sábado, 2 de fevereiro de 2013

Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria: Falta de medicamentos e médicos treinados contra a intoxicação pelo cianeto

Espuma de poliurateno: fumaça tóxica foi a responsável pelas mortes na boate Kiss, em Santa Maria, afirma a Polícia Civil (Autores Leslie Leitão, André Eler, Marcela Donini e Cecília Ritto- Fonte Veja Notícias em 01/02/2013)


Avião da FAB chegará no sábado(hoje) com o antídoto injetável trazido dos Estados Unidos para tratar os sobreviventes. Médicos de todo o mundo estão sendo consultados sobre a melhor forma de desintoxicar vítimas da substância - a mesmo usada nas câmaras de gás nazistas.

Os médicos encarregados do atendimento das vítimas da boate Kiss estão, neste momento, empenhados em conseguir desintoxicar os pacientes que inalaram a fumaça tóxica produzida durante o incêndio. Exames de sangue feitos em 16 pacientes internados no Hospital de Caridade de Santa Maria e em três pessoas que estão no Hospital Universitário da cidade indicaram a presença de altas concentrações de cianeto, ou gás cianídrico – a substância mortal usada nas câmaras de gás dos campos de concentração nazistas. A maior dificuldade para esse tipo de tratamento é a falta, no Brasil, da hidroxicobalamina, antídoto injetável usado para desintoxicação.

Para conseguir o medicamento, foi preciso trazer um lote da substância dos Estados Unidos. Um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) chegará no sábado(hoje) a Porto Alegre com o primeiro lote 140 kits de doses(Cyanokit), que serão distribuídas às unidades que receberam vítimas do incêndio. Os 140 kits foram doados pelo governo dos Estados Unidos.O lote de Cyanokit, está avaliado em mais de US$ 97 mil.

O tratamento desse tipo de intoxicação é um desafio para as equipes médicas. Diretor clínico do Hospital Universitário de Santa Maria, Arnaldo Teixeira Rodrigues afirma que nem os médicos da unidade estão a par do prazo máximo para garantir os efeitos do medicamento que faz a desintoxicação. Os médicos envolvidos no tratamento estão em contato com especialistas de diversas partes do mundo para definir o protocolo de utilização da substância. Na tarde desta sexta-feira, cerca de 20 médicos brasileiros fizeram uma videoconferência com 15 entidades internacionais para discutir a melhor forma de tratar os pacientes intoxicados.

A morte pelo gás cianídrico é rápida, varia entre alguns segundos e poucos minutos. Ele age no interior das células, inibindo o consumo de oxigênio. Quando a célula entra em contato com o cianeto, morre. No corpo, o gás se liga à mitocôndria e para de produzir energia. “É como se as células estivessem com falta de ar. Existe o oxigênio, mas elas não conseguem usar”, explica o farmacologista Daniel Junqueira Dorta, professor do departamento de química da USP de Ribeirão Preto e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia. O gás cianídrico é um dos mais tóxicos.

Associado a esse gás, os frequentadores da boate Kiss também inalaram monóxido de carbono, comum em casos de combustão de material orgânico. Esse gás se liga à hemoglobina de forma mais poderosa do que o oxigênio. Ou seja, o monóxido de carbono dificulta ou impede a ligação do oxigênio. “Nesses casos, as pessoas ficam com as extremidades arroxeadas por causa da falta de oxigenação”, afirma Dorta. A presença dos dois gases foi uma combinação fatal.

As vítimas do incêndio inalaram doses altíssimas do cianeto e monóxido de carbono, e por isso há risco de morte por asfixia mesmo dias depois do acidente. As proporções de cianeto encontradas no sangue dos pacientes são próximas de 200 mg/dl (miligrama por decilitro) mesmo após 80 horas de inalação. O aceitável, segundo médicos especialistas consultados pelo site de VEJA, é de 10 mg/dl. As vítimas têm, portanto, concentrações 20 vezes acima do suportável por um adulto saudável.

