segunda-feira, 5 de setembro de 2016

PEDRO JOÃO DOS SANTOS: O FÍSICO MISTERIOSO

Meu texto na última Rua Larga, revista da Universidade de Coimbra:

São muitas e variadas as conexões entre o famoso personagem criado pelo desenhador belga Hergé (pseudónimo de Georges Remi) e o mundo da ciência. Mas são apenas algumas as referências que Tintim faz a Portugal e aos portugueses. Num só caso, os dois conjuntos de referências se intersetam: no álbum A Estrela Misteriosa, uma das personagens é Pedro João dos Santos, professor de Física da Universidade de Coimbra (UC). É bem conhecido o cuidado com que Hergé preparava os seus álbuns, muitas vezes baseados em cenários, personagens e eventos reais. Faz, portanto, todo o sentido perguntar: quem era o físico português da banda desenhada? Que personagem poderia ter servido de inspiração ao artista?

O álbum A Estrela Misteriosa, publicado em 1942, na Bélgica ocupada pela Alemanha nazi, descreve a queda de um meteorito na Terra, no qual tinha sido detectado, durante a queda, um elemento químico novo. Para o estudar, foi constituída uma comissão internacional de sábios, que apenas incluía cientistas da Alemanha e de países neutros, como Portugal e Suécia. A expedição, que viaja sob a bandeira de um Fundo Europeu de Pesquisas Científicas, anterior ao aparecimento das instituições científicas pan-europeias que emergiram no pós-guerra, inclui o investigador português Pedro João dos Santos, que Hergé designa por baixo do respe tivo retrato, de “célebre físico da Universidade de Coimbra”. Curiosamente, embora o Professor Santos nunca fale, é-lhe reconhecida alguma proeminência entre os sábios, uma vez que aparece por duas vezes em reuniões à direita de Tintim, o principal herói do álbum.

 Na época, ensinava em Coimbra um professor com um nome que também era “João” e “Santos”, João de Almeida Santos (1906-1975), que se tinha doutorado em 1935, na Universidade de Manchester, na área de raios X, trabalhando com o mais jovem prémio Nobel de sempre, William Bragg. Em 1942, Almeida Santos ainda não era catedrático (viria a sê-lo em 1948) e não se pode dizer que fosse célebre. Torna-se relevante na ciência da UC quando é nomeado, em 1948, diretor do Laboratório de Física, sucedendo a Mário Silva, o discípulo de Madame Curie afastado pelo Estado Novo por motivos políticos. Almeida Santos viria a dirigir o referido Laboratório até à Revolução de 1974. A ele se deve o desenvolvimento da investigação em Coimbra, não apenas na área dos raios X, mas também noutras áreas que cresceram nos anos 1960: a física nuclear experimental e a física teórica. Replicando o que se tinha passado consigo, enviou bolseiros para algumas das melhores instituições científicas do Reino Unido. Não admira, por isso, que o Departamento de Física o tenha homenageado em 1997. Antigos discípulos dele louvaram as suas capacidade pedagógicas e de gestão, baseadas numa sólida formação científica. Se o nome favorece a identificação de Almeida Santos com o físico português de Hergé, outros factores não vão no sentido de tal associação. O retrato da banda desenhada não se parece com o do personagem real (aparenta ser mais velho do que Almeida Santos, que em 1942 tinha 36 anos) e, principalmente, a sua área de trabalho não seria a mais adequada para integrar uma expedi­ção às águas do Árctico, em busca de um meteorito. A verosimilhança do retrato não é uma questão de somenos, pois o membro sueco da expedição, de seu nome Erik Björgenskjöld, apresentado como “autor de notáveis trabalhos sobre as protuberâncias solares”, parece inspirado em Auguste Piccard (1884-1982), um cientista suíço que trabalhou em Bruxelas e que, conforme o próprio Hergé admitiu, foi também o modelo para a criação do Professor Girassol, personagem que só surgiu em O Tesouro de Rackham o Terrível, de 1944, a sequela de O Segredo de Licorne, de 1943, o álbum seguinte à A Estrela Misteriosa. Piccard protagonizou descidas submarinas a grande profundidade, a bordo de um batiscafo de sua autoria, e também ascensões à estratosfera, a bordo de balões especiais. Um batiscafo em forma de tubarão, pilotado por Tintim, surge n’O Tesouro de Rackham o Terrível. 

