domingo, 27 de janeiro de 2019

Não temos toda a margem de manobra, mas poderemos conseguir uma margem de manobra.


Gilles Lipovetsky, professor da Universidade de Grenoble, França, fez há poucos dias uma conferência em Coimbra e, a propósito dela, foi entrevistado por Luís Miguel Queirós. Da entrevista, que saiu no jornal Público de 23 de Janeiro (aqui), retiro os extractos que se seguem, referentes à educação escolar, e destaco algumas passagens.
"Em livros e artigos recentes tem insistido muito na importância de investirmos na educação. É o caminho mais prometedor para conseguirmos corrigir os excessos e desequilíbrios de uma sociedade que reduz o homem a uma espécie de homo consumericus, para usar o neologismo de que se serve em A Felicidade Paradoxal (2006)?
Há um enorme trabalho a fazer na educação e na formação de professores, e aí está tudo por inventar. A nossa sociedade livrou-nos de um modelo de educação detestável, autoritário, em que às crianças cabia obedecer. Eu gosto de autoridade, mas não de autoritarismo. Parece-me bem que os pais ouçam os filhos, embora depois também me irrite imenso ver como muitos deles os educam. Mas não podemos ser nostálgicos, porque o que havia antes, com os professores e pais autoritários, era pavoroso. Agora a escola é demasiado livre e isso também não é bom. 
Curiosamente, os professores tendem a não ser hoje uma classe especialmente bem tratada. Pois não. São muito mal tratados e os resultados também são maus. Quando pensamos que a escola obrigatória vai dos 6 anos, e às vezes dos 4, aos 16, estamos a falar de dez anos de escola. É muito tempo, mas uma estatística que tem sido discutida defende que entre 10% a 15% dos jovens que saem da escola mal conseguem perceber um texto. Não sabem escrever, não sabem construir uma frase. E isto não tem nada que ver com o capitalismo ou a globalização. Tem que ver com formar mal os professores e usar más ferramentas e métodos. E quero frisar um ponto que me parece importante: na economia não se pode fazer muito, temos os constrangimentos de Bruxelas, as exigências da globalização, mas na educação é o inverso, temos toda a margem de manobra. O que nos impede de criar uma escola diferente? Não há nenhum sistema de educação obrigatório na Europa. Nem as famílias são obrigadas a educar os filhos desta ou daquela maneira. 
Mas a educação faz parte do sistema...
...É verdade, o que estou a dizer é um pouco abstracto, mas podemos imaginar sistemas de educação muito diferentes, não é impossível. Acho que vamos ter surpresas. Já não foi pouco termo-nos livrado do antigo sistema, que fomentava um nacionalismo agressivo e contribuiu para as guerras mundiais. Agora temos gente invertebrada e que se sente mal na sua pele. Acredito que a escola tem de encontrar compromissos sem sacralizar o antigo nem endeusar o novo. É um trabalho muito importante. É à escola que cabe formar os espíritos (...)"
Os breves destaques que fiz no texto indicam pontos controversos ou, até, de alguma discórdia, decorrentes, por certo, de distintos olhares disciplinares sobre a educação escolar: da sociologia e da filosofia, por um lado, e da pedagogia, por outro.

Na verdade, a partir deste olhar, não é possível afirmar que "na educação e na formação de professores não está tudo por inventar". Como poderemos ignorar a história da educação para inventar "tudo" a partir daqui? Como poderemos ignorar o conhecimento sólido, confiável que conseguimos alcançar, tanto de carácter teorético como cientifico, sobre o fenómeno educativo e formativo?

Lipovetsky quis, por certo, acentuar a necessidade e a urgência de nos empenharmos em encontrar um rumo distinto daquele que a educação e a formação de professores está a tomar, ou que já tomou. Concordo com tal preocupação, mas discordo que o ponto de partida seja o zero, descuidando essa história e esse conhecimento. Se assim for, caímos na falácia da "Educação do futuro", da "Educação do século XXI", sustentáculo ideológico das reformas curriculares em curso à escala global, nas quais não se vislumbra um "compromisso" entre o passado, "o antigo" e o futuro, "o novo", como, de resto as duas expressões indicam. O caminho tem de ter em conta o antigo, sem o "sacralizar", e perspectivar o futuro, o novo, sem o "endeusar"

