domingo, 22 de setembro de 2019

A MADEIRA NA ROTA DA ANTÁRCTIDA



Como hoje é um dia importante para a Madeira pré-publico aqui uma entrada que preparei para o Dicionário Enciclopédico da Madeira (dirigido por José Eduardo Franco). Pouca gente saberá o papel que a Madeira teve como entreposto na exploração da Antárctida (na foto onorueguês Amundsen e os seus companheiros, na primeira expedição a chegar ao pólo sul): 

Se os séculos XVIII e XIX tinham assistido à concretização de vários projectos de circum-navegação do globo, que se interessaram particularmente pela realização de descobertas no Oceano Pacífico, o início do século XX assistiu à exploração das regiões polares, tanto no norte como no sul do globo terrestre. A 6 de Abril  de 1909 o  engenheiro da Marinha norte-americana e explorador Robert Edwin Peary (1856-1920) terá chegado ao pólo norte (de facto, ficou, de acordo com o nosso conhecimento actual, a  cerca de 100 km desse sítio e os primeiros seres humanos  só atingiram o pólo norte em 1968), mas a  corrida ao pólo sul revelou-se bem mais dramática. Se há fortes dúvidas sobre a primazia de Peary a chegar ao pólo norte, já não as há no que respeita ao pólo sul. Ele foi alcançado em  14 de Dezembro de 1911  pelo norueguês  Roald Amundsen (1872-1928), que bateu por escassos 35 dias o inglês Robert Falcon Scott (1868-1912),  que, com os seus companheiros, morreria de exaustão e frio durante a sua viagem de regresso. Ora, tanto Amundsen como Scott passaram, a caminho do Sul, pelo Funchal. Mais: foi no Funchal, a 9 de Setembro de 1910, que Amundsen, que tinha anunciado a sua partida para as águas do Árctico (dando a volta ao continente americano pelo cabo Horn), decidiu inopinadamente partir em direcção ao pólo sul, tentando bater Scott. Amundsen, que foi mais tarde, em 12 de Maio de 1926, o primeiro a  atingir o pólo norte por meios aéreos (com o capitão italiano Umberto Nobile, 1885-1978, usando o dirigível Norge), teve um fim trágico tal como Scott: pereceu no Árctico em 1928, quando o seu hidroavião desapareceu sem deixar rasto, numa expedição de socorro ao Nobile, capitão do dirigível Italia, que sofreu um acidente numa expedição ao pólo norte. Amundsen foi, portanto, o primeiro homem a estar nos dois pólos da Terra.

Foram várias as viagens de  reconhecimento da Antárctida, antes da corrida final decidida ao sprint entre Amundsen e Scott, tendo algumas delas passado pela ilha da Madeira.  Em Julho de 1902 passou no Funchal o navio Morning, comandado por William Colbec, capitão da Marinha Real Inglesa, que rumava aos gelos antárcticos, com o intuito de ajudar o HMS Discovery, navio de Scott, que na primeira expedição deste à Antárctica tinha ficado aprisionado nos gelos do estreito de McMurdo, que separa a ilha de Ross da Antárctica continental. A expedição Discovery (1901–1904) foi um empreendimento britânico tanto de exploração como científico que teve o patrocínio conjunto da Royal Geographical Society e da Royal Society. A sua meta era o pólo sul, mas a marcha realizada por Scott e outros dois famosos exploradores polares, o irlandês Ernest Shackleton (1874 -1922) e o inglês Edward Wilson (1872-1912), só conseguiu atingir a latitude de 82° 17′ S, a cerca de 850 km do pólo, um recorde na época. A difícil marcha de volta provocaria um colapso a Shackleton, apanhado pelo escorbuto. No final da expedição, foi preciso a ajuda de dois navios de resgate para libertar o Discovery, sendo um deles o referido Morning e o outro o Terra Nova, que haveria de dar o nome à segunda expedição antárctica de Scott.

A 10  de setembro de  1903  passou pelo Funchal o vapor Le Français, tendo a bordo o navegador, médico  e cientista francês Jean-Baptiste Charcot (1867–1936), em viagem para a Antárctica. Charcot, filho do famoso neurologista Jean-Martin Charcot, explorou, no comando da Expedição Antárctica Francesa, a costa oeste da Terra de Graham, parte da Península Antárctica, entre 1904 e 1907. À semelhança de  outros exploradores polares, Charcot teve um fim infeliz: morreu quando o seu navio Pourquoi-Pas? foi destroçado por uma violenta tempestade ao largo da Islândia no ano de 1936.

