sexta-feira, 29 de junho de 2012
Da tentativa de «queima» dos Lusíadas nos programas escolares à destruição dos Budas no Afeganistão
Carta de Guilherme Valente enviada ao "Expresso":
1. Que espírito crítico pode emergir na ignorância ou ser alimentado por ela?
A cultura é condição da consciência crítica. A memória é inerente ao acto de pensar. Como é possível o espírito crítico sem se saber e reter na memória nada de relevante?
2. Quanto ao logro do «ensinar apenas para os exames» disseram tudo dois prestigiados professores : António Mouzinho, no blogue De Rerum Natura , e Paulo Guinote, no Expresso (23/6/12).
3. Se me pedirem para destacar o traço matricial da ideologia imposta à escola durante todos estes anos, direi sem hesitar: o ódio à cultura e ao conhecimento, referidos como «burgueses» e instrumentos de discriminação e reprodução social.
Consideremos um exemplo, o mais longínquo para um ocidental: A Apologia de Sócrates (o grego...). «Cultura burguesa»? Ou património humano inestimável, de absoluta actualidade, que importa transmitir e discutir na escola? (Educação cívica na escola? Não se encontrará melhor para o efeito).
4. Na verdade, a crítica (que só não digo tão estúpida porque é capciosa) à memorização (de referências e instrumentos intelectuais essenciais, é isso que está em causa, embora o disfarcem), o empenho em a eliminar na escola, realizam o objectivo ideológico de desvalorizar, de apagar, a cultura e o conhecimento que contam. O que não querem é que se ensine e aprenda o que deve ser ensinado e aprendido. E a atrofia da memória pessoal é simultaneamente o apagamento da memória histórica, condição da civilização, do progresso da humanidade. (A medicina recomenda o exercício da memória, para manter o pensar activo, retardar o envelhecimento, evitar ou adiar a alzheimer.)
5. A tentativa de erradicação dos clássicos - até onde teriam ido se não tivessem sido travados? -- e a desvalorização dos textos literários na disciplina de Português (que, pelo contrário devem ser criteriosamente seleccionados e reunidos em antologias para cada ano) nos programas escolares e a sua substituição por textos indigentes (a que chamaram «pragmáticos») supostamente para serem acessíveis a todos, que, por exemplo, foram perpetrando, promovem o medíocre, nivelam por baixo, impedem o acesso de todos ao melhor do património imaterial, decapitam o País de inteligência e de saber.
Embora o contexto seja diferente, ideologia imposta à escola, pela sua natureza, evoca outros exemplos mais extremos de movimentos anti-cultura de que a História está cheia, designadamente a Revolução Cultural na China e manifestações do fundamentalismo taliban. Mesmo que muitos dos cúmplices nessa desvalorização da inteligência e da sensibilidade na escola possam disso não ter consciência.
6. George Steiner refere uma vantagem do poema relativamente à prosa: podemos transportá-lo dentro de nós, por ser memorizável. E Epitecto, há quase dois mil anos, disse que só os homens cultos são livres.
Por o seu tema ser, afinal, o que está em causa, cito de cor dois fragmentos de um poema de Éluard que animou os meus quinze anos e me inspirou para sempre: «Sur toutes les pages lues / Sur toutes les pages blanches / Pierre sang papier ou cendre / J´ écris ton non (...) Et par le pouvoir d´un mot / Je recommence ma vie / Je suis né pour te connaître / Pour te nommer / Liberté».
Guilherme Valente
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7 comentários:
A leitura deste texto causa-me revolta! Por concordar em absoluto, evidentemente!
O processo tende a ser modernizado de acordo com a lógica informática: memória pesada? Apaguemos! Que não se corra o risco de a encher…, e se transborda?
Desinfectemo-nos com lavagens cerebrais! Que não se acumule o conhecimento, que se modere a cultura! Viva a Contenção!
Numa época de avatares corre-se o risco do esquecimento do próprio nome, logo, não se estranha que nos esqueçamos até de quem somos.
A bem da verdade há uma poeira alzheimica que cobre uma faixa cada maior de pessoas, jovens, o que consubstancia uma certa ironia se pensarmos na idade média dos alvos da alzheimer. Mais, parece até que a procuramos e que a promovemos com o acto de despromoção da memória.
Tal e qual.
Obrigado.
