quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Da maldade de cada dia nos livrai hoje: A propósito de uma ilustração

O post A normalização da maldade, que Helena Damião publicou recentemente, para além de interessante a vários níveis, coloca-nos o problema de interpretação da capa (atelier F.B.A.) do livro de Matos et al. A maldade humana: fatalidade ou educação? Coimbra: Almedina, 2008.

É uma gravura muito forte, mesmo impressionante. A Helena vê lá um monstro que vomita outro monstro que vomita outro monstro e por aí fora até ao infinito das vomitações. As situações monstruosas têm tendência a reproduzir-se criando um número infinito de monstruosidades. As guerras e suas imensas crueldades e ignomínias em cadeia são um terrível e vulgar exemplo.

Mas a minha impressão - lembro-me bem que a impressão que formei quando pela primeira vez a vi, há já alguns anos - é, pelo contrário, a de um monstro que devora outro monstro, que devora outro monstro, seguindo a ideia de que aparecerá sempre um monstro maior a devorar o anterior e aumentando a sua monstruosidade. Ou seja, uma das interpretações capta uma ação com sentido de movimento, vendo na imagem uma série das vomitações, a outra vai no sentido inverso e vê nela uma sucessão de devorações.

Uma, é mais sensível à exteriorização e divulgação do mal, à sua generalização e banalização, e a outra à sua incessante capacidade de interiorização, ou seja, ao seu potencial de requinte na malvadez, na intensidade e na perversidade. Uma, mostra como o mal se pode espalhar cada vez mais, se as condições forem favoráveis, criando vomitados uns após outros e enchendo tudo de podridão, acabando por não haver um sítio limpo onde pôr os pés. A outra indica-nos que a maldade se alimenta a si mesma com doses sucessivas e cada vez maiores, que o seu veneno é cada vez mais forte e mortífero. Uma, mostra como as maldades se podem transformar em correntes, em “normais” e, no limite, praticáveis por todos. É uma questão de as aceitar e repetir, que elas se multiplicarão por sua vez até serem vulgares e ninguém reparar no mal que contêm. A outra, diz-nos que as monstruosidades menores, se alimentam de si mesmas, que essa devoração as vai acrescentando, adensando num ponto cada vez mais profundo, mais impenetrável e negro até ser de todo invisível e se transformar numa “natureza”avassaladora.

A grande força da imagem está não só no que imediatamente revela mas também no que logo instantaneamente sugere: uma sequência ininterrupta e multiplicadora. E o mais interessante é que o efeito difusor, que é aflitivo, mesmo sufocante, tanto se sente num sentido como no outro.

A imagem, que não é, em si mesma, ambígua nem reversível, transforma-se em reversível em termos psicoafetivos e morais. Ou seja, a reversibilidade surge não propriamente pela imagem mas pelas sugestões que provoca. De facto, dois processos inversos – comer/vomitar; vomitar/comer) têm, no limite, efeitos psicológicos e morais idênticos: a invisibilidade do mal à medida que o mal se acrescente, ou por generalização e banalização ou por interiorização e convicção.

E, portanto, a dificuldade cada vez maior de lhe fazer frente e de o vencer; logo, a hipótese, sempre à espreita, de o mal se tornar dominante. Em certas épocas e lugares ele transformou-se em rei absoluto; temos visto que é isso é até muito fácil, a imagem dá-nos bem a sugestão dessa facilidade vertiginosa, no sugestivo vórtice que induz tanto da sofreguidão como do vómito.

Todos sabemos bem que há dois caminhos para a maldade: o da sua proliferação e banalização, a partir da generalização das pequenas faltas que, tendo embora tendência para crescer, vão deixando de ser visíveis e sentidas como tal; e no sentido inverso, o do adensamento, da concentração e ensimesmamento até perderem de todo a capacidade de serem reconhecidas pelo próprio que as vive e vai alimentando. E, assim, a maldade assumida e interiorizada destrói a consciência disso, acaba por se viciar no mal e transformá-lo numa natureza.

