quarta-feira, 20 de novembro de 2013
EINSTEIN, A CIÊNCIA E ARTE
Minha contribuição para uma conferência na Universidade do Algarve sobre as relações entre ciência e arte. Esta e muitas outras (interessantes!) contribuições encontram-se no livro electrónico Arte e Ciências em Diálogo publicado pela Grácio (que se pode adquirir aqui, lá encontra-se o meu texto sobre Einstein devidamente paginado com todas as figuras a cores que aqui se omitem)
Albert Einstein (1879-1955), físico suíço e norte-americano de origem alemã, é considerado não só um dos maiores cientistas de todos os tempos como um dos principais ícones do século XX. O artista pop Andy Warhol fixou-lhe em 1980 o rosto numa das suas famosas litografias (uma outra é de Marilyn Monroe) e a revista Time elegeu-o no ano 2000 para “Pessoa do Século”.
Deixo aqui um esboço da relação de Einstein com a arte, aflorando tanto a relação da ciência que ele criou – focarei principalmente a teoria da relatividade, proposta em duas versões, a restrita em 1905, e a geral, em 1916 – com várias formas de arte do século XX como a relação de um grande criador de ciência com a prática e a apreciação artística. Para um aprofundamento do tema, pode consultar-se [1].
A relação entre ciência e arte é bastante maior do que geralmente se crê [2] nas duas actividades a imaginação humana desempenha uma função nuclear, embora na ciência ela seja bastante menos livre do que na arte por se ter a natureza sempre como referente. Declarou Einstein de um modo muito claro que a imaginação é a fonte perene do conhecimento, estando obviamente a pensar no conhecimento científico:
“A imaginação é mais importante do que o conhecimento. O conhecimento é limitado. a imaginação dá a volta ao mundo.”
Esta resposta foi dada à pergunta “Confia mais na sua imaginação do que no seu conhecimento?”, numa entrevista dada a G. S. Viereck [3].
E, tanto na arte como na ciência, embora tal seja menos evidente na ciência, um ideal estético serve muitas vezes de fio condutor na procura de novos caminhos. Henri Poincaré (1854-1912), o matemático francês bastante mais velho do que Einstein que esteve perto de chegar à teoria da relatividade restrita mais cedo do que ele – sobrando-lhe a imaginação matemática faltou-lhe talvez alguma da intuição física que sobrava a Einstein – escreveu, em 1908, no seu livro Science et méthode (Ciência e Método) [4], portanto já após a teoria de Einstein que revolucionou as nossas concepções do espaço e do tempo, este trecho que expressa bem o primado do belo na ciência:
“O cientista não estuda a natureza porque isso é útil, estuda-a porque tem prazer nisso, e tem prazer nisso, porque ela é bela. Se a natureza não fosse bela, não valeria a pena conhecê-la, e se não valesse a pena conhecê-la, não valeria a pena viver. Claro que não estou a falar da beleza que atinge os sentidos, a beleza das qualidades e das aparências, não que subestime tal beleza, longe disso, mas não tem nada a ver com a ciência, estou a referir-me à beleza mais profunda que vem da ordem harmoniosa das partes, e que uma inteligência pura pode compreender. “
E, mais adiante:
“A beleza intelectual basta a si mesma e é por ela, mais talvez do que pelo bem futuro da humanidade, que o sábio se condena a longos e penosos trabalhos.”
Albert Einstein, aprofundando a mesma linha de paralelismo entre arte e ciência, escreveu em Out of my later years [5]:
“Todas as religiões, artes e ciências são ramos da mesma árvore. todas estas aspirações apontam para o enobrecimento da vida humana, elevando-a acima da mera existência física e conduzindo o indivíduo à liberdade”.
E, noutra altura, em “What I believe” [6], acrescentou:
“A coisa mais maravilhosa que podemos experimentar é o mistério. Ele é a raiz da verdadeira arte e da verdadeira ciência”.