Espuma – O cianeto inalado pelos frequentadores da boate Kiss foi produzido pela queima da espuma sintética de cor escura empregada no isolamento acústico da casa noturna. Há materiais resistentes ao fogo usados nesse tipo de revestimento, mas na boate foi usado material mais barato, que propaga o fogo rapidamente e, em contato com o fogo, exala a fumaça tóxica. A espuma foi encontrada em aproximadamente um terço da boate.

Nesta sexta-feira(ontem), caiu de 127 para 124 o número de vítimas do incêndio na boate Kiss internadas segundo informou o Ministério da Saúde no início da tarde. Os pacientes estão hospitalizados em Santa Maria, Porto Alegre, Caxias do Sul, Canoas e Ijuí. Atualmente, 64 respiram com a ajuda de aparelhos. As unidades continuam aceitando profissionais de saúde e motoristas de ambulância voluntários podem se cadastrar para ajudar no auxílio aos feridos.

O que é o Cyanokit? 
O Cyanokit é um pó para solução para perfusão (administração gota a gota numa veia). Contém a substância activa hidroxocobalamina (vitamina B12a). 

 Para que é utilizado o Cyanokit? 
O Cyanokit é utilizado como antídoto para tratar intoxicação conhecida ou suspeita por cianeto, uma substância química extremamente tóxica.  A intoxicação por cianeto resulta, habitualmente, da exposição a fumo de incêndio, da inspiração ou da ingestão de cianeto, ou do seu contacto com a pele ou com as membranas mucosas (as superfícies úmidas do corpo, tais como o revestimento da boca). O medicamento só pode ser obtido mediante receita médica.  

Como se utiliza o Cyanokit? 
O Cyanokit é administrado como tratamento de emergência, logo que possível após a intoxicação. É administrado como perfusão intravenosa durante 15 minutos. Em adultos, a dose inicial é de 5 g. Em crianças, a dose inicial é de 70 mg por quilograma de peso corporal, até à dose máxima de 5 g. Poderá ser administrada uma segunda dose, dependendo da gravidade da intoxicação e da resposta do doente. A segunda dose é administrada durante um período de entre 15 minutos e duas horas, dependendo da condição do doente. A dose máxima é de 10 g em adultos e de 140 mg/kg em crianças até um máximo de 10 g. O Cyanokit é administrado em conjunto com medidas apropriadas para descontaminar e suportar o doente, incluindo o fornecimento de oxigénio para o doente respirar. 

Comentário do amigo José Batista, de Portugal:

 O cianeto é um inibidor da chamada cadeia respiratória da mitocôndria, a central energética das células, em que se produz (ou melhor se "recarrega") a molécula "adenosina trifosfato" (ATP) que é a "moeda" corrente de energia celular.

Podemos imaginar a cadeia respiratória como uma sequência de transportadores de electrons, electrons que têm como destino um receptor final que é o oxigénio molecular (O2). Ora, um dos passos dessa cadeia fica bloqueado pela ação inibidora irreversível do cianeto, o fluxo de electrons é impedido e o oxigénio não pode cumprir o seu papel que é recebê-lo, combinando-se em  seguida com ions de  hidrogénio para produzir água - a água que libertamos, sob a forma de vapor, através da expiração. Mas, obviamente, a morte muito rápida das células deve-se à impossibilidade de obter ATP indispensável nas reações metabólicas que consomem energia. Por isso, a morte por intoxicação com cianeto é muito rápida.

A intoxicação com monóxido de carbono (CO) tem outra "fisiologia". Esse gás liga-se à molécula transportadora de oxigénio dos pulmões para as células, chamada hemoglobina. Essa molécula (que contém ferro e que, por isso, dá a cor vermelha ao sangue) tem maior afinidade para o CO do que para o O2, pelo que, quando está ocupada com o CO permanece assim e não pode ligar-se ao O2. O facto de a hemoglobina não se ligar tão fortemente ao O2 como ao CO é que lhe permite o seu papel: fixa O2 nos pulmões, onde há muito O2 (elevada pressão parcial de O2) e liberta-o nos tecidos, junto das células, onde há pouco (baixa pressão parcial de O2), uma vez que as células o consomem rápida e continuamente. O CO é um dos gases que se libertam pelo escape dos carros, pelo que já muitas pessoas, intencionalmente ou não, morreram enquanto permaneceram em garagens fechadas com o motor do carro em funcionamento. Quando se usava carvão vegetal em braseiras, para aquecimento, também era frequente morrerem famílias inteiras, porque acendiam a braseira num compartimento e, por causa do frio, fechavam bem as portas e as janelas.