A segunda expedição de Scott, a Terra Nova, ocorreu  de 1910 a 1913. No seu plano o comandante dizia que o seu "principal objetivo é alcançar o pólo sul, e garantir para o Império Britânico a honra desta conquista." Scott não sabia que iria participar numa corrida até em 12 de Outubro de 1910 ter lido um telegrama, enviado por Amundsen para Melbourne, na Austrália, a 9 de Setembro de 1910. Foi já na sua base na ilha de Ross que Scott soube que Amundsen estava acampado com a sua equipa, e um largo grupo de cães trazidos da Gronelândia, na baía das Baleias, a cerca de 500 km a leste (e mais perto do pólo sul). Scott não fez qualquer desvio dos seus planos, que consistiam em viajar por uma rota conhecida, que já tinha sido experimentada por Shackleton em 1907. A marcha para sul começou a 1 de Novembro de 1911, com a ajuda de um conjunto de vários trenós carregados, puxados por vários meios: a distância total a percorrer seriam 1353 km. No dia 4 de Janeiro de 1912, à latitude 87° 34′ S, Scott anunciou quais seriam os quatro homens que com ele iam tentar alcançar o pólo austral: Edward Wilson (que era médico e tinha estado com Scott na expedição anterior), Lawrence Oates, Henry Bowers e Edgar Evans. Este grupo chegou, de facto, ao pólo sul no dia 17 de Janeiro de 1912, mas, para sua surpresa e desilusão, encontrou a bandeira norueguesa e a tenda que Amundsen tinha erguido 35 dias antes. O regresso, em condições muito difíceis, não chegou a ser consumado: os corpos gelados do grupo final formado por três exploradores (Oates já tinha ficado para trás, desaparecido no gelo) foram encontrados meses depois da data da morte, que deve ter ocorrido a 29 de Março de 1912, a avaliar pelo diário de Scott que estava ao seu lado na tenda que lhe serviu de túmulo

Se a passagem de Scott pela Madeira, foi normal, tendo sido efectuado o necessário reabastecimento para a viagem de longo curso que se seguia, a paragem de Amundsen na Madeira está, como foi dito, associada a uma viragem que se afigurou decisiva na corrida ao pólo sul. Os planos de Amundsen eram no sentido de alcançar o pólo norte. Com a notícia divulgada de que Robert Peary teria chegado a esse pólo (e, pouco antes dele, o explorador norte-americano Frederick Cook, 1865-1940, num feito que, tal como o de Peary, não pôde ser  confirmado), mudou de ideias. No seu navio Fram,  que era famoso por já antes ter participado noutras viagens no Árctico, partiu da Escandinávia em 1910. De facto, o navio de Amundsen tinha sido preparado para ir para norte, e a decisão de ir para sul só foi tomada pelo próprio na ilha da Madeira, tendo sido anunciada primeiro aos tripulantes, que a aceitaram unanimemente, e depois por telegrama lacónico (“Estou a ir para sul”, ) enviado aos seus rivais ingleses. A imprensa deu uma notícia falsa que, com a mudança de planos, se tornou verdadeira. Em 7 de Setembro de 1910, o Diário de Notícias da Madeira, numa breve notícia intitulada “Ao pólo-sul”, informava: "Fundeou ontem no nosso porto [do Funchal], o navio-explorador norueguês Fram, procedente de Christiania [antigo nome de Oslo], em 20 dias de viagem, conduzindo uma expedição scientífica ao pólo-sul." Esta notícia foi verdadeiramente extraordinária, por se ter revelado premonitória dos factos reais: o jornal não podia nessa altura saber que o Fram iria para o pólo sul, tendo dado essa informação por mera confusão. O certo é que nem os correspondentes britânicos na ilha da Madeira se aperceberam da grande novidade, ainda que involuntária, contida na notícia. Houve já quem considerasse esse notícia “a maior ‘cacha’ de sempre da imprensa portuguesa”. Não foi fácil para Amundsen tomar essa decisão pois  consideráveis fundos, em boa parte públicos, tinham-lhe sido concedidos para ir para o Árctico e não para o Antárctico. Em carta ao seu armador, explicou as razões da mudança, pedindo desculpa. Informou, também por carta, o rei norueguês. A notícia foi de início mal recebida no seu país natal. A concorrência aos ingleses não foi, de início, particularmente bem-vista, na Noruega e na Europa em geral, até porque Scott era mundialmente conhecido.

O ambicioso Amundsen foi mais bem sucedido porque se revelou mais pragmático e  profissional do que Scott, como mostram os seus diários: atingiu o pólo sul, num grupo onde também estavam Olav Bjaaland, Helmer Hanssen, Sverre Hassel e Oscar Wisting, usando trenós puxados por cães, uma técnica que ele aprendeu em terras árcticas (este terá sido um dos segredos do seu êxito). Em contraste com Scott, que confiou numa rota conhecida, Amundsen teve que procurar o seu próprio caminho atravessando os difíceis Montes Transantárcticos para penetrar no extenso planalto antárctico e, depois da sua chegada ao extremo sul da Terra, conseguiu retornar ao acampamento-base, após ter percorrido durante três meses, no trajecto de ida e volta, mais de 3000 km em condições meteorológicas bastante adversas.