Portanto, para Einstein a ciência e a arte são ambições humanas que radicam no mistério. as duas, cada uma a seu modo, tentam romper as trevas do desconhecido. Vejamos como a teoria da relatividade restrita exerceu influências sobre a arte. Para alguns autores é mais do que uma coincidência curiosa que tenha ocorrido em 1905 uma revolução na ciência com a teoria da relatividade restrita, e passados dois escassos anos, tenha havido uma revolução nas artes plásticas, com a introdução do cubismo pelo artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973), que foi seguido logo por outros como o francês George Braque (1882-1963). O quadro de Picasso Les Demoiselles d’Avignon, de 1907 (Fig. 1), que hoje se pode ver no Museu de arte Moderna de Nova Iorque (MoMa), representa um grupo de prostitutas da rua de Avinhão em Barcelona mostrando cinco figuras humanas distorcidas, com partes dos seus corpos como que vistos de diferentes referenciais. Mas é decerto arriscado afirmar que a ciência de Einstein influenciou a arte de Picasso. talvez Poincaré, que abordou as geometrias quadrimensionais, o tenha feito, por intermédio de um actuário que pertencia ao grupo de amigos de Picasso em Paris.
O historiador de ciência Artur Miller descreve pormenorizadamente o assunto no seu livro de 2002 Einstein, Picasso: Space, Time And The Beauty That Causes Havoc [7]. ao contrário do que dá a entender uma peça de teatro contemporânea (Picasso e Einstein, do norte-americano Steve Martin, n. 1945, que foi representada em tradução portuguesa no teatro da trindade em Lisboa, no ano de 2004 [8]), os dois nunca se encontraram. Mas o certo é que havia na arte de Picasso uma atitude conceptual muito diferente dos pintores impressionistas que o antecederam que representavam a paisagem natural e humana de uma forma bem mais próxima da realidade sensível. Picasso declarou uma vez como que auto-justificando-se:
“Pinto as formas como as penso, e não como as sinto”.
Isto é, Picasso representava o que via não com os olhos da face mas com os olhos da mente. Precisamente como Einstein, embora os olhos da face e da mente estejam em comunicação estreita.
A primeira obra de arte na qual há uma introdução de um elemento einsteiniano, ainda que difícil de reconhecer, é da autoria da artista alemã Hannah Hoech (1889-1978): Corte com a faca da cozinha na primeira época da cultura de barriga de cerveja de Weimar (Fig. 2), de 1919, que hoje se encontra no Staatliche Museum de Berlim, na Alemanha. Trata-se de uma colagem dadaísta em que um dos elementos da composição era a capa de uma revista germânica (Berliner Illustrierte Zeitung, de 14 de Dezembro de 1919), que exibia o rosto de Einstein, pouco depois de ele ficar famoso com a confirmação da deflexão dos raios estelares pelo Sol numa situação de eclipse observada no Príncipe no Brasil. O estilhaçar bem nítido na colagem dadaísta é uma boa metáfora de uma Europa destruída pela Primeira Guerra Mundial, que ia entrar numa fase conturbada antes de uma nova grande guerra.
O dadaísmo viria a dar lugar ao surrealismo, lançado com o manifesto de André Breton (1896-1966) de 1924, um escritor a quem as notícias vindas da ciência não eram de modo nenhum estranhas. no surrealismo o primado era dado às associações psíquicas automáticas, reflectindo o funcionamento da mente. Mais tarde, o espanhol Salvador Dali (1904-1989), o grande mestre espanhol do surrealismo que várias vezes se confessou influenciado pela ciência do seu tempo [9], pintou A persistência da memória (Fig. 3), de 1931, um quadro que também se encontra no MoMa e que mostra relógios em fusão, que pode ser visto como uma metáfora da relatividade do tempo: o tempo corre de maneira diferente para diferentes observadores (o tempo “mole” e “variável” em vez de “rígido” e “uniforme”). interrogado muito mais tarde pelo belga e Prémio Nobel da Química Ilya Prigogine, Dali não reconheceu, porém, a influência einsteiniana: referiu simplesmente a lembrança de um queijo camembert derretido ao Sol. O mesmo artista voltaria ao tema ao pintar em 1954 A desintegração da persistência da memória (Fig. 4), uma clara sequela da obra anterior que pode ser vista no Museu Dali, em St. Petersburg, na Flórida, EUA, na qual o chão está agora dividido em blocos e inundado.
A obra de Einstein haveria também de encontrar ecos no cinema como no filme The Day the Earth Stood Still (1951), uma obra de ficção científica de Robert Wise (1914-2005) que conheceu uma revisitação cinematográfica recente, em que um dos personagens é um cientista que se assemelha bastante a Einstein, e na peça de teatro Os Físicos (1961) [10], do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1991-1990), comédia em que um dos personagens, internado num manicómio, julga que é Einstein. Praticamente não houve nenhuma forma de expressão artística que tenha ignorado Einstein e a relatividade. Por vezes aconteceu mesmo que a sua fórmula mais famosa, E = mc^2, que expressa a equivalência entre massa e energia, foi o mote para várias obras de artes plásticas.
