terça-feira, 18 de outubro de 2011

Apresentação de Ana Maria Matute


Palavras de apresentação da escritora espanhola Ana Maria Matute e do livro “A Torre de Vigia”, edição Planeta Manuscrito, no Instituto Cervantes em Lisboa, no dia 13 de Outubro de 2011, pela escritora Cristina Carvalho:

A literatura é algo que, usando palavras, não se pode definir nem soletrar. É uma expressão artística ambiciosa, que usa sangue e corpo, que tem de ser livre – como todas as expressões de arte ou como a própria vida.

Deverá ser simples e compreensível como uma correnteza de água, como um estremecer de folhas de árvore.

Quanto a mim, o papel da literatura não é explicar o mundo. A literatura é o próprio mundo. Porque são sentimentos, ideais, histórias experimentadas, visitas, efabulações, desenhos de memórias, conquistas, alegria e desespero. As palavras escritas devem formar um todo compreensível, - um romance, um conto, um poema. As palavras que servem as ideias, têm de ser dádiva. As palavras não podem viver subterraneamente de modo incompreensível ou navegar ao sabor da moda; as letras não devem agrupar-se em palavras que não tenham significado. Isso não é bom. Não é essa a interrogação que a literatura precisa. Não é isso que perdura. Não é isso que prende.

O pensamento existe. A estética da linguagem também existe. O sonho também existe. As histórias existem. Os livros existem. A pessoa existe e a pessoa é a interrogação. É a pessoa que escreve histórias que deseja que a outra pessoa as leia, mas sobretudo, que as compreenda.

Ana Maria Matute é totalmente clara. Ela não escreve sobre o eterno Eu e o Tu e o Tu e o Eu mas abraça, sim, toda a humanidade. Por exemplo, em Paraíso Inabitado, Matute revela a inteira psicologia da vida desde os primeiros anos da protagonista, Adriana, que são os nossos primeiros anos rumo a um salto assombroso nesse perigoso e absurdo abismo que é a adolescência, túnel sombrio de dúvidas e indecisões que só o próprio adolescente consegue resolver.

Atravessando a vida com tantos livros escritos, tantos prémios que a consagraram universalmente, há um que destaco porque me toca particularmente, porque o sentido mais humano da literatura ainda que fantástico e submetido, aparentemente, ao reino do surreal e do maravilhoso que muito aprecio e elevo, é também, pelo que sei, o livro que a escritora mais gostou de escrever: Olvidado rei Gudú. Como ela própria afirma - , el libro que siempre quiso escribir y por el que le gustaría ser recordada! "Es un libro mágico, como la vida misma".

Toda a magia e mistério da vida é extraordinariamente bem escrito e descrito em Olvidado Rei Gudú, seus mistérios e superstições onde todas as emoções humanas são reveladas num registo de assombrosa fantasia e de poderoso conhecimento da imaginativa mente humana.

Com uma vastíssima obra que passa por muitos romances entre os quais destaco as traduções em língua portuguesa: Olvidado Rei Gudú, Aranmanoth, outro romance no género fantástico apresentado com uma escrita tão doce e envolvente, conta-nos a infância e o crescimento de duas crianças enamoradas.

Ainda em Paraiso Inabitado e de novo pela voz de uma criança se percorre a vida e os complexos estágios do crescimento numa escrita aparentemente leve e simplificada que nos conduz às mais elaboradas reflexões.

E o livro que hoje apresentamos, A Torre de Vigia.

Ao entrar na leitura deste livro imergimos imediatamente num cenário onírico, denso e misterioso onde sobressai a Natureza por vezes assustadora, outras vezes duma beleza escaldante. Todo este ambiente enevoado e surreal de homens-lobis, ventanias, campos de neve de fome e de frio mais as doçuras do estio, de ameias de castelos, baronesas e barões, veados, javalis, gansos, lobos, cavalos brancos e cavalos pretos, jovens iniciados cavaleiros, peles de ursos, flechas, salões, cozinhas e alcovas, todo este universo existe, atavicamente, em todos nós. Está nos mais altos e escondidos sótãos da nossa memória. Este universo foi, neste livro, posto a descoberto. É uma vida inteira a descobrir universos, a desvendar sonhos, uns atrás dos outros.

