segunda-feira, 4 de março de 2013

A resposta de Tooley

O filósofo norte-americano Alvin Plantinga defende que a crença na existência de Deus não carece de provas: os seres humanos que não tenham sido corrompidos pelo pecado têm uma consciência direta da existência de Deus, do mesmo modo que temos consciência do que fizemos ontem ou que existimos, sem que precisemos de provas (e em muitos casos sem que sejamos capazes de apresentar provas). À faculdade que nos dá essa consciência direta da existência de Deus dá Plantinga o nome de sensus divinitatis. Trata-se, assim, de uma forma sofisticada de fideísmo, e tem alimentado muitas discussões recentes em filosofia da religião.

Uma das respostas mais simples e interessantes a esta hipótese foi formulada por Michael Tooley, filósofo também norte-americano conhecido sobretudo pelo seu trabalho sobre o aborto e sobre a metafísica do tempo e da causalidade. É essa resposta que apresentamos aqui, retirada do livro Conhecimento de Deus, que escreveu com Alvin Plantinga e que será em breve publicado no Brasil, traduzido por mim.
É razoável acreditar que há de fato um mecanismo confiável de formação de crenças especialmente direcionado para as crenças religiosas?

Há excelentes razões, penso, para sustentar que não. Primeiro, considere-se a ideia de que há um mecanismo geral confiável de formação de crenças religiosas. O que seria de esperar se isso fosse verdadeiro? Para responder a esta pergunta, considere-se casos em que há mecanismos confiáveis de formação de crenças — como é o caso da percepção, memória e raciocínio dedutivo. O que encontramos nesses casos é uma imensa concordância intersubjetiva. Dois observadores perto um do outro e olhando aproximadamente na mesma direção irão oferecer descrições do que veem espantosamente concordantes, e incluindo muitos detalhes. Similarmente, se duas pessoas estiveram na mesma situação perceptiva, e lhes perguntarem o que viram ou ouviram nos últimos segundos, haverá uma vez mais uma correlação muitíssimo forte. Em terceiro lugar, as pessoas a quem são apresentadas as ideias básicas sobre a dedução concordarão tipicamente no que respeita à validade de inferências indutivas simples, e nos casos em que não concordam, a discordância pode quase sempre ser resolvida. Por fim, o nível de concordância no caso das crenças formadas por tais mecanismos não depende de os indivíduos terem sido criados no mesmo gênero de sociedade: desde que estejamos lidando com crenças que não estejam excessivamente impregnadas de teoria, temos um nível de concordância que é mais ou menos completamente independente da cultura em que fomos educados. Além disso, nenhum gênero de doutrinação tem qualquer efeito significativo no que respeita ao grau de concordância relativo a crenças formadas por tais mecanismos.

No caso da crença religiosa, em contraste, as coisas não são de modo algum iguais. Primeiro, há hoje inúmeros sistemas incompatíveis de crenças religiosas que diferentes pessoas aceitam: budismo, hinduísmo, confucionismo, taoísmo, xintoísmo, judaísmo, cristianismo, islamismo e muitas outras. Em segundo lugar, mesmo no seio de religiões específicas, como o cristianismo ou o islamismo, os seus aderentes discordam muitas vezes — por vezes sobre questões que são consideradas essenciais para a salvação. Terceiro, no passado houve muitas religiões, associadas com sociedades primitivas e com outras mais avançadas, como a Grécia e Roma. Quarto, nenhuma das principais religiões hoje existentes remonta ao começo da história humana. Quinto, há uma correlação positiva muito forte entre as crenças religiosas que uma pessoa aceita e as do ambiente familiar em que ela foi criada. Sexto, as discussões entre pessoas com crenças religiosas diferentes só muito raramente resultaram numa conclusão partilhada sobre qual das partes estava a ver mal como as coisas realmente são.