O significado é pois duplo: o mal tem a capacidade de se espalhar, exteriorizar e difundir, e de se interiorizar, concentrar e enquistar. A história recente está cheia de casos. Não só os casos da militar americana, que correu mundo a puxar um homem nu e de joelhos, pela trela, e agora não percebe bem como aquilo foi possível, mas os casos mais sistemáticos, “científicos” e cheios de “missão histórica”, e que se transformaram em monstruosidades inimagináveis, como os nazis, os stalinistas e os kmeres vermelhos, e tudo isso já nos nossos dias.

Ou mais corrente ainda, desde as inúmeras situações de crueldade e violência gratuita, de que os filmes e séries televisivas nos inundam constantemente, banalizando as situações mais brutais e cruéis, embotando a nossa sensibilidade e humanidade, até à ganância mais criminosa de muitos grandes financeiros, que puseram o mundo na crise em que está e não revelam nenhum remorso pelos imenso sofrimentos que provocaram. A incapacidade de arrepiar caminho, uns e outros, mostra bem como o veneno matou de todo a consciência do mal que provocam.

Ora, isto é, obviamente, uma questão educativa, no sentido mais geral da palavra. Mas a interpretação sociológica que tudo reduz à dimensão educativa esquece a carga genética e social que muitas pessoas transportam consigo. Mas isto leva-nos de novo ao problema que o post de Helena levantou, e a ciência não consegue resolver este problema: a maldade é um desvio da natureza, que a educação pode reduzir ou até erradicar, ou é uma fatalidade que, quando muito, consegue ir controlando?

Leiam-se, a propósito, para lá do livro acima referido, dois outros igualmente excelentes.

Um de Susan Neiman, O mal no pensamento moderno – uma história alternativa da filosofia (Lisboa, Gradiva, 2005) sobre o modo como se foi o mal libertando da tutela teológica até aos nossos dias, e tudo o que isso implicou, continua a implicar, e que desafios imensos nos coloca a todos.

O outro, de ficção, de Saltykov Chtchedrine, A Família Golovlev (Porto, Livraria Civilização, 1975) ou, numa versão mais moderna, Saltikov Shchedrin, A Família Golovliov (Lisboa, Relógio D’Água, 2010), para se saber, de facto, o que é a hipocrisia, de que tanto se fala por tudo e por nada. E como os interesses e a ganância se podem interiorizar de tal modo transformando-se em maldade pura e imoralidade repelente, sempre mediante palavras e rostos de bondade e de altruísmo.

João Boavida

8 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Sobre a crueldade e a maldade li, em "O sonho do Celta" de Vargas Llosa, o seguinte:

..."faziam aquilo (...) por diversão. Gostavam. Fazer sofrer, rivalizar em crueldades, era um vício que tinham contraído de tanto praticar as flagelações, as pancadas, as torturas. Muitas vezes, quando estavam bêbados, procuravam pretextos para aqueles jogos de sangue." (pág. 153)

e, mais adiante, das falas entre duas personagens:

- Trazemos a maldade na alma, meu amigo (...). Não nos libertaremos dela assim tão facilmente. Nos países europeus e no meu [EUA] está mais camuflada, só vem à luz do dia quando há uma guerra, uma revolução, um motim. Precisa de pretextos para se tornar pública e coletiva. Na Amazónia, pelo contrário, pode mostrar-se de cara destapada e perpetrar as piores monstruosidades [neste caso, as cometidas sobre os índios pelos exploradores de borracha] sem as justificações do patriotismo ou da religião. Só a ganância pura e dura. A maldade que nos empeçonha está em toda a parte onde há seres humanos, com raízes bem profundas nos nossos corações." [pág. 289].