Está errado. O ódio à cultura, nomeadamente à grande cultura burguesa, se podemos generalizar assim, vem daqueles que promovem a sub-cultura burguesa de massas, que vende muito mais facilmente com a vantagem de manter as pessoas alienadas. Não atire areia para os olhos das pessoas. A esquerda (não caviar), a esquerda lúcida, marxista ou outra mas séria, nunca foi de facilíssimos didácticos, por exemplo contra os exames, nem de desprezo pelas obras do nosso património artístico. Karl Marx, só para citar um dos autores do património da esquerda séria, escreveu que os exames, não constituindo o objectivo do ensino-aprendizagem, eram a burocracia necessária da aprendizagem, como uma das formas imprescindíveis de submeter o conhecimento à prova. Mas não a reduz a exames. A articulação do saber com a prática deve ser um instrumento fundamental da aprendizagem. A maioria dos autores de referência da chamada Escola Nova estão, pelo contrário, mais para o lado do misticismo e do jogo. A esquerda séria sempre exigiu que se estudasse Camões como Fernando Pessoa ou José Saramago, em Língua Portuguesa, assim como Galileu, Espinosa, Hegel, Russell, Bachelard, Piaget em Filosofia. Que faz o programa de Filosofia em vigor? Esse programa tão aclamado por Desidério Murcho. Honra e divulga estes grande filósofos burgueses? Não! Faz como com o anti-burguês Marx, que apreciava, entre muitos outros, o grande poeta alemão Heine: esconde-os. Este programa "Ensina" a pensar no vazio, através da actividade argumentativa sobre conteúdos vagos, fora de contextos científicos e filosóficos sistemáticos, quase à maneira daqueles que Hegel criticou: aprender a nada sem se lançar à água. A esquerda séria sempre valorizou o trabalho e o saber. Aprender, aprender, aprender sempre. Sabe quem foi que escreveu?
Pois é!
Faz-me lembrar um interessante (a outros títulos) manual de Filosofia do ensino secundário chamado "Arte de Pensar"
Não é que, quer no 10.º quer no 11.º anos, não faz qualquer referência a Marx, e no 10.º fala-se em ética, política, estética, essas coisas...
Não faz lembrar um tal Bonifácio de tempos salazarentos? não recorda os exames em que se perguntava porque está errada a tese tal? É que não basta atirar foguetes a Stuart Mill e à sua conceção de liberdade.
Não dá mesmo vontade de ser marxista? quiçá stalinista-maoísta?
Estes liberais précongelados e preparados no micro-ondas são de mais na sua preocupação de denunciar outras inquisições para, mais seguramente, poderem impor as suas que são boas e liberais, está claro.
Neste caso os alunos já não têm direito ao saber, podem perfeitamente ignorar um autor que teve a influência (não discuto, agora, a sua avaliação) que Marx teve, e devem estudar, por exemplo, um "anarquista" de direita, consevador e liberal (no sentido europeu que é o que realmemte anima estes alegados "liberais" e não o outro, o anglo-saxónico).
Pedro Mota:
Não referiu um prestigiado intelectual (para os marxistas e para muitos não-marxistas, N. Crato apelida-o de «marxista esclarecido», O ‘Eduquês’…, pp. 33, 40, 85), António Gramsci, que defende rigor, repetição, exigência e exames.
Mas G. Valente já nos habituou aos esquecimentos selectivos.
– dos livros que publicou:
«O ‘Eduquês’…» (N. Crato), o que referi atrás;
«Rómulo de Carvalho: Ser Professor» (N. Crato, org.), especialmente os capítulos 1 (p. 19), 7 (p. 83) e 8 (p.109), que belo panorama sobre o ensino da Física nos anos 60 e 70 e a formação de professores, os turbo-professores.
– dos livros que não publicou (mas que deveria conhecer):
«Matemática em Portugal…» (Jorge Buescu), publicado na FFMS, onde se põe a nu a origem (e persistência) dos nossos problemas do ensino da Matemática e por extensão os restantes;
«Rómulo de Carvalho – Memórias», publicado na F. C. Gulbenkian, que belo panorama da (falta de) qualidade do ensino desde o início dos anos 30 a meados de 70 (os anos da sua experiência profissional de 42 anos).
