quarta-feira, 6 de abril de 2016

"E se fosse eu?"

Em finais de Março, um colega de formação e de profissão falou-me de uma "campanha de sensibilização" (detesto esta expressão) para a "questão dos refugiados" (detesto igualmente esta expressão) que começava a ser feita junto da opinião pública e, muito em particular, junto dos nossos alunos.

A campanha, da iniciativa de várias entidades reconhecidas, com abrangência nacional e intitulada "E se fosse eu?", foi lançada no Dia Internacional Contra a Discriminação Racial (ver aqui).

Péssima ocasião, pois a noção de "raça", além ser errada sob o ponto de vista científico, denota a persistência da ideia preconceituosa e simplista de que "nós" (neste caso, os Europeus? Os Portugueses?) não somos feitos da mesma matéria que os (muitos) "outros" (os que fogem da guerra e chegam à Europa? A Portugal?) nem comungamos da mesma condição, a condição humana.

Também não se trata, nem deve tratar, de discriminação. Do que estamos a falar é de algo diferente: do acolhimento que é devido a pessoas que fogem dos múltiplos terrores da guerra. Quem não está nessa circunstância e sabe o que é a civilização percebe que o seu dever moral é receber quem está nessa circunstância. E isto comiseração, paternalismo ou, pior, caridade.

Ora, logo às primeiras horas da manhã de hoje foi realizada em muitas escolas uma "iniciativa" que decorre de um "desafio" dessas tais entidades: cada aluno, colocava-se na "pele de um refugiado" e preparava, com a sua família, uma mochila como se fosse fugir da guerra.

Pergunto-me: como é possível!?

Como é possível pedir-se a alguém para se imaginar num cenário de tanto horror, como é o da guerra? Transpor-se para esse cenário e inteiramente, vivencialmente, se pensar na inqualificável e indizível angústia de proteger os filhos, de fechar ou não a porta da sua casa, de procurar em desvario os objectos que lhe permitem sobreviver ou manter uma ligação a um tempo anterior?

Há coisas que não se conseguem imaginar porque estão além da imaginação; há coisas que não se podem simular porque não são um jogo; há coisas de que não se pode falar porque não há no vocabulário palavras para as dizer; há coisas em que só o silêncio e a acção discreta têm sentido. O sofrimento que a guerra causa é uma delas.

Não, ninguém consegue colocar-se na pele de quem passa por esse sofrimento, ninguém consegue raciocinar na perspectiva "e se fosse eu" porque não se é esse "eu" que deixou para trás uma parte de si. Tentar fazê-lo, por muito profunda e dedicada que seja a abordagem, subestima os sentimentos de quem chega e precisa de quem cá está.

Quando penso neste tipo de "iniciativas", que têm lugar na escola em nome da cidadania mas que, afinal, constituem a sua negação, lembro-me sempre do que escreveu um professor americano, Sam Pickering: [essas iniciativas] "nem chegam sequer a afectá-los [aos alunos] (...) em vez de os tornarmos mais sensíveis, maçamo-los".

6 comentários:

Anónimo disse...

Incrível, incrível, estava a ler o post e pensava como não poderia estar mais de acordo com cada palavra nele constante.

Pegando ainda nas palavras de Sam Pickering, eu diria ainda que se corre o risco de os miúdos entenderem isto como "uma brincadeira sobre refugiados":

- "Então, que fizeram hoje na escola?

- Brincámos aos refugiados! Não foi mau, mas não curti a cena da setora dizer que não adiantava pôr a PS na mochila porque não iria ter acesso a uma TV. Como é que não vou ter acesso a uma TV??!

- Olha, e afinal o que pensas agora dos outros meninos refugiados, daqueles que chegam nos barcos?

- Agora já percebo que eles não pareçam muito contentes porque a brincadeira não é lá muito divertida, mas só não percebo porque é que eles andaram de barco e nós não!"

(Nota: Diálogo fictício)

Dervich

Anónimo disse...

De facto muito parece errado nesta iniciativa. Mas duas questões se colocam:

1 - Se esta não é a forma correcta de sensibilizar para a questão dos refugiados, qual é? (assumo que nenhuma não é opção)

2 - Quais os detalhes da iniciativa e quais foram os resultados? Na teoria todos temos razão mas a realidade frequentemente vem desmentir o que parecia óbvio.

A escolha dos objectos por si só, e sem entrar nas questões mais macabras da guerra, pode ser o suficiente para fazer uma criança ou um adulto tomar consciência de que devemos ajudar estas pessoas.

Anónimo disse...

Outra que passou muito despercebida e quase na mesma altura foi realizarem touradas num escola básica, algures para a zona do ribatejo.
Já nada me surpreende de uma escola pública, só pergunto: o que têm os professores dentro da cabeça? ou em que escola tiram o curso??

Eduardo Martinho disse...

Inteiramente de acordo: http://tempoderecordar-edmartinho.blogspot.pt/2016/04/a-escova-de-dentes.html

Anónimo disse...

O que têm os professores dentro da cabeça? - Essa é fácil, este é um exemplo do resultado da contínua lavagem cerebral a que o corpo docente nacional tem sido submetido na última década. Para que acham que servem os professores?
Infelizmente, tudo o que temia quando abandonei a profissão tem vindo a concretizar-se. A docência foi corrompida no seu âmago e cada vez mais os corrompidos de ontem reproduzem-se nos corrompidos de amanhã, num círculo de relativismo crescente.

Anónimo disse...

"O que têm os professores dentro da cabeça?" Podem ter o gosto pelas touradas, por exemplo.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...