terça-feira, 5 de julho de 2011

O Ajudante de Mentiroso


Com o prazer habitual que nos proporcionam os textos de Eugénio Lisboa, ora se publica mais este sobre o livro do académico brasileiro Lêdo Ivo com idêntico título ao do post.

Notável poeta e ficcionista, Lêdo Ivo é também, quanto a mim, um dos ensaístas mais perceptivos, inteligentes, corajosos e sedutores que nos deu, até hoje, o Brasil. E olhem que o elogio é de tomo, referindo-se a um país que nos ofereceu, nesse sector, gente do gabarito de Machado de Assis, Álvaro Lins, Lúcia Miguel Pereira, Alceu Amoroso Lima, Sérgio Milliet, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido, Wilson Martins, Eduardo Portela, para só citar alguns dos nomes mais aparatosos. Grandes poetas que são também grandes ensaístas, há-os: T. S. Eliot, Paul Valéry, Baudelaire, Shelley, Edgar Poe (talvez, como poeta, não exageradamente grande, mas, ainda assim, bastante interessante...), Octavio Paz, Wordsworth, Pessoa, Régio, Jorge de Sena, Mourão-Ferreira. Mas não abundam por aí além. A linguagem poética pode parecer distante da linguagem prospectiva e tentativamente clarificante que é a mais própria do ensaio. Disse parecer, não disse ser. Vem tudo isto a propósito de um livro que há pouco recebi, enviado pelo autor – e meu amigo – Lêdo Ivo: Ajudante de Mentiroso, que reúne quarenta e quatro curtos textos ensaísticos, se incluirmos a saborosa introdução “Guardar o que está perdido”.

Por mais de uma vez, no decorrer da sua escrita de grande ensaísta, Lêdo Ivo alude ao ensaísmo anglo-saxónico como modelo que é aconselhável e saudável seguir. Para dar só dois exemplos: no belo texto de homenagem ao poeta de Libertinagem, intitulado “Lembrança de Manuel Bandeira”, observa: “Ele escrevia como os ensaístas ingleses: numa prosa coloquial que bem merecia a atenção dos exigentes e intolerantes alunos de mestrado do Professor Antonio Candido”; noutra passagem do ensaio intitulado “A Prosa Reencontrada” [de José Lins do Rego] e incluído no livro que aqui nos traz – Ajudante de Mentiroso - , observa que o grande romancista de Pedra Bonita “foi também um homem de movimento, um viajante que percorria terras e via as diferenças e singularidades do mundo à maneira de um Montaigne ou um Stendhal – como se a viagem fosse uma conversação.” Esta alusão ao mestre francês não deixa de ter significado incisivo, porquanto foi ele o pai do ensaio de Bacon e de todo o grande ensaísmo anglo-saxónico, caracterizado por uma conversa altamente civilizada mas informal. Na verdade, um pouco mais adiante e no mesmo texto consagrado a Lins do Rego, Lêdo Ivo observa: “Mas na verdade o ensaio é um gênero leve, fronteiriço entre a literatura e o jornalismo, daí a sua origem ou lugar inicial: o jornal ou a revista em que eram publicados anteriormente.” E acrescenta: “A grande lição do ensaio ocidental é o da literatura em língua inglesa, com os seus ensaístas informais, que escrevem sobre ruas tortas, cemitérios, cidades, viagens, cenas cotidianas, sonhos. E esse tipo de ensaio praticado pelos ingleses, se por um lado se distancia inapelavelmente do eruditismo predatório que grassa entre nós, por outro se aproxima da nossa crônica de jornal.” E resume assim a sua declaração de interesses: “Um bom ensaísta é um cronista culto que sabe escrever.” Por isso, saudando o grande ficcionista de Fogo Morto, diz: “Grande leitor e admirador da literatura inglesa (...), José Lins do Rego ostenta em seu ensaísmo e em sua cronística o desembaraço, a lepidez e a argúcia presentes no informal essay dos ingleses – na lição que vem de Bacon, Addison, Charles Lamb e Hazlitt e continua num Robert Louis Stevenson, num Chesterton ou num Hilaire Belloc.”

Quem leia, com o prazer com que eu os tenho lido, os vários e bem recheados volumes de prosa ensaística do autor de Confissões de um Poeta, concluirá, sem dificuldade, que Lêdo Ivo, ao caracterizar o ensaio de Lins do Rego, na esteira do melhor ensaísmo inglês, mais não faz do que tirar uma expressiva fotografia ao seu próprio modo de estar no ensaio. Conversa informal, culta, civilizada, “fronteiriça entre a literatura e o jornalismo”, erudita mas não maculada de “eruditismo predatório”, primando “pela sedutora diversidade de seus temas” (como diz de Lins do Rego, noutra passagem de um texto incluído no livro Poesia Observada) – eis algumas das características que eminentemente se denunciam na prosa elegante mas cheia de energia e desenvoltura e, repito, coragem, de livros como A Ética da Aventura, Teoria e Celebração, Confissões de um Poeta, O Navio Adormecido no Bosque, Poesia Observada, ou este recentíssimo Ajudante de Mentiroso, para não falar de outros livros seus que não conheço e que, estou certo, não desmentirão o que digo destes (O Universo Poético de Raul Pompéia, O Preto no Branco, Modernismo e Modernidade, A República da Desilusão, entre outros). Duas outras tónicas (e tónicos) gostaria de desvelar nos textos de perscrutação ensaística do autor de As Imaginações: a fidelidade e o afecto.

