quarta-feira, 28 de agosto de 2019

PORTAS DO INFERNO DESTE MUNDO EM QUE VIVEMOS

Steven Pinker, psicólogo e linguista, publicou, não há muito tempo, um livro com o título O iluminismo agora. Em defesa da razão, ciência, humanismo e progresso (traduzido em Portugal pela Editorial Presença). Nele defende, tal como em trabalhos anteriores e em conferências que tem feito em diversos países, incluindo o nosso, que este mundo em que vivemos é o melhor dos mundos. Que nunca a humanidade teve um mundo tão bom, tão justo. Usa indicadores de desenvolvimento reconhecidos e os números que apresenta para cada um deles comprovam o que diz. A sua tese, fundamentada em informação credível, permite-lhe afirmar que o cepticismo, o desencanto, o pessimismo que possamos ter deriva da ênfase que damos aos acontecimentos negativos. E isso em muito se deve ao jornalismo que, agora, nos dá acesso ao que é global. Em entrevista ao jornal Expresso, publicada em Junho passado, dizia o seguinte:
"... as pessoas pensam que vivemos numa época excecionalmente violenta, que a pobreza está a aumentar, que a iliteracia está a aumentar, e estão erradas, erradas, erradas. Isto não é otimismo, é aquilo que Hans Rosling chama ‘factfulness’. Ele inventou a palavra, que significa ter consciência dos factos”.
Porque acha que a perceção pública é aquela que é? Em parte tem que ver com a natureza do jornalismo. Ele foca-se em eventos, o que gera um preconceito a favor daquilo que é negativo. Porque muitas vezes as coisas boas consistem em não acontecer nada. Um país estar em paz, ou ser democrático, ou não ter sido atacado por terroristas. Ou as crianças lá crescerem com saúde. Os eventos tendem a consistir em coisas que correm mal: guerras, epidemias, etc. A perspetiva do mundo através do jornalismo é necessariamente diferente da perspetiva a partir de dados e tendências. Jornalistas já me confirmaram que têm a noção de que os assuntos sérios consistem em reportar o que está mal. Corrupção, fracassos, catástrofes, ameaças... investigação com a divulgação da ciência." 
Confiando nos dados apresentados por este professor de Harvard, há qualquer coisa que me incomoda na sua interpretação: entendo que, de alguma forma, pode desviar-nos dos grandes e pequenos problemas sociais (sempre de raiz, sobretudo, ética) que nos são mais próximos ou mais distantes. Remetem para uma tranquilidade que pode ser perigosa.

Por isso mesmo, vi e revi com grande interesse o debate realizado em Portugal - Ética, valores e política -, pouco dias antes da citada entrevista, entre Pinker e Michael Sandel. Os argumentos deste filósofo confirmaram a interpretação que havia feito e superaram-na. Há, de facto, problemas no mundo, muitos desses problemas são graves. Não podemos descansar sobre as conquistas feitas até aqui pois a regressão está sempre à espreita.

Neste Agosto está a passar na RTP3 uma séria de reportagens - Às portas do inferno -, que tem tudo a ver com o que acima disse.

Uma equipa de jornalismo dá a conhecer oito lugares onde, neste século XXI, os direitos humanos são (e hão-de continuar a ser por muito tempo) uma miragem: Rússia, Colômbia, Perú, Detroit - EUA, Nápoles, Honduras, México e Amazónia. Vacilamos, necessariamente, entre a leitura de base estatística de Pinker e a leitura de base crítica de Sandel.

São lugares que já conhecíamos, ao menos da comunicação social, devido aos dramas pelos quais as pessoas que os habitam passam. Há, porém, na abordagem de Sonia López e de Noemi Rodondo, as faces da equipa, um cuidado, uma delicadeza que empurram as reportagens para fora do que é comum.

Subtilmente, tanto nas imagens como nas conversas, percebe-se o sentido da Dignidade, quer de quem pertence a esses lugares quer de quem os visita. Sobressai o sentido de Pessoa, de se ser Pessoa. É esse sentido que, mesmo na maior miséria, na maior tragédia, não pode ser abandonado.

