segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Contra estes exames

O texto que se segue foi-nos enviado pela leitora Maria Paula Lago, professora e também investigadora nas áreas da Teoria da Literatura e da Língua e Literatura Portuguesas. Agradecemos a sua contribuição na análise de uma temática que urge ser repensada a nível nacional.

Sempre fui a favor do rigor no sistema de ensino; o contrário apenas leva, como aliás acontece nos dias de hoje, a que a escola reproduza os mecanismos de selecção social: quem pode, pode, e sabe, seja qual for a escola em que esteja matriculado; quem vem de baixo não tem qualquer hipótese de aceder, pela via do conhecimento, a um patamar superior. No entanto, face à súbita maré de rigor que mediaticamente se abate sobre o nosso sistema de ensino, face a afirmações e coincidências que, embora estranhas, não são de todo surpreendentes, sou, abertamente, contra os exames.

No que toca às afirmações, sou contra os exames que, mais do aferir transversalmente conhecimentos, servem como veículo mediático de proposições insondáveis – ou demasiado transparentes, se tomadas por um outro prisma. Ao afirmar que “as escolas prepararam mal os alunos” (Público, 24 de Julho de 2011), Hélder de Sousa, director do Gave, organismo responsável pela elaboração e critérios de correcção dos exames, está uma vez mais e como é habitual, a apontar o dedo aos professores, tentando contornar uma incontornável realidade: a de que os exames não foram bem preparados face aos alunos e ao que deles é expectável no âmbito da disciplina. Disso são prova as hesitações e imprecisões na definição dos critérios, os critérios confidenciais e a ameaça velada do dever de sigilo, elementos que são, uma vez mais, factores de pressão sobre os professores face às metas de sucesso desejadas – mas também marca de uma indesejável cumplicidade – e alguns diriam mesmo promiscuidade – entre quem avalia os saberes e quem produz, distribui e vende os saberes que irão ser avaliados.

Face a essa e a outras pressões centralistas, os professores são alvo fácil de modas e orientações científicas, didácticas e pedagógicas; a chancela do poder político e de uma pseudo-cientificidade, ainda que não validada – ou mesmo contestada – pela comunidade científica, impede a autonomia dos professores na construção de um saber sólido e consequente. Que tais modas e orientações sejam introduzidas nas provas de exame é um factor de peso nesse impedimento, e a sua inclusão nos exames é meio caminho andado para que elas sejam forçosamente geradoras de capital, seguramente não apenas simbólico. Por isso e assumidamente, sou contra os exames, ou melhor, sou contra estes exames.

Quanto às coincidências, elas existem apesar da habitual operação retórica da sua negação. Existem, pelo menos, na disciplina que lecciono, a de Língua Portuguesa, e, pelo menos, nos exames de 12.º ano. Para além de questões improcedentes e vagas que foram já assinaladas noutros lugares por vozes dificilmente contestáveis, de assinalar a espantosa coincidência de os dois textos seleccionados para análise dos exames de Português de 2011 constarem de um livrinho de preparação para os exames, versão 2011; de assinalar também a forma como, nos exames como no livrinho de preparação, o esoterismo da Nova Terminologia Gramatical se instala cada vez mais em exercícios de gramática pela gramática, a coberto de opções terminológicas cientificamente contestáveis e, num grande número dos casos, completamente inúteis para o desenvolvimento das competências de compreensão dos alunos.

Não cabe aqui retirar ilações ou conclusões sobre estas coincidências, mas o rigor está ausente dos aspectos assinalados, como parece também arredado da afirmação, em destaque na caixa “Em resumo” do artigo do Público mencionado, de que «sete dos catorze pontos que a média do exame de Português do 12.º ano perdeu por comparação a (sic) 2011 tiveram origem na troca, no grupo que testa os conhecimentos de gramática, de uma questão de associação por três questões de resposta curta»; não sendo especialista em ciências esotéricas como a da estatística (bem) aplicada, tal afirmação parece-me, no entanto, de difícil sustentabilidade.

De mais difícil sustentação é, no entanto, uma outra afirmação da peça jornalística, desta vez a coberto de voz anónima: «confirmou-se que os alunos de 12.º ano, a partir de um poema de Álvaro de Campos, voltaram a confundir ‘sentimentos’ com ‘sensações’». Não sei quem terá decidido, nos meandros do saber como os que dominam o nosso ensino, que, numa teoria sensacionista com a densidade da exposta e praticada por Pessoa – e sobretudo num poema de Campos – aquilo a que chamamos sensação só pode corresponder a uma sensação predominantemente física; no entanto, tal asserção é manifestamente errada – ou, pelo menos, de uma enorme falta de rigor.

