sábado, 23 de fevereiro de 2013

AROMAS E SABORES DO ALENTEJO

Texto do Professor Galopim de Carvalho que muito agradecemos.
Poejo (Mentha pulegium)
Numa arte de cozinhar que recebeu aromas e sabores trazidos, entre outros, pelos ocupantes romano e visigótico e, depois, pelo invasor muçulmano, a cozinha do Alentejo, a par dos seus cantares, é uma expressão cultural bem conhecida e devidamente apreciada. O povo que resultou desta mistura e que aqui se fixou, descobriu e aperfeiçoou, ao longo de gerações, aromas e sabores que foram transformando o simples acto fisiológico de ingerir alimentos, num outro, marcado pelo prazer, quer o dos sentidos, quer o da convivência. Aliás, comer, do latim comedere, significa tomar os alimentos em companhia, posto que radica no verbo edere que, por si só, significa esse acto de ingestão, antecedido do elemento cum, que alude à ideia de companhia e que é o mesmo prefixo com que se fizeram as palavras convivência e companhia

Perfeito conhecedor deste povo instalado a sul do grande rio ibérico, Alfredo Saramago (2001) lembrou que, desde muito cedo, o alentejano entendeu que comer era, não só, um acto necessário e imperativo de sobrevivência, como também uma forma superior de contentamento e é por isso que, quase sempre, há cante, muitas vezes, a meio e, quase sempre, no fim das suas confraternizações à mesa. 

Numa tradição regional que, do pouco, soube fazer muito e bem, como lembrou Monarca Pinheiro (1999), são muitas as referências aos aromas e aos sabores da cozinha alentejana. E uma delas é a que foi feita por Manuel Fialho (1992), ao dizer que aproveitando ao máximo a riqueza dos seus recursos e sabendo compensar com extraordinária habilidade as suas limitações, o alentejano criou uma cozinha única, sólida, nutritiva e surpreendentemente saborosa, que não é mais, afinal, do que o espelho fiel da sua própria maneira de ser. Não desejando afirmar-se nem melhor nem pior do que a generalidade da rica cozinha tradicional portuguesa é, sem dúvida, substancialmente diferente.

Como qualquer alentejano da minha geração, cresci num tempo em que a confecção dos alimentos tinha por base o lume de lenha, no chão da lareira, ou o de carvão, na fornalha ali instalada. Sem o suporte conserveiro da arca congeladora, sabiamente substituída pela salgadeira, numa tradição milenar, e sem frigorífico, a mãe de família tinha de cozinhar todos os dias, duas vezes ao dia. Foi um tempo em que a cozinha, com a grande chaminé, era casa de entrada, de porta sempre aberta durante o dia, como única fonte de luz, e sala de todos os usos, em que a mesa de comer era a mesma em que eu e os meus irmãos fizemos os trabalhos de casa, a mando do professor.

Dessa cozinha, para além do mobiliário rudimentar, do poial dos cântaros, do poço com água fresca e um tanto salobra, ficaram-me na memória duas oleogravuras, uma do aeroplano Lusitânia, com o Gago Coutinho e o Sacadura Cabral, e outra alusiva à implantação da República. Desse tempo e dessa cozinha recordo os aromas e os sabores da culinária alentejana. A carne de porco, temperada de alho e pimentão, frita em banha, na sertã de barro, as sopas da panela de galinha com linguiça, toucinho e raminhos de hortelã, a açorda de poejos, as sopas de tomate com figos e as de cação envinagradas e a libertar o cheiro dos coentros, as sardinhas de barrica fritas no azeite e as torradas com toucinho cozido ou com azeite, açúcar e canela exalavam cheiros inconfundíveis e são lembranças de paladares inesquecíveis que não posso deixar de associar aos cantares dos homens que, muitas vezes, na taberna da vizinhança, aos fins de tarde de sábado, se abriam em coro polifónico e trocavam boa parte da magra féria por copos de vinho e petiscos para fazer boca, esquecendo aí e assim a “porca da vida”.

O pão que então de comia, por tradição e em quantidade, era de trigo ceifado nos nossos campos e tinha ciscos na base, trazidos do solo do forno de lenha, ciscos que era preciso raspar antes de ir à mesa. Era um pão muito diferente do que hoje se fabrica em fornos eléctricos ou a diesel, em grande parte, com trigo importado, sabe Deus se já geneticamente manipulado. O queijo de ovelha, em especial, o curado, amarelinho e a ressumar olhinhos de gordura, cortado e em lasquinhas, à navalha, era conduto precioso e perfumado desse pão-nosso de todos os dias.

