sexta-feira, 23 de setembro de 2016

90%* do caro leitor foi feito nas estrelas


Apresentação, em primeira mão, do livro de Alexandre Aibéo, com o título de cima, que é o próximo da colecção "Ciência Viva". este é o capítulo introdutório do livro (o primeiro que conheço que tem uma nota de rodapé no título).

"Nem sei bem por onde começar... se pelo título, uma mistura entre slogan de auto‑ajuda, impresso
numa t‑shirt, e o nome de uma novela da hora de almoço; se pelo fascínio que a Astronomia me suscita ou da paixão que é transmiti‑lo; se pela lenta cadência que será iniciar uma relação consigo, amigo leitor, ainda antes de encetarmos esta série de conversas que resolvi juntar sob a forma de livro.

Diz‑me a experiência de quase vinte anos a comunicar ciência que a Astronomia é, geralmente, algo que desperta o interesse das pessoas... mas devo dizer‑lhe que já me aconteceu de tudo! Desde públicos mais interessados numa carroça puxada por uma burra [1] até miúdos completamente extasiados por simplesmente espreitarem por um telescópio, apesar de as nuvens não lhes permitirem ver astro algum.

Sei bem que o leitor, que agora me segue nestas linhas, nutre alguma curiosidade pelo mundo que o rodeia, mas deixe‑me já garantir‑lhe que, no fim das nossas conversas, a sua noção de mundo terá mudado. Existe, claro, uma possibilidade de tal não acontecer e isso significará que este volume deveria ter ido mais longe: falar‑lhe da fusão de buracos negros, da detecção de neutrinos, na essência da energia escura, das técnicas para detectar a atmosfera de planetas extra‑solares, da possibilidade de objectos de outros sistemas estelares estarem a orbitar o nosso Sol. Repare, contudo, que não o conhecendo não faria muito sentido alavancar‑me para essas questões sem saber se outros temas mais «prosaicos» lhe são familiares.

Terá certamente notado que não tenho um discurso infantilizado; mesmo quando me dirijo a crianças, não o uso. O meu ponto de partida é, no entanto, uma criança de oito anos. O que estou a dizer é que assumo sempre que o meu público tem os mesmos conhecimentos científicos e igual espírito inquisitivo. E este é também o meu ponto de chegada — pretendo que após este nosso encontro o caro leitor se sinta de novo um miúdo de oito anos: siderado, com a imaginação «a mil» e ansioso por saber, conhecer, perguntar‑se mais!

A matriz deste livro é uma série de palestras que tenho «colocado no terreno» nos últimos anos, a maior parte delas muito testadas, reformuladas e muito reescritas, são, em grande medida, fruto da ligação com as pessoas. É importante que o público se sinta identificado com o que lê ou ouve, mas não é esse o meu objectivo, a ideia é antes atirá‑lo para fora de si, para fora do sistema solar,
arremessá‑lo pelo espaço fora e puxá‑lo, para na volta questionar as suas referências iniciais. Pode ser violento, bem sei. Poder‑se‑á encontrar a pensar nos impressos do IRS, estar preso no trânsito ou à espera do autocarro e,  ao mesmo tempo, deixar‑se levar para a superfície solar e ver as arcadas de plasma que o circundam, atravessar uma estrela até ao seu interior momentos antes de ela explodir, ou a tentar compreender os instantes imediatamente após o início do Universo. Tudo no mesmo dia! Na viagem de volta verá toda a história humana, todo o conhecimento e ideias, todas as angústias, as perdas, as vitórias, as alegrias, todas as lágrimas, reduzidas a um pequeno, insignificante, pontinho azul‑claro [2]. Num piscar de olhos do Universo, este ponto ter‑se‑á obliterado, mas não para sempre... Todos os átomos serão espalhados e reaproveitados para fazer novas estrelas e, quase certamente, novos planetas, nova vida e, quem sabe, novas angústias e alegrias, novo conhecimento e ideias, novas lágrimas que desta vez poderão não ser de água e cloreto de sódio.