Feita a prova dos factos, como sugere retoricamente o artigo do Público em destaque transversal e subliminar, sou contra os exames, ou melhor, contra estes exames marcados pela falta de rigor científico e pedagógico, pela indefinição e imprecisão face ao que com eles se pretende aferir e, sobretudo pela facilidade com se usam como instrumentos de desígnios misteriosos, nos quais é no entanto fácil perceber que não consta o que deveria ser o principal: o serviço público de avaliar aprendizagens essenciais para melhorar o ensino e beneficiar as gerações futuras.

15 comentários:

Anónimo disse...

Expectável? Que raio é isso?

José Batista da Ascenção disse...

Excelentíssima e digníssima professora Maria Paula Lago.

Eu sou a favor dos exames.
Mas sou, suponho que mais do que a Senhora, contra estes exames.

Olhe, em biologia e geologia (uma horrenda miscelânea de assuntos só possível devido a jogos de forças alheias à vontade dos cidadãos, em particular dos alunos e dos seus encarregados de educação) é que é absolutamente verdadeira a asserção: "os exames não foram bem preparados face aos alunos e ao que deles é expectável no âmbito da disciplina", desde 2005 para cá. Eu e outros vamos gritando. Também escrevemos o que nos parece justo. Mas encontramos sempre muros de silêncio ou ocultação.
Porém, eu, os meus colegas, os meus alunos e mais pessoas, sabemos que um dia,algum dia, não há-de ser possível esconder o "crime".

Aceite os meus calorosos parabéns.
Que não lhe doam as palavras.

Vai ver que um dia, este país, se o não destruirem, toma jeito.

Muito bem haja. Muito bem haja mesmo.

José Batista da Ascenção disse...

Expectável = que se pode esperar; provável.

Phronesis disse...

É possível concordar com as alegações apresentadas e não subscrever a conclusão (ser contra os exames). Porque é que havemos de concluir (com base nos argumentos do texto) que os exames são errados? Mesmo que sejam ‘os exames que temos’, há alguma razão ponderosa para os eliminar? Corrigir os erros e melhorar os processos envolvidos (começando por criticar, como faz o texto), isso já é vibrar uma corda mais pertinente.
(Repito aqui, já agora, o meu comentário ao mesmo texto no blog A Educação do Meu Umbigo, de 12 de setembro)

Paulo Lopes

António Pedro Pereira disse...

José Batista Ascenção:

Expectável - digno de ser visto; notável (do lat. spectabile, «visível») [Dicionário Porto Editora, 8.ª edição, 2008, p. 683];
Expectável – que merece ser visto, admirável, notável (do lat. Spectabilis, e «que está à vista, visível») [Dicionário Houaiss, 2003, p. 1590].

Muito longe, portanto, do significado que lhe quer atribuir.
Mas há muitas outras palavras usadas de forma pouco própria, quer por influência (nefasta) dos «media», quer por influência do linguarejar abrasileirado, o que nos tem conduzido à barbárie em que vivemos no domínio do uso da língua.
Depois, só depois, vem a culpa da Escola (que alguns teimam, por razões que a outras lógicas obedecem cegamente, em colocar no 1.º lugar do pódio das responsabilidades), coitada da Escola que tão pouco pode nesta voragem mediática globalizadora (independentemente das responsabilidades objectivas, que também tem).

Anónimo disse...

Obrigada, caro José Ascenção. Tenho algumas dificuldades com a novilíngua copiada das palavras e construções inglesas. Por acaso esta era fácil, os meus conhecimentos de inglês é que são fracos. Há dias vi-me grega a consultar dicionários até entender que antecipar não significa antecipar mas sim antecipate. E que anthrax (lembram-se?) nem sequer existe em português. Agradeço a todos que me esclareçam, estudei muito pouco inglês e agora tenho dificuldade em perceber português. Obrigada.

Cláudia S. Tomazi disse...

O que seria do acolher se existir procedência duvidosa?

José Batista da Ascenção disse...

António Pedro Pereira:

O meu velhinho "Dicionário da Língua Portuguesa" por J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo, 5ª edição (muito corrigida e aumentada) da Porto Editora, Lda. Rua da Fábrica, 84, Porto - Portugal, não lhe dá razão.

E eu confio mais nele (e noutros) do que nesses mais modernos que refere.
E nos clássicos que fui (e vou) (re)lendo.
E nos professores que me ensinaram.

Anónimo disse...

Anónima das 10:26
Por acaso a ver blogues, jornais e TV aprende-se um bocado de inglês.

Manel disse...

http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=Expect%C3%A1vel



expectável (eis...èct ou èt)

(latim expectabilis, -e)

adj. 2 g.

Que se pode esperar. = PROVÁVEL



http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=espect%C3%A1vel



espectável (èt ou èct)

(latim spectabilis, -e, visível, belo)

adj. 2 g.

Digno de se ver. = ADMIRÁVEL, NOTÁVEL





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Farto de pedantes de esquina

António Pedro Pereira disse...