Que outras hipóteses se podem colocar sobre a eventual personagem que teria inspirado Hergé? Havia, embora já jubilado, um outro professor da UC, que, sendo matemático em vez de físico, trabalhava na área da Astrofísica Solar (portanto, tal como Björgenskjöld, sabia de protuberâncias solares): Francisco da Costa Lobo (1854-1945) doutorou­-se em 1885 e foi director do Observatório Astronómico de Coimbra, de 1922 a 1934, quando se jubilou. Participou em numerosos congressos por todo o mundo, representando a UC e a ciência portuguesa, tendo com isso alcançado um certo reconhecimento internacional (recebeu, por exemplo, a Ordem de Leopoldo da Bélgica). No entanto, se a sua área de trabalho e a sua celebridade se ajustam mais à sua integração numa equipa científica internacional, contra a sua identificação está o facto de ele, em 1942, com 88 anos, estar há muito retirado da vida ativa. Há ainda uma terceira hipótese: o físico António Gião (1906-1969), que começou a estudar na UC em 1924 e que se mudou para a Universidade de Estrasburgo, onde se formou em Geofísica, tendo então começado uma carreira internacional em meteorologia. Esteve em várias cidades europeias e há uma curiosa associação a uma expedição a águas do Árctico: em 1928, foi convidado a integrar a expedição ao Polo Norte chefiada pelo capitão italiano Umberto Nobile, tendo, no entanto, declinado o convite. Foi a sua sorte, pois a expedição acabou em tragédia: o dirigível caiu nos gelos, tendo morrido sete dos seus tripulantes. Para cú­mulo do infortúnio, também faleceu numa operação de socorro o famoso explorador norueguês Roald Amundsen, que tinha sido o primeiro a chegar ao Polo Sul em 1911. Gião haveria, devido à guerra, de voltar a Portugal, tendo­ -se estabelecido na sua terra natal, Reguengos de Monsaraz. Em 1946, dá início a uma correspondência com o então já famoso Albert Einstein, a residir em Princeton, nos Estados Unidos. Haveria de ingressar na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, nos anos 1960, como professor convidado. Foi também o primeiro director do Centro de Cálculo do Instituto Gulbenkian de Ciência.

Não há, portanto, uma atribuição óbvia a um personagem real do personagem fictício da história de Tintim. Almeida Santos, Costa Lobo ou Gião. Os três tiveram ligações à UC, os três tiveram carreiras internacionais e os três, cada um a seu modo, foram figuras do século XX português, decerto marcado pela governação de Salazar. O facto mais interessante é Hergé ter-se lembrado de incluir um cientista de Coimbra numa expedição, chefiada por um belga, que reunia cientistas da Suécia, Espanha, Suíça e Alemanha. Tem sido muito discutida a inclinação germanófila de Hergé nos tempos da Segunda Guerra Mundial. De facto, o jornal Le Soir, onde ele primeiro publicou as tiras de A Estrela Misteriosa, era colaboracionista com o invasor. Um pormenor deste álbum dá a entender o antissemitismo do desenhador belga. Com efeito, há uma expedição ao meteorito rival da do Fundo de Pesquisas Europeu: ela aparece no Le Soir como uma expedição norte-americana financiada por um judeu, de seu nome Blumenstein. Hergé mais tarde teve o cuidado de ter mudado a bandeira dessa expedição para a bandeira de uma inexistente República de São Rico e de ter substituído o nome do patrocinador por um outro sem qualquer conotação judaica. As Aventuras de Tintim são um retrato do tempo em que foram desenhadas e, como não podia deixar de ser, também um retrato do autor. Hergé pode ter sido controverso, mas é incontroverso que a sua obra inaugurou uma época na banda desenhada.

2 comentários:

Anónimo disse...

A legenda não faz sentido porque não há nem nunca houve um físico célebre na Universidade de Coimbra.

Vitor Nunes disse...

É uma história imaginativa, mas considerar António Gião como podendo ser esse tal físico célebre ligado à Universidade de Coimbra parece ser um pouco ousado.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...