Façamos uma leitura informada e livre - palavra cara a Rui Tavares (RT) - do artigo expressivo que acaba de divulgar no PÚBLICO “A esquerda comeu o meu trabalho de casa” (19/11), que só agora mesmo li.
Se a direita adopta um bom valor da esquerda fá-lo por... hipocrisia, isto é, por genética (!!!), diz Rui Tavares. Eu, pelo contrário, congratulo-me com isso. Bem-vinda a um justo valor, a uma boa prática!
RT, por seu lado, adopta, exibe, uma espécie de racismo político. Dito com uma parábola: se uma jovem paquistanesa islâmica oferecer um copo de água a um confrade cheio de sede, é um acto nobre, de fé exemplar. Mas se a jovem for cristã e o oferecer a um islâmico é uma blasfémia - um acto hipócrita, diria RT - punido com a pena capital. Isto é, o copo de água deixa de poder matar a sede!
Se eu aplicar esse critério inquisitorial que RT no caso vertente adopta, direi que a confusão que faz (de mau aluno de liceu) sobre a questão que levantou no seu artigo não resulta de ignorância, mas da perversidade genética. Isto é uma hipótese académica, repito, porque na verdade penso que resulta de cegueira ideológica. Que começo a recear incurável, eu que tinha esperança de o ver tornar-se em breve um excelente militante do PS, destino “etário” feliz de muitos trotskistas em França, nomeadamente Jospin e Moscovici. Destino que é uma pena para o País ser já tardio para Francisco Louçã, suponho.
Desmontemos a confusão de RT:
Quando diz “esquerda” refere-se a quê? À esquerda democrática liberal, movida pela exigência de liberdade, liberdade de pensamento e de expressão, de igualdade social, da educação e da cultura para todos, da independência da justiça, da recusa de todas as discriminações e da preocupação com a valorização das minorias? À esquerda dos direitos humanos universais? À esquerda que, com as direitas democráticas e cristãs, venceu os totalitarismos carniceiros do século XX? À esquerda herdeira dos ideais iluministas (a que RT justamente faz referência), designadamente os da liberdade de pensamento e de expressão, insisto, do humanismo, do cosmopolitismo e do universalismo, do mercado – regulado, tal como a liberdade é regulada pelo direito penal, o “doce mercado” (Montesquieu), factor de prosperidade, que exige a redistribuição e inclui o estado social? À esquerda do critério do mérito (a que RT chama ou junta bem a responsabilidade social), critério que a direita, tradicionalmente valorizadora do critério do nascimento – posteriormente adoptou? À esquerda herdeira do ideal europeísta (sim, Voltaire era um europeísta e a lógica dos grandes ideais do Iluminismo era, é essa)? À esquerda de Mário Soares e Mitterrand, de António Costa, não duvido, e, já agora que estamos no mês da transformadora cultura científica, de José Mariano Gago que quero lembrar sempre? À minha esquerda, permita-me V. Excelência, que essa sim está na minha “genética”, perdão, na minha história?
Ou à extrema-esquerda – igual à extrema-direita, seja lá qual for o discurso que ostentem – que exterminou milhões de seres humanos sufocando aqueles ideais? À esquerda do ódio aos ideais iluministas e, já agora que é um combate meu, do ódio à Ciência, à prova de realidade? Esquerda da estigmatização dos factos, da alteração impossível, delirante, da História e da realidade?
É História, RT, embora a tenham sempre tentado reescrever.
Surgiu agora em Itália – “onde nasce o perigo surge a salvação”, escreveu Hölderlin? – um livro em que se pretende explicar como identificar um fascista. Quanto a mim é mais simples do que diz a autora: se quiserem contactar um fascista, ou um estalinista que são idênticos, procurem um activista anti-europeu e terão uma esmagadora probabilidade de o encontrar. E o inverso é absolutamente infalível: um fascista e um estalinista são sempre anti-europeus.
Será que também preciso de lhe explicar isto, meu decepcionante Rui Tavares? Repare como estão tão unidos no anti-europeísmo o França Insubmissa do Senhor Mélanchon, o BE do inteligentíssimo (para mim sempre urbano, registe-se) Francisco Louçã e a Frente Nacional do Senhor Le Pen (diz-se agora que a Marine até já nem o está tanto assim). E prepare-se porque em breve os vai ter a todos a destaparem também a xenofobia que lhes está na matriz comum original.
E o Rui Tavares, que já o vi defender tão justamente o ideal e o projecto europeísta (em que é preciso enfrentar o que o está a fragilizar e a perverter, aprofundá-lo, claro), onde está agora?
Setenta e três anos de paz, como nenhuma geração antes da minha tinha vivido na Europa! Sem fronteiras. E de prosperidade, que temos de continuar a trabalhar, a lutar para levar a todos. Como se pode ser anti-europeísta?
Guilherme Valente (editor da Gradiva)
6 comentários:
Infelizmente, meu Caro Dr.Guilherme Valente, tornou-se uma espécie de doutrina política diabolizar a extrema-direita e santificar a extrema-esquerda do golpe de Estado bolchevique e dos crimes cometidos por Staline Chegou-se a ponto de dizer que o Muro de Berlim foi construído pela Alemanha Oriental para evitar que os cidadãos da Alemanha Oriental tivessem acesso ao Paraíso Comunista. Enfim...
Staline, não; Stalin ou Estaline, sim!
Ser de esqª ou de dirª é, em primeira aproximação, uma questão de autodenominação, uma questão de conveniência (ou até gramatical) em vez de ideológica, e geralmente a prazo. Ele há, num e outro lados, ricos, remediados e assim-assim; cultos, eruditos, ignorantes e assim-assim. Ser de um "lado" ou de outro, qual clubismo, é, com frequência, uma cara(c)terística conjuntural.
"Os fascistas do futuro chamar-se-ão a si próprios anti-fascistas", Churchill dixit; e hoje (já) é o futuro do tempo dele.
Ser de esquerda ou de direita, como bem escreve, é uma característica conjuntural. Obrigado pelo seu comentário que clarifica uma situação nebulosa.
Excelente texto - de facto, cada vez mais, os extremos tocam-se e equivalem-se...
O Doutor Cunhal foi para a classe proletária deste mundo o que o Sol é para a Terra!
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