quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O ÓDIO DE PERDIÇÃO

Em desejada achega ao desencanto do derradeiro comentário da leitora Nan (ao meu post “Resposta a um comentário ao post ‘Principais factores do Desemprego dos Professores’”, publicado no passado dia 20 do corrente), se transcreve este meu post aqui publicado o ano passado (09/08/2011). Mais se pretende que faça prova dos tratos de polé que os nossos grandes escritores têm sofrido por omissão ou em sinopses (de duvidosa qualidade e escassa páginas) das suas obras nos programas do ensino secundário. Assim:

Calar-se equivale a deixar crer que não se julga e que nada se deseja; e, em certos casos, isso equivale, com efeito, a não desejar coisa alguma” (Sophia de Mello Breyner, 1919-2004).

Depois de ter visto um urso (não o “urso” havido como o melhor aluno da turma) a andar de bicicleta no circo, pensava eu que nada me poderia mais surpreender. Puro engano!

Assim, na secção de Cultura do Público (05/08/2011), com o título à largura de toda a página, Os franceses estão a redescobrir Camilo, deparei-me com esta notícia: “O filme 'Mistérios de Lisboa já fez mais de 100 mil espectadores em França”. Facto este que, mesmo que mantidas as devidas proporções populacionais entre o país das Luzes e a pátria de Camões, não me faria estranhar muito que a preguiça dos espectadores portugueses preferisse (re)ver a adaptação cinematográfica de O Amor de Perdição, de António Lopes Ribeiro (1943), a perder tempo e pachorra a ler a respectiva obra literária que foi apreciada pela juventude do meu tempo em herança ancestral.

Por estarmos em presença de um interculturalismo que o galo-gaulês representa com panache, bem se compreende que a obra Mistérios de Lisboa (traduzida para Mystéres de Lisbonne) esteja no “top”, ainda segundo o Público, “dos livros mais vendidos na Fnac Forum de Paris, a maior das lojas Fnac do país”.

Esse interesse pelo escritor de São Miguel de Seide passa, outrossim, ainda segundo este jornal, pela edição francesa do livro Amor de Perdição (Amour de perdition), editado em França há uma dezena de anos e difícil de encontrar nas livrarias”. Uma vez mais se cumpre o aforismo de que “santos ao pé da porta não fazem milagres”. Mas daí a cometer o pecado de expurgar a prosa camiliana, para Maria Amélia Vaz de Carvalho “personificação do génio português”, do altar da bibliografia dos programas escolares do ensino secundário torna-se em verdadeiro roubo à cultura nacional!

Escreveu Eça, o imortal romancista português: “Portugal é um país traduzido do francês em calão”. Em sua imitação grotesca dos hábitos parisienses e seus costumes sociais, mas não da leitura da sua cultura literária imortalizada por nomes, que me ocorrem à memória, como Honoré Balzac, Victor Hugo e Marcel Proust. E dá ele um exemplo dessa tradução”: “Mas é sobretudo na minha especialidade, na literatura, que esta cópia do francês é desoladora. Como aqueles patos que Zola tão comicamente descreve na ‘Terre’, aí vamos todos, em fila, lentos e vagos, através do caminho da poesia e da prosa, atrás do ganso francês”.

Camilo, parafraseando Camões, “erros meus, má fortuna, amor ardente”, sofreu do pecado, entre outros, de se deixar enredar pelas teias da paixão escandalosa por Ana Plácido e da biliosa polémica – de que é exemplo este ataque dirigido por si a Mariano Pina: “Cada vez mais charro. É perfeitamente um sapateiro de máscara a dizer pilhérias que tresandam ao cerol” –, sendo que a sua valiosa bibliografia de romancista talvez disso tenha sido vítima. Tomando de empréstimo Antero, eu adaptaria a esta monstruosidade cultural, perpetrada contra um dos melhores mestres da Língua Portuguesa, o seguinte excerto: “Isso assim pode ser que seja útil, fácil, vantajoso: pode ser que assim se conquiste a opinião das maiorias boçais, que dão a fama, ou o favor das minorias inteligentes, que dão alguma coisa melhor do que a fama, que dão a importância, o interesse e o poder... Pode ser que seja hábil isto e até profundo – mas não é nem digno nem verdadeiro.”