Shackleton recuperou e voltou ao activo em explorações antárcticas. Para além de ter participado como oficial subalterno na primeira expedição de Scott, Shackleton liderou três expedições britânicas à Antárctida. Regressou aí em 1907 à frente da expedição Antárctica Britânica de 1907-1909 ou expedição Nimrod, do nome do navio. Nesse quadro, ele e três companheiros efectuaram, em Janeiro de 1909, uma marcha para sul que estabeleceu uma nova marca de latitude sul -  88° 23′ S, a apenas 180 km do pólo sul. Depois da corrida ao pólo sul ter terminado, Shackleton dirigiu a sua atenção para o que considerava ser o último objectivo da exploração antárctida: atravessar o continente gelado de mar a mar, passando pelo pólo sul. Preparou então a expedição que foi chamada Transantárctica Imperial (1914–1917). Entre 21 e 25 de Agosto de 1914 o navio Endurance, sob o comando do capitão neozelandês Frank Arthur Worsley (1872-1943), parou na Madeira, na sua rota para o pólo sul, com  o irlandês Ernest Henry Shackleton a bordo.   que não correu bem, por o navio ter ficado aprisionado no gelo, ter sido esmagado e finalmente afundado. O salvamento dos náufragos, depois de algumas aventuras, só foi feito in-extremis, sem terem ocorrido perdas humanas, graças à grande perícia e coragem de Worsley. Shackleton regressaria finalmente em 1921 à Antárctida, com o intento de realizar um programa científico. Os navios Quest, de novo com Worsley a bordo, e Dans pararam  na Madeira a de 16 a 19 de Outubro de 1921. Ainda antes de a expedição ter iniciado os seus trabalhos, Shackleton morreu a 5 de Janeiro de 1922 de ataque cardíaco quando o Quest estava ancorado na Geórgia do Sul, uma ilha no sul do Pacífico descoberta por James Cook, na sua segunda viagem de circum-navegação, tendo sido aí sepultado.

Em resumo: todos os três grandes exploradores do pólo sul - Samuel Amundsen, Robert Scott e Ernest Shackleton - passaram pela Madeira, mais especificamente pelo porto do Funchal, a caminho dos mares do sul. Os três morreram durante o seu trabalho de exploração nas regiões polares. Podemos falar de “idade heróica” da exploração polar e dizer que a Madeira esteve  no caminho da exploração, ainda que apenas como ponto de reabastecimento entre o Norte da Europa e o extremo sul do mundo.

As expedições polares, para além do pioneirismo na exploração, foram empreendimentos científicos. No século XX, houve uma outra famosa expedição científica, que rumou não ao pólo sul, mas sim à linha do equador, e que se destinava a observar um eclipse solar total no arquipélago de  S. Tomé e Príncipe e no Brasil, a fim de estar a teoria da relatividade geral de Albert Einstein (1867-1955). Também esta expedição, realizada no HMS Anselm,  passou a 8 de Março de 1919 pela Madeira, como posto intermédio entre a Inglaterra e a latitude equatorial, dividindo-se aí a expedição numa parte que rumou a Sobral, Brasil, e noutra parte, que rumou, a bordo do paquete Portugal, após algumas semanas de espera, à ilha do Príncipe, então uma colónia portuguesa. O chefe da expedição ao Príncipe era o famoso astrofísico inglês Arthur Eddington  (1882-1944) e o resultado das observações de 27 de Maio de 1919 foi conclusivo: Einstein estava certo pois os raios de estrelas que no campo de visão estavam perto do Sol se dobravam na medida certa ao passar perto do disco solar. Este foi, sem dúvida, um dos maiores eventos científicos do século XX.
Referências
- Amundsen, Roald; Nilsen, Thorvald; Prestrud, Kristian; Chater, A.G. (trad.), (1976) [1912]. “The South Pole: An Account of the Norwegian expedition in the Fram, 1910–12” (Vols. I and II). London: C. Hurst & Company. Original publicado em 1912 por John Murray, Londres.

- Francisco, Luís,  “Diário de dois rivais, Pólo Sul: rivalidade entre Amundsen e Scott através dos seus diários”,  Público, 4 de Janeiro de 2011,


-Mota,  Elsa; Simões, Ana; e Crawford, Paulo, “Eddington’s expedition to Principe and the reaction os the Portugueses astronomers (1917-1925)”, The British Journal of the History of Science 42(2) 245-273 (2009)

- Alberto Vieira, “Viajantes”, in Aprender Madeira. http://aprenderamadeira.net/viajantes/

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