A meu ver, é realmente assim. Claro que a educação e a cultura devem trabalhar em prol do bem, da bondade e da beleza (também da alma). Mas há pessoas ignorantes e boas, ignorantes e más, educadas e boas, educadas e más, cultas e boas, cultas e más, em todas as variantes possíveis. Não suponho que haja genes do mal como alguns suposeram que houvesse um "cromossoma assassino". Mas há genes, tão só. E há a interação entre eles e entre eles e o meio ambiental e cultural. Ora, como cada ser humano é uma combinação única e irrepetível de genes, até por essa razão nunca poderemos prever o que cada indivíduo será ao longo da sua vida.
E por isso a educação tem que ser cuidadosa e respeitadora, mas diretiva e vigilante. Não há "bons selvagens" como não haverá nunca "o homem novo". E cada um de nós, para além da sua consciência, no caso de a ter, tem também que responder permanentemente perante os próximos e a sociedade.
Creio que só assim nos ajudaremos e obrigaremos mutuamente a ser melhores.
Não há bondade só porque sim.
É o que penso.

José Batista da Ascenção disse...

Oh, não, "suposeram", não: supuseram. Mil perdões.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor José Baptista da Ascenção;

O Professor Bento de Jesus Caraça explicitava que um homem culto pode não ser um homem sábio e um homem sábio pode não ser um homem culto.

E se nós atendermos ao que ele considerava ser o homem culto, eu penso que o Senhor Professor José Baptista da Ascenção comete um erro ao dizer ser possível a existência de pessoas cultas e más.

«O que é o homem culto? É aquele que:

1.º Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;

2.º Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;

3.º Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.

Ser-se culto não implica ser-se sábio; há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios; mas o que o ser culto implica, é um certo grau de saber, aquele que precisamente que fornece uma base mínima para a satisfação das três condições enunciadas.»

Professor José Baptista da Ascenção diga-me lá onde é que é possível encontrar uma pessoa culta e má? Em lado nenhum, acho eu, e porque escreveu o Senhor isso, por desconhecimento do que deve ser um homem culto, ou por não concordar.

Cordialmente,

João Boavida disse...

Meu caro José Batista da Ascenção, obrigado pelo seu comentário, inteligente e equilibrado. A passagem de Vargas Llosa mostra o que já sabemos, mas nem sempre lembramos:aquilo que se chama natureza humana não é necessariamente boa nem predominantemente humana. A história está cheia das mais variadas formas de crueldade, e por certo que há muita gente que obtém prazer em fazer sofrer os outros. Aliás a Psicologia, a Psiquiatria e sobretudo a Criminologia têm um enorme catálogo de todas essas desgraças humanas.
Mas também é verdade que o género humano já chegou ao ponto de valorizar suficientemente um vasto conjunto de ações qualificadas e sentidas como boas, e que isso é o resultado de uma via-sacra de sofrimento e de aprendizagem, enfim de humanização. A convivência, a harmonia, a tolerância, a honestidade, o respeito pelos outros tudo isso se tem aprendido, com muita dificuldade e muitos passos atrás, mas sempre no sentido de tornar a vida dos homens menos má, mais harmoniosa, cooperante e feliz. E isto tem sido um caminho de milénios de pedras.É uma luta terrível, de resultados precários, sempre pronta a descambar na barbárie, mas vai-se conseguindo, tem-se conseguido. Não há vitórias finais, como diz e muito bem, nem definitivas, haverá, quando muito, vitórias parciais e transitórias e, não esquecer, sempre ameaçadas. Mas a felicidade da maioria e a própria vida humana dependem dessas pequenas vitórias, desses pequenos passos. A educação, é pois, o grande antídoto para esses monstros negros que nos habitam e que em qualquer altura, desde que as condições sejam favoráveis, aparecem à luz do dia e tentam destruir o que os outros, em esforço e moderação, vão conseguindo.

José Batista da Ascenção disse...

Senhor Engenheiro Ildefonso Dias

O senhor escreve "se nós atendermos ao que ele considerava ser o homem culto".
Acontece que as condições que o Professor Bento de Jesus Caraça estabelece para definir um homem culto são as condições que ele, pessoalmente, logo subjetivamente, estipula como tal. Com todo o direito, aliás.