Lêdo Ivo gosta visivelmente dos autores que recorda e celebra, lê-os com lucidez e aponta-os à nossa admiração com gosto, com amizade que não esconde, estimandeo ter para com eles uma dívida que não lhe pesa. Por outras palavras, a grandeza deles não lhe faz sombra. A lucidez e inteligência crítica de Lêdo Ivo não necessitam de ser mesquinhas para se afirmarem. Ou, dizendo ainda de outro modo, a inteligência não tem que estar do lado da negação. Isto, pelo que diz respeito ao afecto. A segunda tónica a que gostaria de aludir é a da fidelidade: o autor de A Ética da Aventura tem dificuldade em abandonar pelo caminho autores e livros que, de algum modo, contribuíram para sua formação, para o seu crescimento e para a sua felicidade. Por mais de uma vez, ao longo dos anos, o autor, em passagens particularmente comoventes, tenta saldar a sua dívida com a colecção Terramarear que, na sua infância, devorou. Na Ética da Aventura, rende-lhe eloquente homenagem e volta agora a fazê-lo, no livro que acaba de publicar. Não resisto a tirar dele esta passagem: “A descoberta de uma colecção, a Colecção Terramarear, consolidou para sempre um desejo que era uma vocação. O vento da aventura soprava em mim, rival do vento alagoano. As letras e palavras dos romances surpreendentes se convertiam em ondas que fustigavam os cascos dos navios, em ilhas que guardavam tesouros, em portos que abrigavam por um momento as desilusões e os cansaços. Criança, salteou-me a alegria de desenterrar tesouros em ilhas afortunadas. Experimentei a angústia de aninhar-me num escaler para escapar dos naufrágios.”

O mais curioso é que Lêdo Ivo não alude a estas leituras de infância como a experiências importantes de uma certa fase da sua vida, que recorda com saudade, mas que ficaram pelo caminho como coisa ultrapassada por ulteriores leituras mais adultas. Pelo contrário, a Colecção Terramarear não ficou para trás, diz ele, antes “consolidou para sempre um desejo que era uma vocação.” Na fidelidade do seu afecto e no complexo poliedro de ideias e emoções que hoje preside ao seu ideário e imaginário criativos, os fantoches da juvenil colecção ombreiam, de igual para igual, com os de Conrad, Stevenson e Melville: olhos nos olhos, sem vergonha. Sublinho isto com admiração, quase com estranheza, certamente com inveja. É que também eu tendo para esta fidelidade e para este afecto votados àqueles que alguma vez me emocionaram e a quem fiquei devendo alguns instantes de grande intensidade. Mas já tenho deixado cair pelo caminho, com melancolia, alguns que não resistiram muito bem ao amadurecer e à exigência crescente do avaliar. Nisto, julgo que Lêdo Ivo é um caso único, um caso extremo, que requer estudo: um estudo desprevenido, disponível, apto a abrir, quiçá, novos horizontes.

Num belo prefácio à sua antologia Essays of Yesterday, H. A. Treble e G. H. Vallins, recordam que o ensaio, tal como o conhecemos modernamente, surge, na sua força iluminadora, na transição da Idade Média para o Renascimento: “Os homens”, observam Treble e Vallins, “estavam a abandonar a falsa segurança da ignorância pela mais perigosa aventura da procura da verdade.” A segurança tinha-se abonado num protocolo rígido e intolerante de autoridades, homílias e lendas; a busca (tentativa) da verdade pedia menos protocolo, menos rigidez e mais claridade – o tal animus liber, de que tanto se falou então. É um pouco também isto que terão pretendido significar os dois prefaciadores dos Essays of Yesterday, ao escreverem: “Os ensaios curtos, directos, quase lacónicos de Bacon e a obra mais humana de Cowley estavam já, no começo do século dezassete, a influenciar, pelo seu simples vigor de pensamento e de linguagem, a cada vez mais alargada literatura geral em prosa.” São ensaios assim, curtos, directos, (francos, sem medo das “heresias” com que afronta os clichés académicos), recheados de um “simples vigor de pensamento e de linguagem”, os que constituem o miolo do saboroso Ajudante de Mentiroso, agora vindo à luz da nossa leitura.

Na imagem: retrato de Lêdo Ivo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Arremedando Aleixo:

Para a mentira ter visos
de alguma veracidade
desde logo são precisos
alguns toques de verdade!

JCN

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