Em todos estes aspectos, as crenças religiosas contrastam fortemente com o que acontece no caso das crenças perceptivas, crenças de memória e crenças sobre relações dedutivas, não sendo de modo algum o que seria de esperar se houvesse uma faculdade interna para chegar a crenças religiosas confiáveis. Estes fatos fornecem, sugiro, excelentes razões para concluir que é muito improvável que os seres humanos tenham uma faculdade que seja especificamente direcionada para a formação de crenças religiosas que sejam provavelmente verdadeiras.

9 comentários:

Unknown disse...

Desidério,

Quando o Alvin Platinga refere "os seres humanos que não tenham sido corrompidos pelo pecado têm uma consciência direta da existência de Deus", a quem é que ele se refere quando diz "os seres humanos que não tenham sido corrompidos pelo pecado"?

Já Michael Tooley parece simplificar extraordinariamente as coisas quando compara as crenças religiosas com as crenças preceptivas. Depois também me parece que, aparentemente, desvaloriza o carácter da partilha, que é algo absolutamente crucial para as crenças religiosas.

Unknown disse...

Ao contrário da percepção de Michael Tooley relativamente às crenças religiosas, para mim, muito mais extraordinário que as diferenças e as distinções entre as diferentes religiões, é exactamente o que existe de comum entre elas.

Cisfranco disse...

O que é um facto é que essa crença na existência de Deus ou deuses sempre existiu. Se é confiável ou não a capacidade humana para atingir esse conhecimento é uma questão e como todas as questões é uma moeda com duas faces: há os que dizem que sim e os que dizem que não. Não admira que assim seja,e assim há-de ser sempre. É uma questão permanente.
Porquê a capacidade humana em teorizar e fazer interrogações sobre este assunto que o acompanha em toda a sua vida, se afinal não existir nada? A Natureza enganou-se produzindo seres com expectativas que não pode cumprir?

Guilherme de Almeida disse...

A diferença não está em crer ou não crer: está no conceito de Deus. Para uns, Deus é e visto como um Velho de barbas brancas,eterno e sentado num trono celestial,sobre as nuvens: eis a perfeita antropomorfização de Deus.
Para outros, o Universo é visto como um imenso "hardware", e chamam Deus ao "software" que governa tudo isso...

O facto é que quase todos os povos imaginam um deus (ou vários deuses, idealizam uma vida pós-morte e criam música. Imaginam deus, para explicar o que não conseguem, supondo-o o tal velho de barbas brancas; outros imaginam-no como uma estrutura lógica, não antropomorfizada, que faz evoluir e funcionar o Universo. Outros ainda, criaram um deus para melhor governar e dominar os povos, pois o crime pode passar despercebido aos juízes humanos, mas nunca deixará de ser testemunhado por alguém acima de nós (nos vários sentidos deste termo), que tudo vê, tudo sabe e está em toda a parte ao mesmo tempo: isso desencoraja a mais leve desobediência e permite um mecanismo eficaz de controlo de massas...

A dor da perda de entes queridos, por poder ser insuportável, leva a imaginar que, embora ausentes entre nós, os nossos entes queridos conitnuam a viver algures num mundo que nos é inatingível: uma eficaz medida de conforto moral.

A vivência pode ser ritmada por música, seja de que tipo for, que dá largas a outros anseios da nossa espécie, marcando encontros, desencontros e cerimónias.

I tema é fascinante, como vemos, e tem muitas componentes. Mas depende fortemente do que cada um considera "o seu" conceito de Deus.

Se fosse no século 17, eu seria queimado por estas afirmações. A Inquisição não me largaria mais e forçar-me ia a abjurar. Agora, abro o meu amplo chapéu de chuva para a "chuva" de críticas que aí virão...
Guilherme de Almeida

Guilherme de Almeida disse...