– dos preâmbulos dos decretos das dezenas de reformas educativas, de que dou exemplos:
«Decreto de 17/11/1836», onde se diz: «Attendendo a que a Instrucção Secundaria é de todas as partes da Instrucção Publica aquella que mais carece de reforma, por quanto o systema actual consta na maior parte de alguns ramos de erudição estéril, quasi inútil para a cultura das sciencias, e sem nenhum elemento que possa produzir o aperfeiçoamento das Artes, e os progressos da civilização material do Paiz»;
«Decreto de 22/12/1894», onde se diz: «O estado lastimoso do ensino secundário em Portugal não pode continuar. É mister pôr termo á situação a que elle desceu, porque assim o requerem numerosas e importantes vantagens»;
«Decreto de 29/08/1905», onde se diz: «Os votos dos entendidos em matéria de instrucção secundaria, as constantes reclamações dos paes e tutores dos alumnos dos nossos lyceus, os ditames da justiça e os interesses nacionaes não podem continuar por mais tempo sem uma satisfação»;
(continua)
(continuação)
«Decreto de 2/10/1926», onde, depois de se avaliar o estado do nosso ensino, se diz: «Grave problema andava irresolvido há muito na instrução secundária, com dano do ensino e clamores de todos. Superabundância de matérias, superabundância de horas de aulas, abundâncias tantas que, ao contrário do ditado latino, se julgavam nocivas em extremo, e até contraproducentes no alcance desejado do saber muito e bem. O resultado paradoxal era patente a todas as vistas – mesmo as menos atiladas: quanto mais se pretendia fazer saber, cada vez realmente se sabia menos»;
«Decreto de 17/09/1947», onde, depois de se historiar o nosso ensino, se diz: «Na vigência de todos os regimes experimentados tem sido insistentemente afirmado que muitos alunos saem dos liceus sem a preparação indispensável para a entrada nos cursos superiores e também sem o grau de formação do espírito e de cultura geral necessários numa das profissões para que se exige o curso liceal».
– citações de desabafos de responsáveis educativos e de professores prestigiados, estampados em leis ou em diversos livros sobre educação, que abarcam quase um século:
«A maioria dos estudantes […] desfalece perante o mais rudimentar trabalho analítico; raciocina errado, se raciocina; não sabe classificar; deduz mal, induz pior» [Monarquia, decreto da Reforma de Jaime Moniz, 22/12/1894];
«Em Portugal, o aluno sai da escola primária um verdadeiro ignorante» (Albano Ramalho, 1909, inspector primário). [República, ou pré-República, 1 ou 2 anos depois o panorama não seria diferente];
«Verifica-se nas respostas de muitos examinandos uma ignorância absoluta de certas matérias e lêem-se em muitas delas os disparates mais fantásticos» (Alves de Moura, professor e reitor do Liceu e Braga, 1939). [Inícios do Estado Novo];
«O nível mental da maioria dos alunos do ensino liceal é muito baixo» (Fernando Pinho de Almeida, 1955 - filósofo, ensaísta e professor de liceu, 1908-1991). [Pleno Estado Novo].
São de épocas bem diferentes, mas que têm em comum espelhar uma realidade continuada, o nosso persistente atraso educativo, de um século relativamente aos países do Norte e Centro da Europa e de meio século relativamente aos do arco mediterrânico.
Como muito bem diz Jorge Buescu, op. cit., p. 14, é um erro tomar «factos mais ou menos singulares supostamente representativos de uma situação geral.»
É este o principal problema de G. Valente.
Maria Aurélia Santos Calixto
Comentário de GV ao comentário de Pedro Mota:
Muito bem, está, então de acordo comigo. Terá entendido, pois, e apreciado, a minha citação do Éluard. De facto é, em última instância, da liberdade que se trata. Odeiam a cultura porque odeiam a liberdade. O «eduquês» semeia para um qualquer ditador (de esquerda, mas mais provavelmente de direita como é nossa tradição, colher). O «eduquês» não leu mal apenas Marx - e até Rousseau, como em breve mostrarei com uma citação do próprio - mas parece ter lido mal tudo. Reagem, aliás, ao marxismo, que nunca perceberam.
Muito obrigado pelo seu tão vivo apoio, sobretudo por ter mostrado tão claramente que a anti-cultura e o fanatismo - e, afinal, deixemo-nos de rodeios, ignorância e a pura tolice -- não são redutíveis às ideias de esquerda e de direita. Repare que no «eduquês» até se congregam «católicos» millenaristas ou escatológicos.
Guilherme Valente
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