Do Inverno da minha infância e primeira adolescência guardo o cheiro da lareira, quer o do grande lenho de azinho que ardia, lenta e a fumegar, ao centro da chaminé, arrumado à “boneca”, quer o que vinha agarrado às farinheiras, linguiças e chouriços retirados das varas do fumeiro. Recordo o cheiro do café de mistura a exalar na cafeteira de barro e do chiar da brasinha que se metia lá dentro para fazer assentar a borra.

Coincidentes no essencial, todas as referências, e são muitas, à cozinha alentejana totalizam um elogio a uma comunidade muito particular, bem caracterizada, não só pela sua ligação à terra no trabalho e no lazer, mas também pelo valor cultural do seu cante, único na musicografia, e pelo da sua gastronomia. O pão e o vinho, o azeite, o porco e o borrego, as ervas e os cheiros, são as marcas mais significativas de uma mistura prevalecente nesta que é a maior região natural do país, a que Estrabão, o grande geógrafo grego dos finais do século I antes de Cristo, reconheceu como o “paraíso das ervas frescas”.

Hélder Pacheco (1994) denuncia a condição de gente explorada dos camponeses do Alentejo, ao escrever que enganam a magreza do caldo com ouropéis mágicos de ervas, cheiros e misturas que dão sabores disfarceiros das pobrezas e lembra os comeres frugais feitos de coisas simples do dia-a-dia e do que as pessoas tinham à mão.

E porque ervas e cheiros foram bens que a mãe Natureza nunca lhe negou, o alentejano aprendeu a usar produtos simples e pobres na feitura de pratos onde o gosto e o prazer de comer constituem um acto cultural cada vez mais divulgado e reconhecido. Como figura grande na geografia física e humana, o Prof. Orlando Ribeiro, meu mestre, reconhecendo esta procura de prazer, numa terra pobre, escreveu, em 1987: comer foi, acima de tudo, encher a barriga e iludir a sensação de fome e a fome, como todos sabemos, aguça o engenho.

Mercê de uma atitude cultural mais esclarecida e alargada, acrescida de apoios e encorajamentos vários, entre os quais os facultados por autarquias, a cozinha alentejana é cada vez mais conhecida como uma cozinha rica, não só na variedade dos produtos naturais utilizados, como nas maneiras de os confeccionar, sem as incorporações industriais, que marcam os dias de hoje, e de que temos exemplos nos muitíssimos produtos da indústria alimentar, os enlatados, os congelados, os semi-feitos e os take-away, à nossa disposição no mercado. Esta sua riqueza resulta de uma imaginação levada ao extremo, no espírito do velho ditado a necessidade é mestra de engenhos, como bem lembraram Manuel Fialho e Alfredo Saramago (1998).

Num quadro geográfico e num tempo social preocupante, hoje agravado por carências e necessidades suficientemente apontadas, a cozinha alentejana, experiente de um passado de dificuldades, vai continuar a tirar proveito dos produtos alimentares ao seu alcance, onde, para além dos que se podem produzir, há todos os que a terra nos oferece e, entre eles estão as beldroegas, as acelgas e as labaças, os cardos, os espargos e uma variedade de cheiros, tantas vezes usados como disfarces para a falta de condutos (Monarca Pinheiro, 1999), com destaque para dois muito nossos: o poejo e a hortelã-da-ribeira. Como escreveu o nosso vizinho do outro lado da fronteira (Jacinto Garcia, 1999), a cozinha mais admirável é aquela capaz de conseguir um prato suculento e harmonioso utilizando somente um conjunto díspar de humildes alimentos.

Tudo o mais que se lhe possa acrescentar, em particular as carnes e o peixe, farão a diferença entre tempos de abastança e os que se avizinham. A açorda e o gaspacho poderão vir a ter menos azeite, as migas, menos febras e mais toucinho e farinheira, mas os aromas continuarão a ser os mesmos.

A luz da cal em Monsarz
Imagem de uma terra de grandes planuras e lonjuras, queimadas pelo sol de Verão e pelas geadas de Inverno, e de aldeias e montes brilhantes na luz da cal, a gastronomia alentejana tem sido uma nota particularmente resistente ao tempo e às influências que constantemente lhe chegam do exterior, representando um património etnográfico de grande valia.