Einstein encontrava o maior prazer na ciência, isto é, no desvendar do mistério do mundo usando a lógica matemática sempre com a observação e a experiência como guias. Mas o seu segundo prazer era a música, gozada tanto de forma passiva como activa. é bem conhecida a sua paixão pelo violino, embora os seus dotes de violinista estivessem muito aquém dos seus dotes como físico teórico. Declarou um dia o cientista na referida entrevista a G. S. Viereck [11]:
“Se eu não fosse músico, seria provavelmente músico. Penso muitas vezes na música. Vivo os meus sonhos diurnos com música. Veja a minha vida com base na música... O maior prazer da vida tiro-o do violino”.
Os seus compositores favoritos eram Bach e Mozart, especialmente este último, mostrando que se pode ser um criador de ciência moderna mantendo gostos artísticos manifestamente clássicos. O mesmo se passou com o seu contemporâneo e amigo Sigmund Freud (1856–1939) (os dois pugnaram pelo pacifismo). Como nos conta Peter Bucky [12], com Allen G. Weakland, The Private Albert Einstein (Kansas City: Andrews and McMeel, 1992, edição original de 1933):
“A música de Mozart é tão pura e bela que a vejo como um reflexo da beleza interna do Universo”.
Dos compositores do século XIX apreciava sobretudo Schubert. E o seu gosto nunca foi além desse século. nunca apreciou a música que foi sua contemporânea. De certeza que nunca teria compreendido a ópera Einstein on the Beach que, inspirado nele, o compositor norte-americano Philip Glass (n. 1937) criou, tendo estreado no ano de 1976.
Tal como Glass muitos outros artistas se inspiraram na obra de Einstein, alguns mesmo em vida do sábio. O arquitecto alemão e judeu Erich Mendelsohn (1887-1953) construiu em 1921 em Potsdam, nos arredores de Berlim um observatório astronómico que ficou conhecido por Torre Einstein (Einsteinturm) (Fig. 5). há nesta obra de arquitectura moderna uma ligação profunda com a arte pois a torre destinava-se mesmo a observações que permitissem confirmar a teoria da relatividade geral de Einstein. Quando Einstein a visitou, inquirido sobre o que achava da obra, respondeu que a palavra mais apropriada para o designar era “orgânico”. Embora sendo uma apreciação sucinta, não estava mal como comentário de um crítico amador a respeito de um edifício extravagante (já houve quem o comparasse a um pénis), filiado na chamada arquitectura expressionista, cujo autor tinha preferido as formas redondas às clássicas ou neo-clássicas construções geométricas.
Outro arquitecto alemão e judeu, Konrad Wachsmann (1901-1980), construiu para o físico uma casa de Verão em Caputh, um pouco a sul de Potsdam, que ele teve de abandonar em 1933 tal como a sua residência principal em Berlim para fugir à perseguição que os nazis moviam na época aos judeus. Einstein haveria de passar o resto dos seus dias numa pequena vivenda em Princeton, enquanto a Europa era varrida pela guerra. a torre Einstein foi, em parte, destruída. Foi em Princeton que Einstein recebeu em 1946 o famoso arquitecto francês de origem suíça Le Corbusier pseudónimo de Charles-Édouard Jeanneret-Gris (1887-1965), que se tinha deslocado aos Estados Unidos para participar no projecto multinacional do edifício das nações Unidas em nova iorque. Le Corbusier estava muito entusiasmado com a definição matemática da harmonia na arte, que encontra expressão na famosa “razão dourada”, a proporção que muitos querem ver em obras de arte como fórmula superlativa de beleza que vão do Parténon de Atenas ao “homem de Vitrúvio” de Leonardo da Vinci. Sobre este assunto ancestral Le Corbusier escreveu o livro Le Modulor [13], saído originalmente em dois tomos em 1948 e 1955 e do qual há uma tradução portuguesa recente. Mas, discutindo a razão dourada com Einstein, este deu-lhe uma resposta lapidar:
“O senhor está à procura de uma maneira de tornar o belo fácil e o feio difícil”.
