segunda-feira, 19 de agosto de 2019

O remorso de Fellini sobre a sua relação com o corpo

Meu artigo publicado hoje no "Diário as Beiras":

"Mas depressa me arrependi. 
Se eu tivesse sido o Super-Homem, 
teria sido capaz de intervir em inúmeras injustiças monstruosas” 
Frederico Fellini. 


Prisioneiro de uma má recordação por ele próprio confessada numa entrevista publicada no prestigiado diário italiano La Stampa - “eu sempre me senti bastante distante do meu corpo; era a única forma de escapar àquela marca da educação física fascista e à obsessão católica com as questões carnais” -, em seu leito de enfermo, diminuído fisicamente e em sofrimento psíquico por um acidente vascular cerebral de que viria a falecer poucos dias depois, Frederico Fellini (1920-1993) deu um impressionante testemunho que merece ser revisitado por fazer parte de um comovente texto de remorso pela sua desagradada relação com o Corpo.

Nesse testemunho não se esquiva, esse monstro sagrado de uma cultura cinematográfica sem pátria, a uma contrição sobre o distanciamento que sempre manteve como o seu Eu corporal: “Mas depressa me arrependi. Se eu houvesse sido o Super-Homem, teria sido capaz de intervir em inúmeras injustiças monstruosas”.

E prossegue, num leito de sofrimento que se viria a tornar antecâmara da morte: “A minha relação com o meu corpo mudou. Eu costumava considerá-lo um servidor que me devia obedecer, funcionar, dar prazer. Na doença apercebemo-nos de que os senhores não somos nós, mas sim o nosso corpo que nos mantém prisioneiros”.

Aliás, deve-se a Platão a progenitura destas grilhetas quando considera “o corpo túmulo em vida da alma”. Estranhamente, assume o corpo uma inesperada dignidade quando matéria pútrida, sem sopro de vida ou nobreza d’alma. Logo, parece-me que a pompa das cerimónias fúnebres se assume como tardio remorso pelo desprezo que lhe é votado em vida.

Em resumo, para o corpo rejeição em vida e homenagens fúnebres que perduram na memória civilizacional.

Em contrapartida, o corpo humanizado, que ri e que chora, que se movimenta e expressa corporalmente, personificado na figura dum Atlas, ajoujado ao peso de falsas convicções e preconceitos sem fim, tarda em libertar-se duma funesta sombra que a contemporaneidade se esforça em dissipar: “O nosso século apagou a linha divisória entre o corpo e o espírito e vê a vida humana como espiritual e corporal ao mesmo tempo e sempre apoiada no corpo” (Merleau-Ponty, 1908-1961).

Perante uma angústia que se lhe estampa no rosto, à pergunta do que sente mais a falta, a resposta surge sem qualquer hesitação: “De mim próprio. Daquilo que eu era”.

Na verdade, a doença e a velhice com os seus achaques e decrepitudes fazem o espírito incapaz de manter uma ilusória tutela sobre o corpo que nunca chegou a ser efectiva. Unicamente alimentada pelo ledo e doce engano de que a juventude e a saúde são eternas porque somos jovens e saudáveis.

E, quando em infortúnio, o espírito deseja o corpo forte, rebelde e combativo, qual Espartaco, a doença, a velhice, a fealdade, depois de combates perdidos, vencem-no em batalha final. Sem honra, nem glória!

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Um texto que tem muito que se lhe diga, que nos interpela profundamente acerca do que nós, humanos, somos. Desde a consciência da nossa materialidade e da nossa funcionalidade, até à consciência da nossa condição, ou da condição a que estamos sujeitos por força da natureza. Nós somos o corpo que temos e muito mais. O próprio corpo é, pode ser, muito mais ou muito menos do que aquilo que, num dado momento, é, sentimos, pensamos que é. Este desencontro entre nós e o nosso corpo é o desencontro entre o nosso corpo e ele mesmo. É como se tivéssemos um corpo caprichoso em conflito com um espírito caprichoso, ambos cedendo mutuamente, mas só até certo ponto e de um modo não muito previsível. Dois eus em conflito, eu corpo e eu mente. Um conflito, em grande parte resolvido pela força e até pela violência. A mente dobrando o corpo, vergando-o como um escravo, ou adestrando-o como um animal, é uma mente de um corpo que aguenta, que é forte, até ao momento em que já não pode, ou adoece. E, agora, o que farei?-pergunta a mente. O corpo não responde e a mente aguarda que o corpo responda. Se não responder, a mente continua à espera, até o corpo morrer. Compreender o nosso corpo é muito difícil, tanto ou mais do que compreender a relação entre a mente e o corpo. A forma como o nosso cérebro aprende a enganar-nos (isto é, a si mesmo)é desconcertante. Isso constata-se no problema dos vícios e na luta interior que o viciado trava, como se fossem dois, aquele que quer fumar e aquele que odeia fazê-lo... E com o esforço físico, a tendência para o repouso e a vantagem de se esforçar, o prazer que advém do esforço, ou do exercício...O corpo nem sempre é rebelde, a maior parte das vezes, felizmente, não é e sentimo-nos bem no nosso corpo, seja no sexo, seja na alimentação, seja na disposição em geral. Mas há imensas coisas que o nosso corpo se recusa a fazer ou, simplesmente, não pode fazer, para nossa frustração ou desapontamento, e situações em que parece ser o próprio corpo a querer fazer muito mais do que aquilo que pode, ou lhe exigimos. Passámos uma vida a refrear o corpo, a "impedi-lo" de ser ele próprio, como se ele fosse alheio. E fazêmo-lo na doença e na saúde. Não o queremos doente. Não o queremos fraco. Não o queremos drogado. Não o queremos excitado para além do nosso controlo...Em suma, em tudo impomos a nossa vontade, ou falta dela, ao nosso corpo, que não é outra senão a que resulta dos conflitos interiores que esse corpo trava.

Rui Baptista disse...

A minha gratidão pelo seu comentário que muito gosto me deu em ler e proveito tirei da sua leitura, destacando o parágrafo final conclusivo: "Em suma, em tudo impomos a nossa vontade, ou falta dela, ao nosso corpo, que não é outa senão a que resulta dos conflitos interiores que esse corpo trava".

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