Devo notar que se trata de reformas que são fortemente "sugeridas" pelas entidades supranacionais que detêm o "poder que pode", o poder económico-financeiro, e que os Estados, abdicando da sua soberania, vão legitimando e implementando. Por isso, em matéria de educação escolar, não "temos toda a margem de manobra", há, sim, uma margem de manobra que, como sociedade, teremos de procurar reaver em nome da nossa responsabilidade para com as novas gerações. E, apesar de não haver formalmente "nenhum sistema de educação obrigatório na Europa", ele existisse num plano muito mais determinante, não restrito a este continente: trata-se do plano da infiltração dissimulada, mas absolutamente determinada dessas entidades nesse tipo de sistemas.

Para que a escola, dentro das funções que lhe cabem e não indo além delas, assuma a "formação de espíritos" é preciso que, antes de mais, adquiramos a consciência de que aquilo que ela, de momento, está destinada a formar é "capital humano". E, não tenhamos ilusões, tal consciência será muitíssimo difícil de conseguir no quadro de pensamento que nos envolve, quadro que Lipovetsky tão bem identifica e caracteriza.

3 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

O conceito de capital humano, a que os manuais de organização e gestão empresarial se referem como um dos elementos constitutivos de uma organização /empresa, é deveras problemático e não pode, sem mais, passar por ser mais um ativo transacionável, com o respetivo valor de mercado...
De mais a mais, o factor humano, na organização e funcionamento da empresa, dificilmente é equiparável ao factor capital, ou meios de produção, cuja rendibilidade, em geral, está associada ao factor humano e depende dele. Ainda se fala em capital intelectual para referir o acervo de competências, conhecimentos, etc., que, não raro, são a grande "riqueza" da organização.
Não obstante, todos esses elementos, se estiverem em repouso, produzem zero ou, pior ainda, dão prejuízo, porque não é o capital, ou o capital não é, que gera rendimento, mas o trabalho.
Quando se fala em capital humano, na realidade, para ser-se rigoroso, deveria falar-se em trabalho ou força de trabalho ou capacidade produtiva.
Não ajuda nada confundir as coisas, tanto mais que o "capital humano" não é um meio de produção e não é, seguramente, um produto ou uma mercadoria.
Nem sequer as competências específicas para uma determinada profissão o são.
O retorno que o Estado pretende/espera dos formandos da Escola Pública é uma realidade complexa e devemos interrogar-nos se existe um modo e um tempo, ou apenas um modo ou apenas um tempo, de esse retorno acontecer e se vai acontecer e se é legítimo que aconteça de qualquer modo.
Investir em "capital humano" não é como investir em capital financeiro, ou industrial, ou fundiário, ou em futuros, ou em matérias primas...
Investir em potencial humano já é mais plausível mas, ainda assim, há que considerar a hipótese de ser melhor afastar a ideia de investimento (tão cara ao capitalismo), quando de trata de humanos, quando se trata de alcançar fins que não são o lucro.
E há, seguramente, fins humanos e culturais mais relevantes do que o mercado e o lucro e muito prioritários, quer em termos de urgência, quer em termos de racionalidade económica e política.
No atual quadro de valores, a humanidade é desafiada como nunca a saber escolher e a escolher, porque tem de escolher, a que «senhor» ou «senhores» está disposta ou quer sujeitar-se.
Por exemplo, está fora de questão continuar a pensar que o capitalismo financeiro associado ao capitalismo industrial propulsionarão abundância de bens materiais sem limites para todos.
Mesmo que proporcionassem dinheiro sem limites.

Anónimo disse...

Em Portugal, a escolaridade obrigatória não são mais nem menos do que 12 anos! O "antigo" modelo de educação podia ser detestável, mas a libertinagem legal, que transformou os alunos em selvagens, não pode, racionalmente, ser considerada um "novo" modelo.
Temos de enfrentar o dilema:
É a abundância do vil metal que propicia o ensino fácil, universal e gratuito, ou é o sistema educativo que deve alavancar a economia de onde virá o dinheiro necessário?

caça-fantasmas disse...

"É à escola que cabe formar os espíritos (...)".
Ainda estou epileticamente contorcida, a rir... com o meu escolarizado espírito a olhar-me, longínquo e desistido.

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