Devo confessar‑lhe que, enquanto punha no papel estas conversas sob o formato de livro de divulgação científica, acusei o toque da responsabilidade, não só pela necessidade de rigor como pelo facto de ter de me comparar, se alguma comparação é possível, com nomes tão grandes como Carl Sagan, Hubert Reeves, Stephen Hawking, Brian Cox, Brian Greene, e muitos outros que, ao longo das décadas, têm publicado tratados absolutamente extraordinários e têm guiado e produzido gerações de novos cientistas nos quais este seu autor se inscreve.

Vemos uma profusão imensa de informação, está em todo o lado e caminha, literalmente, no nosso bolso. «Está tudo na internet!», não é raro ouvir‑se dizer. É fundamental, contudo, perceber que informação não é conhecimento, muitas vezes até são opostos. Uma colagem de informações gera, regra geral, uma visão distorcida do mundo que nos rodeia e é aqui que a explicação se assume como fulcral para a construção do conhecimento. Nunca, como hoje, foram necessários a conversa, o artigo, o livro.

Mas que tem este livro de novo ou diferente, porque não ficar com os grandes mestres? Posso apenas
dizer‑lhe que procurei ser fiel à minha experiência de «campo» e que assumi esticar o limite do simples livro de divulgação. Introduzo algum formalismo, mas não se assuste: proponho‑lhe,
sempre que possível, caminhos alternativos se não quiser explorar a elegância da matemática. Acredito, no entanto, que, na altura devida, se sentirá suficientemente confiante para me seguir. Na
verdade, a natureza está escrita em linguagem matemática, é o idioma em que ela se revela, especialmente quando roça os limites da nossa imaginação.

Procurei um tom coloquial de escrita, como certamente já terá percebido, convidando‑o para as poltronas que tenho junto à janela na sala lá de casa. Arranjo‑lhe uma bebida fresca ou um chocolate quente, até talvez uns aperitivos, enquanto conversamos sobre Astronomia e tudo o resto que vier a propósito. Se não souber responder a todas as suas questões, então estamos no bom caminho, iremos procurar as respostas e, com toda a certeza, descobrir novas perguntas. No penúltimo capítulo puxarei um pouco mais por si com o único intuito de o lançar mais longe... Imagine‑se colocado numa fisga com o elástico bem tensionado e prestes a ser largado... É assim que espero que se sinta no final deste livro.

Antes de lhe servir o café ou o refresco deixe‑me contar‑lhe uma história. Quando comecei nestas andanças da promoção da cultura científica, julgava que uma boa idade para o público‑alvo seria os quinze anos. Argumentava na altura que seria essa a idade em que já se dominaria algumas ferramentas científicas essenciais e a partir das quais já seria possível construir algo mais robusto. À medida que os anos foram passando, fui antecipando essa idade e, neste momento, julgo que devemos começar de forma orientada ao três anos de idade. É aí o tempo certo para se dar a revolução! Certo dia convidaram‑me para ir a um jardim de infância falar sobre Astronomia, levei um projector de vídeo, na altura ainda pesavam dez quilos, e mostrei algumas fotografias de nebulosas, maternidades de estrelas, explicando de forma muito simples, para crianças dos três aos seis anos, que as estrelas são como as pessoas, também nascem e crescem.

Após muitos «Ahhhhs» e «Oohhhhhhss» de espanto, seguiu‑se um imenso rol de perguntas e uma delas foi sobre eclipses. Pegando em três meninos mais velhinhos pela mão, dei‑lhes os papéis de Sol, Terra e Lua para, com os seus movimentos relativos, lhes explicar o que provocava o eclipse. Estava eu no processo de montar a mecânica deste modelo simples do mundo quando sinto algo a puxar‑me
as calças: um menino de três anos tinha‑se levantado e chamava‑me para me dizer: «Eu queria ser o Mercúrio!»

Estas próximas páginas, amigo leitor, são para que se sinta a querer ser, de novo, «o Mercúrio».

Alexandre Aibéo

*Proporção em massa.

1 História verídica. Este livro está cheio de notas de rodapé, como terá certamente reparado logo na capa. Serão momentos de descontracção ou notas que prezam o rigor. No fundo, uma surpresa constante!

2 «A pale blue dot», diria Carl Sagan.

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