E com a ironia sempre presente, vivemos mais uma vez uma certa infância ou como uma criança pode e consegue sublimar atos ou situações terríveis através da construção dos sonhos.

Nesta história somos transportados, como num quadro musical em ambiente medieval, somos transportados em nuvens de cheiros, cores e sabores, interrogações, desespero e espanto.

Este livro, o primeiro duma trilogia medieval, fala-nos de um filho de boas famílias, a sua travessia da infância e entrada na adolescência com grande desassossego. A castelã, a baronesa de Mohl, linda, ruiva e branca que o inicia no amor carnal aos treze anos. Também essa atitude, brutal e estranha, fá-lo perceber os mais rudimentares indícios da constituição psicológica do ser humano. Tudo o que de mais escondido está, para além da fronteira do conhecimento, rente às superstições mais subterrâneas que todos nós temos e que desejamos esconder. Conseguimos perceber este jovem a pensar e a transformar-se todos os dias, o que causa alguma angústia.

As personagens avassaladoras quer animais quer humanas são fascinantes. Krim-Cavalo é um ser inesquecível, lendário e protetor do jovem iniciado. Eu penso mesmo que Krim-Cavalo podia ser o jovem, ele mesmo. Este jovem sem nome. Este fantasma. O barão e a baronesa de Mohl, outras personagens tão excessivas quanto misteriosas. O próprio pai, um poderoso desgraçado que, sem amor para dar, é como se personificasse a eterna noite dos homens.

“A Torre de Vigia” é pois, uma história de desejos, de descoberta, a eterna luta entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas e ao ler este romance pensei sempre no homem à face da Terra, vi-o a tentar avançar não sei para onde, nem porquê, nem para que destino ou fatalidade.

É esta a arte de Ana Maria Matute: a literatura, esse milagre.

Escreveu também contos e muitas histórias para a infância e juventude. Os prémios e reconhecimentos literários são inúmeros. Em 2010 recebeu o Prémio Cervantes, o mais alto galardão espanhol atribuído à literatura.

A arte literária é mais uma insignificância do cosmos. Quantos e quantos quilómetros de linhas já foram escritas? Quanto pensamento glorioso já oferecemos aos nossos deuses? Quantos restam? Quantos encantos e desencantos vamos sofrendo? O que é que aprendemos? O que é que valemos? Que interesse tem tudo? Tanta interrogação…

Sei, sinto que Ana Maria Matute tem absoluta consciência das penas que uma pessoa suporta ao longo desta permanência por aqui. Os seus livros são documentos de extraordinária importância que desenham a vida e as experiências do quotidiano de alguém que conviveu com a guerra civil de Espanha e a segunda grande guerra mundial e o pós-guerra. A sua literatura é um grito de libertação através do poder imagético de cada um. A fantasia está expressa em muitos dos seus livros atingindo o pico em Olvidado Rei Gudú e Aranmanoth e ainda, muito embora estes livros sejam um hino à poderosa fantasia humana, é também a constatação da triste realidade da condição humana.

Ana Maria Matute enche-me de orgulho como mulher, como escritora, como exemplo de conhecimento, de experiência, de sabedoria, de humanidade e celebro-a em todas as suas vertentes e capacidades. Exalto-a e elevo-a. Desejo-lhe, com toda a admiração e a par desta complexa e temporária passagem pelo planeta Terra, muita saúde e as maiores felicidades em tudo, na sua condição humana e na sua literatura.

CRISTINA CARVALHO

1 comentário:

Anónimo disse...

Que maravilha de palavras: profundas, simples e muito interessantes!
HR

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