quinta-feira, 7 de junho de 2018

De novo, feliz, em Lourenço Marques


Mais uma belíssima crónica de Eugénio Lisboa, publicada inicialmente no "Jornal de Letras", que a mim muito me diz sentimentalmente por nessa bela cidade do Índico ter vivido 18 anos de intensa e saudosa memória:


A felicidade é caprichosa: não se deixa facilmente capturar por quem a persegue. Dizia Bertrand Russell que a melhor maneira de se conseguir a felicidade não é procurá-la, directamente. Ela é, repito, caprichosa. Surpreende-nos, quando menos a esperamos. E toma conta de nós, pelas vias mais insuspeitadas.
Toda a gente conhece, de o ter lido ou de nele ter ouvido falar, o episódio relatado pelo narrador de À la recherche du temps perdu (de Proust), relativo à pequena “madeleine” que, embebida em chá e oferecida ao narrador pela sua tia, lhe trouxe inesperadamente e involuntariamente à memória, pelo seu sabor, todo um mundo do passado: a velha casa cinzenta, a cidade, a praça, a igreja, Combray e os seus arredores, a boa gente da terra… Um universo que, assim involuntariamente trazido à memória, se revela portador de uma indescritível felicidade. Levar à boca a pequena “Madeleine” impregnada de chá de tília foi a via insuspeitada de activar uma memória criadora de felicidade.
Todos nós, ao longo das nossas vidas, passámos por experiências análogas, mas, na maioria dos casos, passa-se por isso com alguma desatenção e sem se lhe atribuir importância ou significado de maior. Por vezes, porém, a experiência toca-nos tão fundo que, por momentos, não podemos deixar de reparar nela. Proust, psicólogo e anotador minucioso, deu-lhe, na sua Recherche, uma importância e um significado enormes.  É um exemplo extraordinariamente elaborado de “memória involuntária”, capaz de surpreender e encher de felicidade quem passa por tal experiência. Eis, nas inesquecíveis palavras de Proust: “E assim que reconheci o gosto do pedaço de madeleine embebido no chá de tília que me dava a minha tia (embora não soubesse ainda e devesse remeter para bem mais tarde descobrir a razão por que essa recordação me tornava tão feliz), imediatamente a velha casa cinzenta na rua (…), e as boas pessoas da aldeia e as suas pequenas habitações e a igreja e toda a Combray e os seus arredores, tudo isso que ganha forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha chávena de chá.” Trata-se de uma passagem justamente célebre, naqual se poderá rever – agora arrancado da sua desatenção  pela minúcia da atenção de Proust – o leitor do romance celebrado.
Tenho voltado muitas vezes a este momento do folhetim psicológico de Proust, que profundamente me tocou por ter eu próprio vivido momentos idênticos e tão ou mais intensos do que os experimentados pelo narrador de À la recherche du temps perdu. É um desses momentos que agora aqui vos trago.
Vivi em Londres dezassete bem fruídos anos – de 1978 a 1995 – na qualidade de conselheiro cultural da nossa embaixada. Foram dezassete anos cheios de uma variada vivência cultural, numa cidade em que a oferta era imensa e de grande qualidade. Foram anos felizes mas muito diferentes da vida que deixara para trás: 38 anos de experiência africana, em Lourenço Marques, cidade onde nascera e onde passara os primeiros dezassete anos da minha formação. Ali me casara e ali me nasceram duas filhas.
Culturalmente falando, Lourenço Marques não era uma cidade sem interesse: com um bom Cine-Clube, um Núcleo de Arte, grupos de teatro amador de grande qualidade (um deles dirigido por Mário Barradas) e páginas culturais cheias de vivacidade em vários jornais, com cinema onde a censura era menos apertada do que nas salas de Lisboa ou Porto (no Cine-Clube, vimos todo o cinema soviético – Eisenstein, Pudovkine, etc - , polaco, checoslovaco, romeno, húngaro, francês, sem que o censor visse objecção), com uma vida de grande convívio e tertúlia, cimentada nas reuniões de A Voz de Moçambique  ou do Cine-Clube ou, aos sábados de manhã, nas visitas às boas livrarias que por lá havia – não se morria propriamente de tédio. De uma maneira muito intensa e muito especial, era-se feliz. E era uma maneira de se ser feliz muito diferente da maneira de se ser feliz, em Londres. 

Nesta grande cidade, faltavam-nos as tertúlias, o convívio assíduo e de porta aberta, a conversa quotidiana, o desafio constante, as polémicas intermináveis, a cumplicidade entre amigos. Londres tinha coisas que em Lourenço Marques não havia, mas, por outro lado, não tinha outras que em Lourenço Marques havia. Era-se, em suma, feliz de modo diverso. Londres tinha indiscutivelmente uma maior diversidade de oferta e coisas (exposições, teatro profissional, música, ópera) de uma qualidade excelsa, que em Lourenço Marques eram impensáveis. Mas faltava-lhe a camaradagem quotidiana, o convívio quente, a amizade cúmplice sempre à mão de semear, a dialética vivificadora…
Ora, num certo dia da minha estadia em Londres, resolvi ir de viagem, no meu carro, até à margem sul do Tamisa (a South Bank), numa qualquer missão de serviço. Saí da embaixada por volta das onze horas da manhã e fui ao meu destino.  Estava um dia de sol relutante mas abafado e ameaçando chuva. Chegado à South Bank, estacionei o carro e dirigi-me, a pé, ao local onde tencionava ir. Fui andando e, subitamente, começou a chover. Não sei bem porquê, soube-me bem. Recebi a chuva quase como uma bênção, numa espécie de expectativa de nem sabia bem o quê. E, de repente, subiu do chão até mim o bafo capitoso da terra molhada. 
Uma difusa sensação de felicidade tomou, com grande força e intensidade, conta de mim. Aquele era o cheiro da terra molhada que eu tantas vezes experimentara, em Lourenço Marques, nas minhas sortidas à praia da Polana: aquele bom cheiro da terra fecundada pela chuva tropical. Era esse mesmo cheiro que agora se me oferecia, ali, na margem sul do Tamisa. Levava-me de novo, transportava-me a Lourenço Marques, numa viagem improvável mas imensamente real. Por momentos, eu estava em Lourenço Marques e não em Londres. E, repito, incrivelmente feliz, não de uma felicidade londrina, mas de uma felicidade perfeitamente laurentina. 
Daquele cheirinho a terra molhada saíra todo um meu passado de cumplicidades, amizades e convívio tal como os fruíra no meu tempo de Lourenço Marques. Ao meio dia de um dia de calor, na margem sul do Tamisa, rodeado de coisas londrinas, eu estava de novo a ser feliz em Lourenço Marques. Recuperara uma felicidade antiga, que se substituía a outra mais recente. A felicidade obtém-se, já o disse, por vias enviesadas. Por via do bom cheirinho da terra molhada, em Londres, eu ascendi, nesse dia de verão chuvoso, à felicidade peculiar que, tantos anos antes, me visitara em Lourenço Marques.

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