Aliás, sempre que falamos de Camilo não podemos divorciá-lo do seu papel de um dos melhores mestres da Língua Pátria e, muito menos ainda, de “o ódio de perdição” que os responsáveis da 5 de Outubro lhe dispensaram por omissão, ou lhe deram simples cobertura, nos programas de Português do ensino secundário. A Língua materna é a argamassa da nossa forma de bem nos expressarmos e que tanto é útil aos cientistas, como aos apresentadores de televisão e ao próprio homem comum.Um cientista que diga “supônhamos”, um professor que num papel escreva Senhor Presidente do “Concelho” Directivo, um aluno que [na ausência da muleta do corrector ortográfico dos computadores] em cada três palavras dê um erro ortográfico, o homem comum que dê pontapés na gramática com a habilidade de um Cristiano Ronaldo a chutar à baliza, tornam-se mais notados no seu dia-a-dia do que um ilustre médico que não saiba extrair uma simples raiz quadrada, um professor de Português que não saiba somar fracções ou um aluno que “não entre” na Matemática. Ou seja, o ignorante das Ciências defende-se melhor do que o ignorante das Letras. Mas cuidado! Não se pense com isto que estou a fazer o elogio (ou apenas a descriminar, com “e” ) qualquer destas formas de ignorância. Ambas são reprováveis.

Mas é bom que se retenha que esta irresponsabilidade do Ministério da Educação do governo socialista se podia ter tornado numa, ainda que pálida, centelha do enredo do romance de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, em que os livros eram incendiados por bombeiros de um regime totalitário para não distraírem as pessoas tornando-as pouco produtivas. Não estou, de forma alguma, a querer ver na proscrição das obras de Camilo um sistema educativo tutelado por um regime totalitário. Apenas a pretender dizer que a ignorância oficial e oficializada é, também ela, uma ditadura férrea e horrenda por ter roubado ao aluno português o prazer cultural da leitura dos livros de Camilo e podendo, como tal e a título de mero exemplo epidémico, dificultar ao aluno espanhol a leitura de Cervantes, sonegar ao aluno francês o deleite da visitação ao Museu de Louvre e ao aluno alemão subtrair a audição da Orquestra Sinfónica de Berlim.

Criando-se, assim, uma espécie de cultura virada de costas para as belas letras, para a arte pictórica e para a música de câmara. Isto é, uma cultura em que as coisas do espírito cedem lugar aos bens materiais. E que, em degradação de costumes, se vai impondo cada vez mais neste mundo de Cristo.

2 comentários:

Nan disse...

Tenho aqui ao lado o «esqueleto» do programa do 10º ano de Português - tenho estado a preparar o próximo ano lectivo - e é um mimo! Abre com os «textos do domínio transaccional» : regulamento, declaração, requerimento, contrato, patati-patatá. Segue galhardamente para os «textos dos media» (que as crianças andam a estudar desde o 7º ano) e lá vai a lista toda que os moços já deitam pelos olhos: notícia, reportagem, entrevista, crítica e fecha com a crónica. Isto daria uma óptima passagem para o conto, mas não, dos «media» salta-se para o «texto autobiográfico e intimista»,a saber, autobiografia, diário, memórias, carta e auto retrato.
Já o programa vai a meio e literatura, clássicos, viste-los!
É nesta altura que entramos em Camões (lírico) caído do céu por não ter unhas. Lírica trovadoresca? Nickles! Cancioneiro Geral? Népia! Fernão Lopes? Credo, capaz de traumatizar as crianças! De Camões, saltamos acrobaticamente para os poetas do século XX. Barroco, Pré-Romântico. Romântico, Realismo, Naturalismo, nada, não fosse dar-se o caso de os jovens chegarem a perceber alguma coisa. Encerramos com o conto do século XX.
O ódio de perdição não é só a Camilo, é mesmo à Literatura...

Rui Baptista disse...

Prezada Nan: Obrigado pelo seu valioso, bem estruturado, devidamente documentado comentário. Espero, e desejo sinceramente, que este seu testemunho chegue a quem de direito e com o dever de ver e "remendar" o que se passa no ensino do Português, em ódio de perdição, como escreve e critica, a páginas das obras dos nossos melhores literatos.

Serviu o seu comentário de lenitivo para a desilusão que senti por a transcrição de um post meu poder cair no vazio do desinteresse de todos aqueles que têm por obrigação defender o nosso património cultural.Não caíui, e estou-lhe grato por iso. Bem haja!

Cumprimentos gratos e cordiais.

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