Mas igual direito me assiste, como a qualquer mortal, de considerar a cultura como algo menos restrito, como é o caso.
Por exemplo, foi Bento de Jesus Caraça, ou é (ou foi) alguém no mundo, perfeitamente consciente da sua posição no cosmos?
Dúvida minha.

Obrigado pelo seu comentário à minha opinião.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor José Baptista da Ascenção;

O Senhor pode definir o conceito de homem culto da forma que entender, pode dizer que há pessoas cultas e boas, pessoas cultas e más, e também, e até, pessoas cultas nem más nem boas. Pode assim deformar o conceito de homem culto da maneira que lhe for mais conveniente, portanto ao seu belo prazer, diga-se, de forma menos restritiva, subjetiva quanto baste, como o Senhor quiser.

Já não pode é, - porque não consegue - apagar o que a realidade nos mostra, e que é um dado objetivo “A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade.”[BJC].

Quanto ao que o Senhor escreve “Por exemplo, foi Bento de Jesus Caraça, ou é (ou foi) alguém no mundo, perfeitamente consciente da sua posição no cosmos? Dúvida minha.” confesso que eu estou perplexo com o que leio, e pergunto, então o Senhor Professor José Baptista da Ascenção é agora Professor de Religião e Moral!!! Não, não é; o que nós leitores do DRN sabemos é que o Senhor Professor Professor José Baptista da Ascenção é precisamente, e pasmemo-nos por isso, da área das Ciências - Biologia e Geologia (desculpe-me a forma, se parece graçola, mas não é, tal resulta da estranheza da sua dúvida, e não a pretendo fazer num assunto tão sério).

Mas no seu comentário sobressai algo muito grave, acima de tudo sobressai o facto, incompreensível que é, na formação dos Professores, pode não haver um conhecimento mínimo sobre a história do Ensino em Portugal, (não sei como é atualmente, se existe alguma disciplina sobre a história do Ensino em Portugal).

A única forma que tenho de interpretar o que escreveu, é esta, a de um profundo desconhecimento da história do Ensino em Portugal e, necessariamente, de uma das figuras mais proeminentes do ensino, no sec. XX em Portugal, que foi o Professor Bento de Jesus Caraça.

Repare só nas palavras que lhe deixou a outra grande figura do nosso Ensino, o Professor José Sebastião e Silva.

“Pela primeira vez, a matemática – apresentada por alguém que vivia a sua profissão com alma de apóstolo e de artista – surgia aos meus olhos como edifício inteiramente racional, ao mesmo tempo que harmonioso e cristalino”

“ Criou efetivamente, um estilo de ensino da Matemática de que eu próprio sou beneficiário”

Para finalizar, sugiro-lhe o seguinte: Que o Senhor Professor José Baptista da Ascenção deixe aqui no DRN, e sob a forma de um post, um texto, em que expresse a sua opinião, sobre a importância de um Professor que viva a sua profissão com alma de apóstolo e de artista.

Cordialmente,

José Batista da Ascenção disse...

Meu estimado Professor João Boavida

Comoveu-me o seu comentário. E revivi o agrado com que sempre assisti às suas aulas, a que nunca faltei (eu como outros, na realidade éramos um grupinho...), que é o mesmo com que leio os seus textos. A serenidade, a suavidade, a elegância, o bom senso, a abrangência, a profundidade, o equilíbrio, a clareza e a honestidade do que diz ou escreve sempre me tocaram muito. E ficaram-me como objetivos a alcançar... Devo-lhe isso. Apesar da minha deceção com o que se passa no ensino, e contra o que me insurjo sobremaneira, procuro em pessoas assim o reforço da esperança que não pode morrer em nós. Devia ter feito aqui esta declaração? Olhe, senti que a queria fazer e fiz. E gostava que não me respondesse, para que a alma, o peito e os olhos não desobedeçam à minha vontade.
Muitíssimo bem haja.

Zé Batista

José Batista da Ascenção disse...

Senhor Engenheiro Ildefonso Dias

A falar nos desentendemos.

Quantas maneiras de olhar a (ir)realidade!

Bem haja pela divergência de opinião.

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