quinta-feira, 9 de junho de 2011

Novas reformas, mais (in)competências


A ofensiva ideológica contra as ciências e contra o conhecimento em geral parece, de facto, generalizar-se a todos os sistemas de ensino ocidentais. Antes fosse um problema exclusivamente português, seria certamente mais fácil de corrigir. Mas não, parece mesmo tratar-se de um alargado movimento internacional. A ilusão de que podemos formar jovens com sentido crítico, proficientes em assuntos avançados, autónomos nas suas investigações e com muitas “competências” sem os submeter previamente a uma sólida fase de aprendizagem dos conceitos e técnicas base de cada disciplina está lentamente - mas seguramente - a destruir a estrutura e a coerência dos currículos escolares. Na área da Matemática, que conheço melhor, é indiscutível que esta situação se deve em parte ao desinteresse (e mesmo desprezo) que muitos matemáticos mostraram ao longo dos anos pelos assuntos pré-universitários, deixando assim o terreno livre à consolidação de um novo tipo de especialistas sem competência (no sentido correcto da palavra) para formar professores, assessorar decisores políticos ou chamar a si a liderança das diferentes reformas educativas. Mas esta é apenas uma vertente do problema, que timidamente vai sendo contrariada por uma comunidade científica cada vez mais consciente das suas omissões.

Em França prepara-se mais uma reforma dos programas do ensino secundário. Aqui deixo um comentário a estas novas reformas elaborado por um grupo de eminentes matemáticos franceses, sendo certo que para que o problema possa sequer começar a ser atacado, se torna necessária uma mobilização bem mais ampla da sociedade em geral, que terá de recusar, de uma forma ou de outra, este modelo ideológico simplista que lentamente vai estropiando os nossos jovens.


Comunicado de membros da Academia das Ciências relativo às propostas ministeriais para os programas de Matemática para a classe de Terminale, submetidas a consulta pública em Março de 2011


“Em Março de 2011, o Ministério da Educação colocou em consulta pública os novos programas do ano de Terminale (12º ano) (http://eduscol.education.fr/consultation). No que diz respeito aos programas de Matemática da área científica, um exame detalhado dos textos propostos revela graves insuficiências e incoerências. As ambições descritas no preâmbulo (capacidade de efectuar investigações autónomas, de desenvolver um espírito crítico e de modelizar situações reais) não são em caso algum exequíveis se atendermos à carga horária e aos conteúdos previstos. Assistimos ao abandono das definições relevantes e do formalismo mínimo que poderiam permitir a elaboração de raciocínios precisos e correctamente argumentados. Na área de Análise, embora a definição de derivada já tenha sido em teoria trabalhada no ano de Première (11ºano), a noção de limite finito num ponto desapareceu do programa, e toda a relação entre limites e continuidade desapareceu igualmente. Muitas definições baseiam-se em intuições vagas e a maior parte dos resultados fundamentais são admitidos sem demonstração. Em vez de se pedir a consolidação das capacidades calculatórias dos alunos, a ambição expressa neste programa para o cálculo de derivadas reduz-se à utilização de uma prótese, mais precisamente à utilização de programas de cálculo formal. A função tangente parece ter-se eclipsado. Existem incoerências extremamente graves, como o supressão do capítulo sobre equações diferenciais, embora a função exponencial continue a ser definida enquanto solução de uma destas equações. O capítulo das probabilidades, que apenas superficialmente pode parecer imponente, vê-se privado de muitas das fundações necessárias ao seu tratamento e à sua compreensão: teria sido bem mais proveitoso colocar mais ênfase no conteúdo para que estas questões pudessem ser tratadas adequadamente. A geometria é, uma vez mais, o parente pobre deste projecto de reforma: os números complexos perderam o suporte geométrico das similitudes, e as conteúdos de geometria no espaço são uma manta de retalhos, faltando-lhes cruelmente uma visão de conjunto unificadora. A assuntos simples como a decomposição de um número em factores primos ou a noção de maior divisor comum de dois inteiros, que poderiam ser tratados como antigamente no segundo ciclo, vêm juntar-se propostas muito surpreendentes como o “modelo de difusão de Ehrenfest” ou “marchas aleatórias sobre grafos”, que fazem pensar em investigação avançada de especialistas...


Não parece possível improvisar novos programas em apenas algumas semanas, e seria francamente positivo introduzi-los experimentalmente em turmas representativas, para numa segunda fase se proceder a uma análise imparcial dos resultados por equipas de cientistas e de professores. O efeito desta proposta, para além do encantamento provocado por pretensões inacessíveis, será sobretudo o de reduzir uma vez mais os conteúdos de Matemática ensinados aos alunos. A introdução de temas novos, como o estudo de algoritmos, não pode ser feito sem um equilíbrio global das horas de estudo estipuladas para cada disciplina. O número de horas atribuído às ciências é hoje insuficiente na áreas científicas. É também muito lamentável que a Matemática tenha desaparecido de algumas áreas das humanidades, que servirão para formar quadros do estado e professores generalistas. Nestas condições, torna-se urgente a elaboração de uma reforma coerente e ambiciosa do secundário e dos ciclos de estudo que o precedem, a fim de travar a actual hemorragia das vocações científicas.”


Primeiros signatários: Jean-Pierre Demailly, Jean-Marc Fontaine, Jean-Pierre Kahane, Gilles Lebeau, Bernard Malgrange, Gilles Pisier, Jean-Pierre Ramis, Jean-Pierre Serre, Christophe Soulé.

5 comentários:

Matemaniaco disse...

Ah bom! Como é assim em todo o lado não temos nada que ficar preocupados e deixar andar...
Isto resume-se a um problema mais sério:
É necessário ter as pessoas certas a decidir.
E obviamente quem acha que adaptar de qualquer forma o que foi feito noutro país não é a pessoa certa.

Ana Cristina Leonardo disse...

A ilusão de que podemos formar jovens com sentido crítico, proficientes em assuntos avançados, autónomos nas suas investigações e com muitas “competências” sem os submeter previamente a uma sólida fase de aprendizagem dos conceitos e técnicas base de cada disciplina está lentamente - mas seguramente - a destruir a estrutura e a coerência dos currículos escolares.

Mas eu não acho que exista ilusão nenhuma. Sem ser adepta de teorias da conspiração, o que eu diria é que a escola (pública?) tende precisamente, cada vez mais, a formar jovens SEM sentido crítico, INCAPAZES em assuntos avançados, DEPENDENTES nas suas investigações e com POUCAS “competências”.

Fartinho da Silva disse...

Quando os países onde o eduquês é rei e senhor empobrecerem de forma óbvia para todos, talvez acordem para o pesadelo tornado realidade... é que nessa altura descobrirão que povos houve que aproveitaram o tempos dos experimentalismos saloios dos países "progressistas" para instruir o seu povo de forma séria, sem populismo e demagogia...

Carlos Paulo A. de Freitas disse...

Eu ainda espero que um dia as coisas mudem...

Anónimo disse...

Pelas frases citadas, dir-se-ia que os programas franceses foram feitos por "especialistas" portugueses.

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...