Isso percebe-se bem nas palavras de Sonia López (ver aqui).
¿Cómo son las puertas del infiernoEn el caso de lo que hemos hecho Noemí Redondo y yo, se trata de un programa de reportajes documentales sobre situaciones que vive la gente en otros lugares del mundo; situaciones que para nosotros pueden ser normales como ser homosexual, mujer, niño, activista medioambiental o taxista, según en qué lugares estés puede convertirse en una situación de alto riesgo (...).
¿Periodismo de denuncia el suyoDe denuncia o, simplemente, periodismo de contar historias que al final es lo que nos gusta a los que nos dedicamos al periodismo… 
Pero historias que de bonitas tienen bien poco, son muy duras. A veces puedes contar historias superbonitas, es muy agradable, y otras veces son más crueles y más duras (...).  
Colombia ha disminuido su nivel de riesgo, pero si hablamos de México y de la situación de la mujer… La situación de la mujer en este país es muy cruel y dura. Personalmente, de los programas que he grabado es el que más me gusta, pero la dureza es terrible. Sientes que hay una injusticia brutal, hay un machismo tan metido en la sociedad que resulta inconsciente. 
¿Se asume por parte de la sociedadDecir que se asume es lo más duro, no toda la sociedad mexicana lo asume, pero sí una buena parte (...). Es peligroso que la gente no se escandalice por esa violencia hacia la mujer que hay en México.  
Tiene que ser un infierno para las familias de las mujeres desaparecidas y asesinadas. En cualquier caso sería un infierno, pero en el caso de México no es un infierno respaldado por la sociedad. La gente se está acostumbrando en México a que la mujer sea utilizada y maltratada, no quiero generalizar y que se piense que en todo México se vive así, pero las cifras son escandalosas y duras: mueren seis mujeres al día en todo el país, cada cuatro horas es violada una mujer. 
¿Sintió miedo al hacer alguno de estos reportajesMiedo, no. Estoy muy acostumbrada a ir a lugares de riesgo, lo que tienes que tener es más precaución según a los sitios a donde vayas. No es lo mismo grabar en México que en otros sitios. Te involucras tanto con los testimonios, con las personas con las que hablas, con las familias de las víctimas, que piensas que pasar miedo al lado de los casos que estás viendo es una tontería. El auténtico peligro lo tienen ellos, no tú, que estás unos días y te vas. (...) 
¿Qué país es el que más le ha impresionado de todos los reportajes que ha hecho en su vida profesionalEs complicado, cada uno te impresiona por una cosa u otra (...) me impresionó mucho Colombia como lugar atractivo para ir de vacaciones. Tiene unos paisajes increíbles, sobre todo por la zona del Caribe. Sin embargo, ahora he estado en Colombia haciendo este reportaje de los niños y ves otra realidad.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

É bom que não percamos de vista as proporções e as comparações e que tenhamos referenciais de análise e crítica, se pretendemos dizer o que é melhor. É inevitável, quando se olha para o passado, a ideia do balanço. Mas o balanço pode ser difícil ou impossível de realizar, consoante os casos. Fazer propaganda, com entusiasmo, seja em que situação for de avaliar serena e objetivamente, é um mau sinal. A realidade não precisa de "álcool" ou "adrenalina" para ser o que é. E nós não precisamos de "drogas" para vermos a realidade.
No fundo, tentar comparar o mundo actual com o do passado, mais ou menos recente, é tentar um exercício de ciência histórica que não está ao alcance de todos. Tenho lido escritos de assumidos otimistas que só vêem progresso em tudo, porque acreditam que nada pode regredir e que nunca há regresso e que, aconteça o que acontecer, o que resultar será o melhor possível e que nada é melhor do que o possível. Estes, decerto, nunca se lamentam, nem queixam. Não obstante, parecem-me deterministas a tal ponto que são os mais refinados pessimistas. Porque "o que pode acontecer" é que lança o jogo e os humanos podem jogar muito forte, num determinado sentido. Quando olhamos para o passado e constatamos que houve um progresso, não podemos deixar de pensar que progresso é esse, qual o seu custo...Se o progresso destruir o planeta, ainda assim é progresso.
Mais promissora e interessante do que a ideia de progresso, é a ideia de desenvolvimento e felicidade. À luz destas ideias, vemos que, antigamente, havia problemas que nós não temos e que, actualmente, existem problemas que os antepassados não tinham. A relação entre a quantidade e a qualidade dos problemas existentes e a capacidade, eficiência, na sua resolução, parece-me um bom rácio para fazermos comparações. Posso estar enganado, mas a minha percepção é que a nossa capacidade para ver problemas e encontrar problemas aumentou imenso, talvez muito mais do que a nossa capacidade para resolver problemas. Diria até que, por cada problema que resolvemos, criamos mais...

Rogério Marques disse...

Para quem quiser ver a série legendada em português ainda está disponível na RTP Play na seguinte ligação: https://www.rtp.pt/play/p6129/e425050/as-portas-do-inferno-italia-a-procura-da-camorra

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...