sábado, 25 de junho de 2011

REGRESSO A JUNQUEIRO (2)

(Continuação)

"David Mourão-Ferreira, no seu hoje já clássico artigo sobre António Sérgio, como crítico literário, mostrou galhardamente como era fina a perscrutação estética do autor dos Ensaios, cuja leitura de Camões – agarrado mais ao texto do que à biografia – é um modelo de inteligência e sensibilidade. E quem pode esquecer as páginas admiráveis que dedicou ao estilo de Eça? (Disse: “ao estilo” e não à análise social e política que se contém nos livros do grande escritor realista.)

Outra crítica pejorativa que se faz à poesia de Junqueiro tem que ver com a sua tão apregoada – e famigerada – “retórica”. A esta acusação vazia de sentido respondeu já José Régio, num artigo precisamente intitulado Junqueiro e a retórica, publicado no suplemento Cultura e Arte, de O Comércio do Porto, em 23 de Agosto de 1955 e depois recolhido no volume Crítica e Ensaio – 2, das Obras Escolhidas de José Régio, do Círculo de Leitores (1994). E aproveito para aqui fazer notar que se, na presença, Régio, aparentemente, desvalorizou Junqueiro, mais tarde, precisamente neste artigo citado (e num outro – Guerra Junqueiro e António Sérgio, publicado no mesmo Comércio do Porto, em 27.9.1966) fez “amende honorable”, defendendo o poeta de A Musa em Férias de ataques excessivos e injustos (e note-se que Régio foi sempre um grande admirador do ensaísmo de António Sérgio).

Não fica mal, creio eu, juntar ao impressionante acervo de testemunhos que este livro recolhe, dedicados à revisita da musa junqueiriana, algumas passagens do primeiro dos textos acima citados. Régio começa por observar: “Quando, a propósito de Junqueiro, se fala em retórica, é sempre no significado depreciativo atribuído ao termo. Ora bem: Aqui principia a nossa questão. Nenhum significado depreciativo implica em si o termo retórica. Retóricos são todos os literatos, pois é da sua arte sê-lo. Grandes retóricos são todos os grandes poetas: Camões ou Bocage, por exemplo, Teixeira de Pascoais ou Fernando Pessoa. O que sucede é variarem muito as suas formas de retórica. E, ao passo que em certos poetas assume a retórica uma tonalidade oratória ou declamatória, noutros se manifesta sob formas antes gongorizantes. Num mesmo poeta – como, por exemplo, Fernando Pessoa – se nos evidenciam, por vezes, as duas principais modalidades retóricas: pois a retórica das Odes de Ricardo Reis é gongorizante, e a das Odes de Álvaro de Campos declamatória.” E, adiante, esclarece, passando de Pessoa a Junqueiro: “Se, como vimos, pode a retórica ser predominantemente gongorizante ou predominantemente oratória, no geral se esquece aquela sua primeira modalidade. Tanto assim que, por certo, muito surpreendidos, ou até indignados, ficarão vários admiradores de Fernando Pessoa, - em se lhes declarando que são retóricas (duma retórica gongorizante) as Odes de Ricardo Reis e muitas poesias do Fernando Pessoa assinado ele mesmo. Será, então, numa retórica predominantemente oratória que se pensa, quando, por exemplo, num significado depreciativo se aplica o termo a grande arte da poesia de Junqueiro. Ao mesmo tempo se atribui em tal caso os sentidos concomitantes de grandiloquência e ênfase mais ou menos vãs, prolixidade inútil, inclinação formalista exercendo-se como no vácuo por gosto de si própria.” Um pouco adiante, Régio fecha o seu argumento e conclui, no seu modo cauteloso de pesar os prós e os contras: “Se, com se qualificar Junqueiro de retórico, se pretende sustentar que ele é vãmente declamatório e oratório, grandiloquente ou enfático sem necessidade, inutilmente prolixo, - várias vezes se terá alguma razão; e outras vezes razão nenhuma! Porque, se na obra de Junqueiro vários trechos e muitos versos estão contaminados deste gosto pela inflação não correspondente a nenhuma necessidade interna verdadeiramente poética, não é menos verdade que um poderoso fôlego dramático e uma admirável diversidade rítmica se desencadeiam no belíssimo poema "Pátria"; que em "Os Simples" abundam as estrofes e os versos duma contenção e uma capacidade sugestiva admiráveis; que uma graça, uma verve e uma facilidade luminosas se expandem, por exemplo, em grande parte de "A Musa em Férias", como em tantas das poesias mais despretensiosas, e até das sátiras, do nosso poeta; e que o seu excepcionalíssimo dom verbal, se, por vezes, o embriaga, arrastando-o a fáceis efeitos oratórios que pouco têm a ver com a poesia, outras vezes se afirma dominador e empolgante, exercendo-se com uma propriedade que uma crítica relativamente objectiva tem de reconhecer. Em parte nos não desagrada, ou até fere, o poder verbal de Junqueiro senão porque o não possui a pontilhosa literatura contemporânea, ou não está na moda a maneira como se afirma, ou quaisquer outras razões por igual temporais, pessoais, precárias. Já aceitamos, porém, a retórica gongorizante e pontilhosa do Ricardo Reis (que pode ser tão escassamente poética como a inflação junqueiriana) ou a artificialmente furiosa declamação (aliás riquíssima em fantasia inventiva) do tantas vezes retórico Álvaro de Campos. Tudo coisas do tempo!” Neste texto que achei por bem citar longamente, Régio arrasa implacavelmente os que pretendem erigir ao estatuto de crítica fundamentada um mero arrazoado de “preferências” e que julgam só “valer”, nos tempos de hoje, a poesia rarefeita e seca (despida de “retórica”), e não ter direito de cidade a poesia de vasto fôlego e inspiração caudalosa – aquilo a que Eugénio de Andrade (grande poeta mas, às vezes, fraco pensador) chama, pejorativamente, de “charanga”. A “charanga” que afinal serviu de veículo a tanta grande poesia contemporânea.

