sexta-feira, 19 de julho de 2019

LETRAS E CIÊNCIAS, COM A LUA NO MEIO

Como amanhã se comemoram os 50 anos da chegada à Lua recupero um texto do meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva, julgo que esgotado), onde a Lua entra:


É muito antiga a divisão entre as várias disciplinas. A barreira mais alta é a que se ergue entre letras e ciências, as designações tradicionais mas infelizes para conjuntos de disciplinas (em vez de letras será melhor dizer-se ciências humanas e em vez de ciências será melhor dizer-se ciências exactas e naturais). Mas há outras barreiras um pouco menores: dentro das letras, por exemplo entre a literatura e a história e, dentro das ciências, por exemplo entre a física e a biologia. Têm-se não só objectos e metodologias diferentes mas também linguagens diferentes. Quem escolhe a linguagem literária, salvo algumas excepções, é quem recusa a linguagem matemática – a linguagem das ciências exactas e naturais.

Mas serão as linguagens das letras e das ciências mesmo antagónicas? Poder-se-ia a este respeito citar vários cientistas que se pronunciaram sobre o assunto. Mas cite-se antes um escritor, o italiano (embora nascido em Cuba)  Italo Calvino, que, em vários dos seus livros, mostra claramente uma influência científica (ver, por exemplo, as colectâneas de contos  Cosmicósmicas” e “Novas Cósmicómicas”, publicadas entre nós pela Teorema). No seu livro de ensaios  Ponto Final. Escritos sobre Literatura e Sociedade” (Teorema,  2003, tradução do original italiano “Una pietra sopra”), publicam-se duas breves entrevistas de Calvino sobre ciência e literatura. O entrevistador fala da hipotética  necessidade do escritor de vanguarda se tornar cientista” e interroga o autor de “Cósmicómicas” sobre “o que justificará a literatura em relação à ciência”? Eis a resposta:

“Não pode haver nenhuma coincidência entre a linguagem matemática e a linguagem literária, mas pode haver (precisamente pela sua extrema diversidade) um desafio, uma aposta entre elas. (...) A literatura pode servir de mola propulsora para o cientista: como exemplo de coragem na imaginação, no levar uma hipótese às extremas consequências. E pode acontecer o contrário: o modelo da linguagem matemática, da lógica formal, pode salvar o escritor do desgaste em que caíram as palavras e as imagens devido ao seu falso uso”.

Noutro passo da entrevista é abordada a afirmação feita noutra ocasião por Calvino de que Galileu seria o maior escritor italiano de sempre, o que será certamente uma grande heresia para muitos professores de literatura (bem, para dizer a verdade, Calvino queria dizer prosador, uma vez que reserva o primeiro lugar na poesia a Dante).

Recorde-se que Galileu é o autor de duas grandes revoluções que têm a ver com a linguagem. Por um lado, escreveu alguns os seus livros científicos mais importantes em italiano e não em latim: queria evidentemente ser lido, no seu país, por toda a gente e não apenas pelos eruditos. Por exemplo, o “Discurso sobre Duas Ciências Novas”, o livro fundador da mecânica e da ciência de materiais, intitulava-se no original de 1634 “Discorsi e demontrazioni mathematiche intorno a due nuove scienze attenenti alla meccanica.” Por outro lado, defendeu, com enorme vigor e clareza, que a Natureza estava escrita em linguagem matemática, isto é, que ela só se deixava compreender recorrendo a essa linguagem. Ora leia-se a este propósito este naco da saborosa prosa de Galileu, extraído de “Il Saggiatore” (1623): 

«A filosofia do Universo, esse grandíssimo livro que continuamente está aberto em frente de nossos olhos, não se pode entender sem primeiro se conhecer a linguagem e os caracteres em que está escrita. A sua linguagem é uma linguagem matemática em que os caracteres são os triângulos, os círculos e demais figuras geométricas, sem o conhecimento dos quais é impossível entender uma só das suas palavras».

Pois o que diz o escritor Calvino sobre o cientista (e obviamente também escritor) Galileu, na referida entrevista?

Galileu usa a linguagem não como elemento neutro, mas com uma consciência literária, com uma contínua participação expressiva, imaginativa, até mesmo lírica. Ao ler galileu gosto de procurar as passagens em que fala da Lua: é a primeira vez que a Lua para os homens se transforma num objecto real [lembre-se que Galileu tinha construído o primeiro telescópio, que logo usou para ver a Lua e outros astros], que é descrita minuciosamente como coisa tangível, e no entanto assim que a Lua aparece, na linguagem de Galileu sente-se uma espécie de rarefacção, de levitação: eleva-se-nos numa encantada suspensão (...) O ideal de olhar sobre o mundo que guia também o cientista Galileu alimenta-se de cultura literária”.

Não admira que Calvino, tocado pela magia da Lua, tenha escrito sobre ela em várias ocasiões. No livro “O Senhor Palomar” lamenta-se de “ninguém olhar para a Lua de tarde, quando esse é o momento em que a Lua requer mais atenção, uma vez que a sua existência ainda está em dúvida”. Curiosamente uma das grandes questões na polémica entre Einstein e Bohr a propósito da teoria quântica foi a de saber se a Lua está lá quando ninguém olha para ela... Um dos contos de “Cosmicómicas” intitula-se  A distância da Lua”. O autor descreve-nos nele um tempo em que a Lua estava tão perto de nós que ficava à distância de uma escada. De facto, diz a Física que a Lua nasceu da colisão de um astro errante com a Terra, pelo que houve um dia em que a distância entre Lua e Terra foi mesmo nula...