É curioso que, quando se é intoxicado por CO, a hemoglobina está "carregada" com gás, só que não o O2, e por isso, os "detetores" orgânicos da carência de O2 são como que enganados e as pessoas morrem calmamente, por exemplo com sonolência progressiva, sem sentiram qualquer horror pela falta de ar...


Uma maneira de ajudar alguém intoxicado com CO é rapidamente fazê-la respirar uma atmosfera de O2 puro. Assim a pressão parcial de O2 é máxima e pode forçar a desocupação da hemoglobina pelo CO.

3 comentários:

José Batista disse...

Para algum iniciado na biologia que o julgue útil: O cianeto é um inibidor da chamada cadeia respiratória da mitocôndria, a central energética das células, em que se produz (ou melhor se "recarrega") a molécula "adenosina trifosfato" (ATP) que é a "moeda" corrente de energia celular.
Podemos imaginar a cadeia respiratória como uma sequência de transportadores de electrões, electrões que têm como destino um aceitador final que é o oxigénio molecular (O2). Ora, um dos passos dessa cadeia fica bloqueado pela ação inibidora irreversível do cianeto, o fluxo de electrões é impedido e o oxigénio não pode cumprir o seu papel que é recebê-lo, combinando-se de seguida com iões hidrogénio para produzir água - a água que libertamos, sob a forma de vapor, através da expiração. Mas, obviamente, a morte muito rápida das células deve-se à impossibilidade de obter ATP indispensável nas reações metabólicas que consomem energia. Por isso, a morte por intoxicação com cianeto é muito rápida.

A intoxicação com monóxido de carbono (CO) tem outra "fisiologia". Esse gás liga-se à molécula transportadora de oxigénio dos pulmões para as células, chamada hemoglobina. Essa molécula (que contém ferro e que, por isso, dá a cor vermelha ao sangue) tem maior afinidade para o CO do que para o O2, pelo que, quando está ocupada com o CO permanece assim e não pode ligar-se ao O2. O facto de a hemoglobina não se ligar tão fortemente ao O2 como ao CO é que lhe permite o seu papel: fixa O2 nos pulmões, onde há muito O2 (elevada pressão parcial de O2) e liberta-o nos tecidos, junto das células, onde há pouco (baixa pressão parcial de O2), uma vez que as células o consomem rápida e continuamente. O CO é um dos gases que se libertam pelo escape dos carros, pelo que já muitas pessoas, intencionalmente ou não, morreram enquanto permaneceram em garagens fechadas com o motor do carro em funcionamento. Quando se usava carvão vegetal em braseiras, para aquecimento, também era frequente morrerem famílias inteiras, porque acendiam a braseira num compartimento e, por causa do frio, fechavam bem as portas e as janelas.
É curioso que, quando se é intoxicado por CO, a hemoglobina está "carregada" com gás, só que não o O2, e por isso, os "detetores" orgânicos da carência de O2 são como que enganados e as pessoas morrem calmamente, por exemplo com sonolência progressiva, sem sentiram qualquer horror pela falta de ar...
Uma maneira de ajudar alguém intoxicado com CO é rapidamente fazê-la respirar uma atmosfera de O2 puro. Assim a pressão parcial de O2 é máxima e pode forçar a desocupação da hemoglobina pelo CO.

A quem tiver maçado, peço desculpa.

Cisfranco disse...

Pelo contrário, foi óptimo comentário.
Obrigado

Helio Dias disse...

José Batista,otima explicação.Muito importante termos esse conhecimento.Penso que por aqui somente contamos com nossa familia.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...