José Batista Ascenção:
Eu estou sempre aberto a aprender com os outros e a dar o braço a torcer quando me provam que não tenho razão.
Perante a observação do 1.º comentador e o abuso frequente nos dias de hoje da utilização de uma palavra um pouco rebarbativa como expectável (ainda por cima com um significado que os dicionários mais comuns em uso não atestam), tal como, p. ex., se usa «incontornável» (em vez de «inevitável» ou «que tem obrigatoriamente que se tomar em conta») ou ainda «consubstanciado» (em vez de «materializado», esta muito mais objectiva, comum e até elegante), eu limitei-me a, socorrendo-me de dois dicionários de uso e valor comummente aceites, apontar uma incongruência.
Nada mais pretendi com a minha observação.
Mas como contrapôs com outros exemplos de autoridade reconhecida, como J. Almeida e Costa & A. Sampaio e Melo, podia completar a informação como eu fiz, os leitores dos comentários ficariam mais bem informados.

José Batista da Ascenção disse...

António Pedro Pereira:

Não há incongruência.

Expectável não é (nem um pouco) uma palavra rebarbativa.

Se quiser, pode confrontar, nos seus dicionários, as palavras "expectável" e "espectável", como se faz acima, no comentário de Manel.

O que mais me custa é que o corajoso, lúcido e honestíssimo texto de entrada não merece ser desdourado com discussões deste género.

Anónimo disse...

Os resultados dos exames nacionais sustentam resultados estatísticos, que sustentam rankings, que têm como resultado a aferição de escolas de exclência, no topo da hierarquia. Seguidamente, os mass media, com todo o sensacionalismo, espalham a notícia pelo país fora. E em menos de um folêgo, toda a população fala com imensa propriedade do assunto. Uns que sim, outros que não… mas todos olhando, significativamante, pelo canto do olho, para o(s) professor(es)!

(Tempos houve em que a palavra era criadora de realidade. Hoje, numa época em que há “uma hipervalorização das emoções imediatas e pouco educadas” (António Damaso, Jornal de Letras, Outubro 2011),os rankings são criadores de realidade.)

Entretanto… no início de um novo ano letivo, os professores deste país recebem na sala de aula alunos sem pré-requisitos (expressão que foi PROIBIDA nas escolas) para a frequência do ano em que se encontram, situação tanto mais grave quanto mais avançamos no ano de escolaridade, com turmas compostas já com cerca de 80% de alunos nestas circunstâncias. E é com este barro que o professor tem de trabalhar, sabendo de antemão que é completamente impossível chegar sequer aos calcanhares dos níveis esperados. E depois, duas coisas acontecem: o barro consubstancia-se em jovens seres humanos com necessitades tão gritantes que não é humanamente possível ignorar, ao mesmo tempo que o diretor nos abre os olhos com o indicador apontado, por uma lado, para as estatísticas, por outro lado, para os encarregados de educação que têm de andar satisfeitos para não criarem ondas, por outro lado ainda, para os alunos que continuam a dar chatices … e então, duas possibilidades para os professores: ou se prostituem em nome do seu ordenado (ou dos filhos que deitaram ao mundo), ou enfrentam o touro e, com o poder que cada vez mais é dado aos diretores, acabam com avaliações negativas e uma depressão. Como é que uma pessoa como Nuno Crato não enxerga que atribuir mais poder aos diretores tem um efeito preverso? É que, ao contrário do que acontece no privado, o diretor de uma escola não tem um negócio para garantir e do qual depende a sua própria subsistência, ou seja, nada tem a perder, logo, é o exercício do poder pelo poder…

Voltando ao início do ano letivo, todo a comunidade escolar, incluindo diretores e até encarregados de educação, funciona a uma só voz, exprimindo indignação face a um modus operandi que tem como resultado alunos impreparados para o ano letivo em que se encontram. No entanto, no final do processo, no momento em que se começam a comparar escolas pelos seus resultados, não é que os professores de português e matemática também são olhados pelo canto do olho pelos seus próprios pares?

Em suma:
1º Havendo exames, que os haja para todas as disciplinas, porque o que aqui apontei relativamente à discriminação dos professores de português e de matemática é uma ponta do iceberg.

2º Embora não diretamente relacionado com o assunto deste post, a autonomia das escolas e a consequente atribuição de poder aos seus diretores é um pau de dois bicos, uma vez que o ministério da educação não garante a formação ética dos diretores das escolas, que já o são por nomeação, e não por eleição democrática.

3º Exames, na minha perspetiva, sim, mas nunca nestas circunstâncias.

HR

Anónimo disse...

Então e dos exames? Ninguém tem nada a dizer?

Rantanplan disse...

Sou sempre a favor. Mesmo que sejam maus. Obrigam todos a trabalhar mais. Quanto mais não seja os professores têm que dar integralmente os programas. Além disso os exames de FQA estão muito bem feitos e até denotam um certo grau de exigência e raciocínio.

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