Um outro escritor que, no seu estilo muito próprio, cultivou a relação entre as letras e as ciências foi o argentino Jorge Luís Borges. Apetece trancrever aqui o que esse grande mestre da língua castelhana disse sobre a Lua numa entrevista:

A Lua é diferente conforme os idiomas: Lua, Lune e Moon (que é uma palavra escura e lenta) são as que melhor a nomeiam. Pelo contrário, em inglês antigo é mona e masculino: “o” lua. Em alemão, Mond, também não é lindo  [também é masculino, Der Mond]. E Selene é bastante feio, em grego.  (Pilar Bravo e Mario Paoletti, “Borges Verbal”, Assírio e Alvim”, 2002).

A nossa Lua é só uma (Júpiter, em contraste, tem muitas), mas mostra-nos diversas fases: não será a fase de lua nova mais “moon” do que propriamente “lua”?

A divisão tradicional entre letras e ciências não  hoje muito actual uma vez que linguagens aparentemente opostas têm bastante a dizer uma à outra. De facto, a conjugação dos vários saberes e das várias linguagens  em que eles se exprimem é o único meio para descrever as riquezas do mundo e também de resolver alguns dos problemas desse mesmo mundo. Por exemplo, o físico de hoje sabe que muitas questões da Física têm implicações humanas e que algumas questões da literatura ganham com o foco da Física. Todas as ciências são afinal humanas porque são feitas pelo e para o homem...

Se, no passado, o conhecimento foi excessivamente arrumado em compartimentos estanques, incomunicáveis, no futuro, ele nascerá cada vez mais do encontro de visões diversas, que ganham em interpenetrar-se. Italo Calvino diz-nos que a visão literária e a visão científica se podem e devem  articular. É óbvio que não há interdisciplinaridade sem disciplinaridade e que as visões e linguagens disciplinares não desaparecem quando se cruzam. Mas a ligação entre as disciplinas  – tão nítida no pensamento de Calvino - aparecerá cada vez mais nítida.  Querê-la não será pedir a Lua!

3 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

As diversas disciplinas têm uma linguagem que pode distingui-las, até certo ponto, mas todas têm em comum o serem sistemas de observação, análise, investigação, estudo e reflexão sobre determinados "objectos de estudo", com objetivos de "conhecimento".
A linguagem de cada uma delas, normalmente, já constitui um repositório decantado de conceitos e de noções que corporizam alguma forma de conhecimento. Assim, por exemplo, quando estudamos literatura, ou teoria da literatura, ou história da literatura, filosofia ou história da filosofia, estudamos conhecimentos corporizados em torno de obras literárias, de obras filosóficas, ou de problemas filosóficos, mas grande parte desses conhecimentos são teóricos, são teorias sobre...as obras, as ideias, os processos, os conteúdos e a forma, a contextualização, os significados, os impactos.
Outra coisa são as obras objeto de estudo. Ao falar da literatura, da filosofia, da história, das artes, posso fazê-lo com o mesmo rigor e exatidão com que falo do peso da lua, do volume da água do mar, da velocidade da luz, etc..
Embora este tipo de conhecimento não nos ensine a pesar a lua, nem quanta água há no mar, nem nos prepare para usar a eletricidade como força motriz, ou a perceber a velocidade da luz, ou por que razão a velocidade de um corpo não pode ultrapassar a velocidade da luz...não deixa de ser a linguagem da(s) ciência(s).
O Carlos Fiolhais, supondo que mantém sempre a mesma preocupação e responsabilidade científica) não fala com mais rigor científico, quando fala sobre a teoria da relatividade geral de Einstein, do que quando fala sobre a autoria e o conteúdo dos Lusíadas, ou sobre a Lógica de Aristóteles, ou sobre a batalha de S. Mamede.
O rigor ou a falta de rigor não tem a ver com o rigor e o mérito científico das disciplinas propriamente ditas, mas com o rigor e o mérito científico de quem fala delas.
Neste plano, poder-se-ia dizer que todas as ciências são exactas, senão não seriam ciências, embora possamos talvez distinguir entre juízos científicos, sobre realidades (as realidades não são exactas) e "juízos" conclusões de lógica pura e abstracta, cuja referência à realidade é de ordem matemática.
A divisão entre ciências não pode ter o significado de umas serem mais ciências do que outras.
Se um cientista da área da Física acha que não deve ouvir um cientista da área da botânica, porque este não lhe merece respeito científico ou um cientista da área da história despreza um especialista de Direito Fiscal, por este não ser das ciências exactas, aí já estamos a falar de uma divisão de ordem diferente, que tem a ver com estatutos sócio-económicos-académicos das várias ciências.
De qualquer modo, as diferenças entre um cientista e um matemático e um artista, um romancista, um pintor, um poeta, no que respeita aos respetivos objectos, problemas, de trabalho, ou "estudo", elaboração, incluindo as respectivas linguagens, objectivos(resultados) e finalidades, são muitas e são notáveis.
Aqui, talvez seja comum encontrar pessoas que se ignoram uma às outras, simplesmente, porque não estão interessadas no que os outros fazem, ou porque não conseguem dedicar-se a muitas coisas ao mesmo tempo, ou porque não sabem, etc..

Anónimo disse...

Portanto, o senhor Carlos Soares não deve saber que um pensamento vale mais do que mil palavras!...

Carlos Ricardo Soares disse...

Anónimo, não sei se deve saber ou não, mas aposto que um pensamento vale o que vale, ou nem isso, e, nem sempre ou nunca, vale mais ou menos do que as palavras.

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