Trata-se, forçoso é reconhecer, de uma tarefa difícil, se não mesmo impossível. O belo, porque subjectivo, escapará sempre a qualquer definição matemática, ou, em geral, científica, que procura centrar-se em elementos objectivos. aí reside a grande diferença entre arte e ciência
Para distinguir ciência e arte pode-se dizer, embora simplificando, que a ciência procura a verdade enquanto a arte procura a beleza. a verdade parece mais objectivável que a beleza. Mas as coisas não são assim tão simples pois verdade e beleza estão ou pelo menos parecem por vezes estar relacionadas. Um antigo aforismo latino afirma Pulchritudo splendor veritatis, que significa A beleza é o esplendor da verdade. Na mesma linha desse dito, o poeta romântico inglês John Keats (195-1821) escreveu, no final de Ode on a Grecian Urn (1819), estes versos [14]:
“Beauty is truth, truth beauty, - that is all
Ye know on earth, and all ye need to know”.
que se podem traduzir por;:
“A beleza é a verdade, a verdade é a beleza – e isto é tudo
O que sabemos na terra e tudo o que precisamos de saber.”
Em 1954, um ano antes de falecer em Princeton do rompimento de um aneurisma, Albert Einstein confessou, num registo auto-biográfico [15], que também ele emparelhava a verdade e a beleza, acrescentando a bondade a esses dois ideais de vida, para compor um triângulo perfeito:
“Os ideais que guiaram a minha vida, e repetidamente me deram nova coragem para encarar alegremente a vida têm sido: Bondade, Beleza e Verdade.”
Referências:
[1] Peter Galison, Gerald Holton and Silvan Schweber (eds.). Einstein for the 21st Century. His legacy in science, art, and modern culture, Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2008.
[2] C. Fiolhais, Imaginação, ciência e arte, Biblos VI (2.ª série) (2008) pp. 3-16.
[3] G. S. Viereck, “What life means to Einstein”, Saturday Evening Post, 26/October/1929, reimpresso em G. S. Viereck, Glimpses of the Great, new York: Macauley, 1930, p. 447).
[4] Henri Poincaré, Science et méthode, Paris: Flammarion, 1924 (o original é de 1909).
[5] Albert Einstein, Out of my later years, Philosophical Library, new York, 1950.
[6] Albert Einstein, What I believe, in Forum and Century 84 (1930), 193-194 (transcrito em Rowe and Shulman, Einstein on Politics, Princeton: Princeton University Press, 2007, pp. 229-230).
[7] Arthur Miller, Einstein, Picasso: Space, Time And The Beauty That Causes Havoc, New York, Basic Books, 2002.
[8] C. Fiolhais, Curiosidade Apaixonada, Lisboa: Gradiva, 2005.
[9] J. Wagensberg et al., Noves Fronteres de la Ciencia, l’Árt i el Pensament, Barcelona: Generalitat de Catalunya, 2005.
[10] Friedrich Duerrenmatt, A visita da velha senhora e Os físicos, Lisboa: Portugália Editora, 1965.
[11] G. S. Viereck, “What life means to Einstein”, Saturday Evening Post, 26/October/1929, reimpresso em Viereck, Glimpses of the Great, new York: Macauley, 1930, p. 436):
[12] Peter Bucky with allen G. Weakland, The Private Albert Einstein, Kansas City: andrews and McMeel, 1992 (edição original de 1933).
[14] Le Corbusier, O Modulor: Ensaio sobre uma medida harmónica à escala humana aplicável universalmente a arquitectura e à mecânica, Lisboa: Orfeu negro, 2010.
[15] C. Fiolhais, Universo, Computadores e Tudo o Resto, Lisboa: Gradiva, 1994.
[16] Albert Einstein, The World As I See It, publicado originalmente em “Forum and Century,” vol. 84, pp. 193-194; foi o vol. 13 da série Living Philosophies; está incluído em Living Philosophies, pp. 3-7, new York: Simon and Schuster.
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1 comentário:
José Gonçalves
Pequena correcção ao texto "...A primeira obra de arte na qual há uma introdução de um elemento einsteiniano...exibia o rosto de Einstein, pouco depois de ele ficar famoso com a confirmação da deflexão dos raios estelares pelo Sol numa situação de eclipse observada no Príncipe no Brasil."
O "Principe" não é no Brasil! Era o "Principe" de "São Tomé" português até 1975 e independente desde essa data.
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