade
de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra?
CF- Ah, entretanto a minha mão fugiu para a escrita e perdeu o jeito do desenho. Eram cartoons humorísticos…
Ainda me lembro de algumas dessas histórias com dinossauros
que assistiam ao que se passava no século XX. Era
uma irreverência de juventude.
CF- Dê-nos a sugestão de algumas leituras para o Sol
deste Verão.
CF- Com gosto. Sugiro Gonçalo M. Tavares, que acompanho
com muito interesse. Ele publicou agora Histórias
Falsas, na Relógio d’Água. Também um livro que demorou
algum tempo a chegar a Portugal, mas que vale
muito a pena: Sem Fins Lucrativos. Porque Precisa a
Democracia das Humanidades, de Martha Nussbaum,
nas Edições 70 – É uma das filósofas americanas mais
importantes que aqui fala da necessidade das humanidades.
Nos tempos de hoje é uma defesa que é preciso
fazer. E de Voltaire, a Ficção Completa, que saiu na
E-Primatur. Ele que é uma das minhas figuras do século
XVIII. É a ele que é atribuída a frase “Posso não
concordar com o que diz, mas defenderei até à morte
o seu direito de o dizer”.
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