Com efeito, as confecções culinárias alentejanas, algumas com mais de mil anos, na sua singularidade e intemporalidade, sobreviveram e afirmam-se no presente, sem perda de identidade, sendo hoje um importante recurso em termos de oferta turística. É esta mesma cozinha que começa a ser servida pelos restaurantes não só do Alentejo como por alguns fora dele, em resposta a uma clientela conhecedora, em crescimento, a testemunhar o sucesso reconhecido deste renascer a que felizmente se assiste.
A. Galopim de Carvalho
Bibliografia:

Pacheco, Hélder (1994). no prefácio de O Comer dos Ganhões. Memórias de outros Tempos, de Falcato Alves. Campo das Letras, Porto.
Fialho, Manuel (1992) – Cozinha Regional do Alentejo. Europa-América, Lisboa.
Fialho, Manuel & Saramago, Alfredo (1998) – Cozinha Alentejana. Assírio e Alvim, Lisboa.
Galopim de Carvalho A. M. (2002) – Com Poejos e Outras Ervas, Âncora Editora.
Garcia, L. Jacinto (1999) – Comer como Diós Manda. Ed. Destino, Barcelona.
Pinheiro, Monarca (1999) – Terra de Grandes Barrigas onde só há Gente Gorda. Editora Alentejana, Évora.
Ribeiro, Orlando (1972) – Mediterraneo, Ambiente e Tradizione. Hugo Murcia Ed.
Saramago, Alfredo (2001) – Gastronomia do Alentejo. Concurso de Cozinha Alentejana - as melhores receitas. Ed da C. M. Évora.

4 comentários:

José Batista disse...

Há já uns anos viajava eu demoradamente com os filhos e a mulher por vilas e cidades alentejanas, fazendo percursos então recomendados por uns fascículos muito bem elaborados pelo semanário "Expresso". Numa das localidades fiquei-me algum tempo à conversa com um alentejano sentado à porta, ao lado de um pequeno quintalinho. Falei-lhe dos sabores das ervas "alentejanas" e o bom do homem entusiasmou-me, levantou-se e passámos ao quintal: aqui a hortelã, ali os poejos, etc, e eu a perguntar-lhe se eram fáceis de cultivar e que usos tinham, e por aí fora. Foram muitas as explicações, tantas que ficámos a ouvi-lo pelo gosto de o ouvir, e a aceitar os torrõezinhos com poejo que ajeitou no fundo cortado de uma garrafa de plástico, e mais outros recipientes improvisados com outras ervas enraizadas que, com mão de mestre, aprontou de momento. Acondicionei tudo na mala da carrinha, com mil cuidados, meus e dos meus pequenos "herdeiros". Ainda crescem em vasos ali no quintal, embora muito menos viçosos do que já estiveram. Até para a escola levei amostras, a ver se entusiasmava alguém. E chegámos, cá em casa, a fazer chá de poejo, que era tão bom como qualquer outro chá. Mas, apesar desse esforço, o certo é que essas ervas não passaram a condimentar as refeições da nossa casa nem foram adoptadas por familiares ou amigos.
Cada terra com seu uso, dizem-me. Com o falso argumento de que aquelas ervas são boas mas é na comida alentejana. Comida com que se lamberam e se alambanzaram sempre que por lá andámos. E eu abstenho-me de qualquer crítica, dada a minha vergonhosa incompetência nas artes da confecção até dos pratos mais "pobrinhos".
Não fora isso...

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Ao professor A. Galopim de Carvalho pelo entusiasmo do Alentejo.





Repasto



Oh'grata natureza, ar gentil e acto,
partilhai vossa promessa pastoril!
D'este varonil recato, acato,
do renascer, per teu canto juvenil.

Ouro fino, saber-te da vez peregrino,
num florescer estações e, que firmam
qual revestido manto é jardim e hino,
onde sementes feito pinhas, germinam.

Houve do coro a gutural pátria amada,
erguia a terra o umbral ao doce aceno,
és templo, por gestar em teu pleno,

és fruto de virtude que ano à ano;
o alteneiro bem-querer alentejano,
verdejante de saudade, iluminada.

Carlos Ricardo Soares disse...

Magnífico texto. Sou um apaixonado pelo Alentejo. A vida tem coisas boas, que nos fazem sonhar com coisas excelentes. Mas quando percebemos que as excelentes podem ser inimigas das boas, estas é que contam. As melhores nem são sofisticadas. Ainda bem!

Anónimo disse...

Os meus avós falam sempre com imensa saudade desses aromas alentejanos acompanhados com cantares. Hoje em dia devido a americanices e tretas como eles dizem, anda quase tudo falsificado e está na altura de fazermos algo por nós já que não vão ser os outros de fora que o vão fazer por nós, trazer para a mesa e para o quotidiano os bons costumes ancestrais que nos ligavam à natureza e o ser humano era um ser livre.
Como dizem os meus avós, basta de americanices e essas tretas.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...