Não vou aqui referir e, menos ainda, comentar todos os tópicos versados, com maior ou menor profundidade, no corpo deste livro rico e fascinante. Tópicos como, entre muitos outros, o cristianismo, (matriz cristã), anticlericalismo, jacobinismo, modernidade, misticismo, espiritualidade e religiosidade, virtuosismo, poesia e ciência, lirismo, epopeia, sátira, biografia e criação, Panteão, metáfora, ritmo e rima, influência de Victor Hugo, componente trágica na poesia junqueiriana, romantismo, contrastes, Junqueiro e Pessoa, poesia e música, conversão religiosa, validade da obra para o leitor de hoje, dom de visualismo, profetismo, Unamuno e Junqueiro, etc., etc.

Só uma pequena observação, relativa ao tópico interessante que é o de “poesia e ciência”. No seu belo e valioso depoimento, Fernando Guimarães afirma que coube à geração de 70 a responsabilidade atribuída à poesia “de estar atenta à ciência”. Ora isto não é bem verdade, visto que já o poeta romântico Wordsworth, no prefácio às Lyric Ballads (edição alargada de 1800) antevia como inevitável que a poesia viesse a incorporar elementos científicos, no seu território de exploração. Mais precisamente, Wordsworth exprimia-se nestes termos: “As mais remotas descobertas do químico, do botânico ou do mineralogista serão objectos tão adequados à arte do poeta como qualquer outro no qual ele actualmente se empenha, se alguma vez chegar a verificar-se que essas coisas se nos tornaram familiares e as relações sob que são contempladas se tornaram manifesta e palpavelmente material para nós, seres humanos, que fruem e sofrem.” Setenta bons anos antes dos dias em que o espírito triunfalista da ciência euforizava as mentes dos amigos de Eça, um poeta romântico inglês, que assistira, in loco, ao eclodir da Revolução Francesa, escrevia já as palavras certeiramente proféticas que acabo de citar. O mesmo Wordsworth que, segundo reza a história, autorizava o seu cão a criticar-lhe os poemas em processo de serem escritos: passeando no jardim, lia em voz alta os versos que andava a escrever, atento à reacção do animal – se este ladrava, algo estava errado no ritmo ensaiado; o silêncio do cão era sinal de que tudo ia bem no reino da música da poesia. Junqueiro , meticuloso caçador de ritmos inatacáveis, teria aprovado.

Resta-me desejar ao Junqueiro ressuscitado pelas mãos laboriosas e competentes de Henrique Manuel Pereira uma segunda vida longa e abençoada pela atenção carinhosa dos leitores. Esse Panteão – a atenção dos leitores – é o único que vale a pena".

Eugénio Lisboa

6 comentários:

Anónimo disse...

Bons ventos para esta publicação. Há quanto tempo não ouvia falar de Guerra Junqueiro.

HR

Anónimo disse...

Fora de contexto... neste blogua, avesso a poesia! JCN

Anónimo disse...

H(ilariante) R(eflexão)! JCN

Anónimo disse...

J(á) C(cria) N(áusea) a quem gosta de ao final do dia vir espreitar o De Rerum.

Anónimo disse...

Tem bom remédio: passe adiante! JCN

Cláudia S. Tomazi disse...

Diz o provérbio "quem tem terra, tem guerra" sem pólvora claro.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...