quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Vital Moreira e as Ordens Profissionais


"O tempo passado e o tempo presente, fazem ambos parte do tempo futuro" (T.S. Eliot, 1888-1965).

A propósito dos recentes casos de cegueira ocorridos numa clínica algarvia, com insistência pertinaz , Vital Moreira escreve um novo artigo de opinião (Público, 31/08/2010) sobre ordens profissionais, intitulado “Para que servem as ordens profissionais?”, assacando à Ordem dos Médicos responsabilidades não cumpridas no desejável e célere andamento de queixas de utentes que lhe chegam às mãos contra médicos em prevaricação dos seus deveres. Mas não terá o próprio Estado responsabilidades neste status quo ao consentir que a clínica funcionasse sem estar devidamente autorizada?

Aliás, em grande parte das críticas tecidas, em tempos recentes, às ordens profissionais, com a patine do tempo e o prestígio dos seus associados, pode ser encontrada génese persecutória no facto da Ordem dos Engenheiros não ter sancionado a inscrição de indivíduos licenciados em engenharia pela Universidade Independente com razões mais do que sobrantes que fundamentaram o seu encerramento depois de um longo processo a que não foi estranha a notável acção dos media na denúncia pública de uma situação nada prestigiante para o ensino universitário privado aí ministrado e para os titulares dessas licenciaturas.

Ao arrepio das “boas práticas profissionais”, subjacentes a uma exigente formação académica – como reconheceu Somerset Maugham,”é uma grande chatice que o conhecimento só possa adquirir-se à custa de trabalho duro” –, surgiu uma lei quadro que pretendeu retirar, sem êxito, às ordens profissionais existentes o direito ao reconhecimento da qualidade exigível aos candidatos a respectivos membros. Contudo, amputando-as de uma responsabilidade importante vingou ela para as ordens a criar posteriormente num tempo que reflecte, cada vez mais, a crítica de José Miguel Júdice, ao tempo bastonário da Ordem dos Advogados: “Não é verdade que tudo que anda com o título de licenciado na testa seja um licenciado”(Diário de Coimbra, 12/11/2004). Estávamos ainda num período da vida nacional em que as Novas Oportunidades e as Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos não tinham sido partejadas na utopia de um país de licenciados como se fosse possível, como diz o povo, ter sol na eira e chuva no nabal. Aliás, anos atrás, o próprio Vital Moreira se mostrou discordante contra o rumo que o ensino superior estava a seguir, ao escrever: “A ideia de democratizar o ensino superior pela via da banalização do acesso e pela crescente degradação da sua qualidade não é somente um crime contra a própria ideia de ensino superior, é também politicamente pouco honesta”.

Mas voltemos à questão das ordens profissionais. Uma das razões apresentadas, de há muito, por Vital Moreira para a sua discordância para com a criação de ordens profissionais reside no argumento de que “as ordens profissionais tiveram a sua origem no sistema corporativista do Estado Novo” (Público, 05/07/2005). Ora acontece, em boa verdade, como escrevi no dia 22 desse mesmo mês e nesse mesmo jornal, em Cartas ao Director, que “a Ordem dos Advogados foi criada sete anos antes da implantação do Estado Novo e uma quinzena de dias depois da Ditadura Militar que o antecedeu, através do Decreto n.º 11.715/26. De 12 de Junho" ( site da Ordem dos Advogados, “Resumo Histórico da Ordem dos Advogados”).

Seja como for, o Estado Novo foi bem mais parco na criação de ordens profissionais ( Ordem dos Engenheiros, em 1936, Ordem dos Médicos, em 38 e Ordem dos Farmacêuticos, em 72) relativamente aos consulados socialistas em que surgem quase em catadupa ordens profissionais dando-se até o caso da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (que, para além de licenciados e bacharéis, integrava indivíduos sem formação superior) se ter transformado em Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas. Por outro lado, se tivermos em linha de conta que a Ordem dos Enfermeiros foi criada no consulado de António Guterres (Decreto-Lei 104/98, de 21 de Abril), sendo constituída na altura da sua criação por indivíduos apenas de posse de um diploma de ensino médio ou um bacharelato do ensino politécnico (só através do Decreto-Lei 353/99, de 3 de Setembro, foi autorizada a respectiva licenciatura politécnica) rompendo, assim, com a tradição de se destinarem as ordens a profissões de formação académica universitária, reservando-se a designação de câmaras para estas situações, nada me autoriza a pensar que o Partido Socialista possa ser objector à criação de novas ordens profissionais destinadas a profissionais de formação universitária/politécnica.

Em verdade se diga, no caso da classe docente, essa objecção tem origem nos maiores sindicatos de professores e, é justo que se diga, também, no seio da própria classe pelo facto de dispares formações académicas, que vão de um simples curso do ensino secundário a um diploma de estudos superiores de raiz, não terem criado um esprit de corps que acabe com a guerrilha institucional entre várias associações profissionais com o desejo de se assumirem como suas criadoras deixando, desta forma, aos sindicatos o caminho livre para continuarem a assumir funções que lhes não competem. Nem de facto nem de direito!

No caso presente, tomar a nuvem por Juno, por mais negra e anunciadora de maus presságios que ela se apresente, pode conduzir a que se confunda uma boa canção com alguns maus intérpretes. Ou seja, a culpa não está nas ordens profissionais mas em possíveis causas que se compaginam com a imperfeição da própria condição humana dos seus órgãos tutelares. Mas estará o Estado, ele próprio, isento da quota-parte que lhe cabe num deixar correr o marfim tão ao gosto da alma lusitana que faz com que os processos se amontoem nos gabinetes e gavetas da Justiça deixando, por vezes, a culpa morrer solteira?

3 comentários:

joão boaventura disse...

Em 12 de Junho de 1926 vigorava a Ditadura Militar.

Em 1928 deu-se o início e apogeu do consulado de Salazar, ou do Estado Novo.

Fartinho da Silva disse...

Caro Rui Baptista,

Infelizmente há ainda em Portugal muito político que considera que a sociedade deve estar ao serviço do Estado e não o contrário. Vital Moreira é apenas e só um exemplo disto mesmo.

Repare que o Ministério da "Educação" levou tão longe esta visão que criou de cima para baixo organizações que deveriam ter nascido na sociedade como por exemplo a Confederação das Associação de Pais (CONFAP) e o Conselho de Escolas.

Só quando cair um meteorito na 5 de Outubro é que o lobby das "ciências" e especialistas da educação é que permitirá que os professores tenham algum poder de decisão... e se algum dia permitir a criação da Ordem de Professores tal só acontecerá se for dirigida por representantes do status quo...

Rui Baptista disse...

Caro Fartinho da Silva: Infelizmente, assim é.E mais infeliz é o facto de docentes (?)/dirigentes sindicais pactuarem com esta situação em nítido benefício próprio. Mas ainda pior, é haver docentes que se manifestam contra a criação de uma Ordem dos Professores. Enfim...eles lá terão as suas razões nesta espécie de conluio que os transforma em almas gémeas!

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...