As reiteradas e pertinentes análises que diversos cientistas têm feito de "terapias alternativas", nomeadamente as respeitantes ao seu reconhecimento e legitimação no sistema público de saúde podem ser, com propriedade, aplicadas a "abordagens pedagógicas" introduzidas nos sistemas públicos de ensino, ao abrigo de orientações/recomendações internacionais e de indicações e directrizes nacionais.
O caso do mindfulness é um dos mais evidentes (ver, por exemplo, aqui e aqui), tanto pela demagogia que a tutela e os seus mentores usam na apresentação que dele fazem, como pelas práticas que o concretizam junto de alunos, professores e encarregados de educação, como, ainda, pela rápida expansão que está a ter nas escolas e nas salas de aulas, envolvendo, sobretudo, autarquias, centros de investigação/universidades e empresas.
Além da questão de princípio, que se traduz, como alguém disse, na transformação da Escola (cuja função é ensinar e aprender certos conhecimentos que robustecem a inteligência), numa clínica de reabilitação (a que todos têm de ser submetidos, no pressuposto de que padecem de algum problema psicológico), há a questão científica, dos efeitos que isso poderá ter, sobretudo nos alunos. Isto para não falar da questão ética e, até jurídica, que é levantada pela intervenção junto da pessoa, como sujeito individual, num contexto que é público.
Justifica-se, portanto, a urgente análise da prática (ou do conjunto de práticas) em causa, à semelhança da que tem sido feita no campo da saúde. Ela terá de ser de ordem filosófica (nomeadamente, sobre os fins da educação escolar e os valores éticos que a devem guiar) e de ordem científica (nomeadamente, sobre a validade dos pressupostos em que assenta e os seus efeitos a curto, médio e longo prazo).
Entendo que, em Portugal, essa análise deve partir daquilo que está instituído pelo Ministério da Educação e que tem sido corroborado pelos seus mais altos responsáveis (ver, por exemplo, aqui, aqui). Por isso, reproduzo abaixo o documento disponibilizado pela Direção Geral da Educação, sublinhando nele as expressões a que deve ser dada particular atenção.
Cópia do documento disponibilizado no sítio online da Direção Geral da Educação (aqui) |
Objetivos- Melhorar o autocontrolo do aluno e das suas competências de autorregulação;- Fortalecer a resiliência dos alunos e da tomada de decisão;- Apoiar o entusiasmo dos alunos para aprender;- Aumentar o sucesso escolar dos alunos;- Desenvolver competências sociais positivas (empatia e compaixão, paciência e generosidade);- Desenvolvimento das capacidades de atenção e concentração;- Redução dos conflitos entre pares.
Descrição da Medida- O MindUP é um programa compreensivo, baseado em evidência científica, que foi estudado em sala de aula. O programa promove a consciência sócio emocional, aumenta o bem‐estar psicológico e promove o sucesso escolar. É composto por 15 sessões de fácil implementação. Cada sessão do MindUP começa com informação científica sobre o cérebro, seguida de uma atividade na qual os alunos podem ver exemplos concretos sobre como o cérebro funciona, relativamente a cada área específica de concentração. Para além do desenvolvimento das 15 sessões, o programa integra o exercício diário da “prática central” que consiste na atenção plena no som e na respiração em três momentos ao longo do dia: à chegada à escola de manhã, após o almoço e antes de ir embora.
- A sala de aula MindUP é uma sala de aula otimista que promove e desenvolve a atenção plena em si mesmo e na relação com os outros, a tolerância à diferença e a capacidade para que cada membro da comunidade possa crescer como ser humano e aluno.- O projeto é implementado em todas as turmas do 1º ciclo, em regime de oferta complementar, na modalidade semestral dado que o programa está planificado para 15 sessões.
Vantagens da MedidaO MindUP oferece aos professores e alunos ensinamentos que respondem à atenção natural das crianças, o que conduz à autorregulação dos seus comportamentos. O MindUP assenta na ideia de que as crianças que aprendem a monitorizar os seus sentimentos e sensações tornam‐se mais conscientes e obtêm um melhor entendimento sobre como responder ao mundo de forma refletida em vez de reativa.
Cuidados na implementação da MedidaOs cuidados a ter com a implementação deste projeto resultam em grande medida da necessidade de dotar os docentes com formação adequada nesta área, de modo a que possam ser realizadas ao longo do dia os vários momentos, para além das sessões específicas de trabalho com os alunos.
Resultados esperados- Melhorar os níveis de concentração/atenção;- Melhorar os resultados escolares através de mais concentração, menos agitação e melhor comportamento.
Uma nota a terminar: diz-se no texto oficial (ver supra) que a medida/o programa em causa é "baseado em evidência científica", contudo, em vez da referência a trabalhos de relevo, é indicado um "site" onde se poderá "consultar mais informação" (http://preguicamagazine.com/2015/12/09/o‐mindfulness‐a‐mudar‐as‐escolas‐da‐
marinha‐grande/). Abrindo essa ligação (incentivo o leitor a fazê-lo) encontra-se publicidade a uma companhia da aviação que promete à "juventude" um desconto em todos os seus voos!
2 comentários:
Na esteira de grandes intelectuais de Portugal, como foi António José Saraiva, que terá dito ao seu irmão José Hermano Saraiva que, pelo rumo que estavam a levar as coisas da educação no nosso país, já não faltaria muito para que chegasse o dia em que junto com a certidão de nascimento cada bebé teria também direito a um canudo de licenciado que, digo eu, en passant, só praticamente ainda não têm, nos nossos dias, os motoristas de matérias perigosas, parece-me, com toda a humildade, que a promoção do sucesso escolar pela via administrativa saldou-se num êxito retumbante que faz do nosso sistema de ensino um dos mais avançados do mundo. Vejam o exemplo real de um formando, finalista de um curso profissional que, tendo já ingressado no mundo do trabalho, depois da formação primorosa que lhe facultaram os seus dedicados formadores, regressou à escola para concluir com sucesso os poucos módulos que tinha deixado para trás e, mesmo sem recorrer às técnicas do mindfulness, realizou uma prova de avaliação extraordinária, apresentando um powerpoint de copy e paste, a partir da internet, sobre a condutibilidade elétrica, surpreendendo os seus avaliadores que lhe haviam pedido, com muita antecedência e por escrito, uma exposição sobre a condutibilidade térmica!
Estimado Leitor
Não desvalorizado a apreciação que faz do estado do ensino no nosso país, insisto em dizer que a "promoção do sucesso escolar" nos moldes em que a conhecemos está generalizada na Europa (e não se restringe a ela). Trata-se de uma política global que visa, entre outras coisas, como tenho deixado nota neste blogue, secundarizar o conhecimento especializado (das disciplinas) em favor das competências sociais, afectivas, emocionais. Daí o recurso a métodos como o "mindfulness".
O exemplo que dá, sendo desconcertante, parece ganhar, nas suas múltiplas possibilidades de concretização, protagonismo nas escolas (desde as básicas às de ensino superior). Acontece que, como professores, não sabemos bem o que devemos e podemos fazer para o debelar. Penso que precisamos de pensar profundamente sobre isso.
Cordialmente,
MHDamião
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