(Aqui vai a versão depurada de gralhas)
A diferença não está em crer ou não crer: está no conceito de Deus. Para uns, Deus é e visto como um Velho de barbas brancas, eterno e sentado num trono celestial, sobre as nuvens: eis a perfeita antropomorfização de Deus.
Para outros, o Universo é visto como um imenso "hardware", e chamam Deus ao "software" que governa tudo isso...

O facto é que quase todos os povos imaginam um deus (ou vários deuses), idealizam uma vida pós-morte e criam música. Imaginam deus, para explicar o que não conseguem, supondo-o o tal velho de barbas brancas; outros imaginam-no como uma estrutura lógica, não antropomorfizada, que faz evoluir e funcionar o Universo. Outros ainda, criaram (fabricaram) um deus para melhor governar e dominar os povos, pois o crime/"crime" e a dissidência podem passar despercebidos aos juízes humanos, mas nunca deixarão de ser testemunhados por alguém acima de nós (nos vários sentidos deste termo), que tudo vê, tudo sabe e está em toda a parte ao mesmo tempo: isso desencoraja a mais leve desobediência e permite um mecanismo eficaz de controlo de massas...

A dor da perda de entes queridos, por poder ser insuportável, leva a imaginar que, embora ausentes entre nós, os nossos entes queridos continuam a viver algures num mundo que nos é inatingível: uma eficaz medida de conforto moral.

A vivência pode ser ritmada por música, seja de que tipo for, que dá largas a outros anseios da nossa espécie, marcando encontros, desencontros e cerimónias.

I tema é fascinante, como vemos, e tem muitas componentes. Mas depende fortemente do que cada um considera "o seu" conceito de Deus.

Se fosse no século 17, eu seria queimado por estas afirmações. A Inquisição não me largaria mais e forçar-me-ia a abjurar. Agora, abro o meu amplo chapéu de chuva para a "chuva" de críticas que aí virão...
Guilherme de Almeida

José Batista disse...

Não vejo (quaisquer) motivos para críticas, caro Guilherme de Almeida.

O que está em causa é realmente o conceito de Deus de cada um. Ou a ausência de conceito.

O que me parece importante é zelarmos (há quem prefira lutarmos) para que cada um possa ter o seu conceito de Deus (ou não o ter) e manifestá-lo livremente, conforme o seu desejo.

O ser humano tem conseguido proezas notáveis, em matéria de compreensão e conhecimento do universo, mesmo que (algo) restrito ao (seu) meio, mas, em termos "biológicos", é uma espécie entre outras, se fizermos um esforço de humildade...

Donde:
Se subirmos aos píncaros do fanatismo, podermos inchar com a ideia de um Deus que é "nosso" e vela particularmente por cada um de nós, em trabalho e "canseira" só ao alcance de um Ser atento e minucioso (esquadrinhador?...) que, até à data, tem dado resultados frustrantes... O outro extremo é assumirmos aquela posição arrogante e sobranceira de "matarmos" Deus em nós e "idealmente" nos outros, como se isso (algum dia) fosse possível ou desejável.

Deve ser (também) por isso que o mundo é realmente, para a maioria das pessoas, um lugar "difícil" (evito a expressão "vale de lágrimas...)

José Batista disse...

Olha, não podia deixar de ser: antes, no penúltimo parágrafo do que escrevi, logo no seu início, onde está "podermos" devia estar "podemos" e, na última linha do último parágrafo, a expressão "vale de lágrimas" devia fechar (também) com aspas. Enfim, o (meu) costume.

Miguel disse...

É curioso. Ficámos a conhecer os argumentos do Michael Tooley. Porém, aqui do Alvin Plantinga apenas ficou uma afirmação (incompleta já que utiliza termos que ficam por definir, e.g. pecado) e nenhum argumento.

Anónimo disse...

Descobri que tenho 'sensus divinitatis'!! Uau!! Esta noite tive uma «consciência direta da existência de» uma deusa linda, belo sorriso... «Trata-se, assim, de uma forma sofisticada de» patetice!! É que estava a delirar em belos sonhos quentes! Luís.

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