“Isto assim pode ser que seja útil, fácil, vantajoso; pode ser que assim se conquiste a opinião das maiorias boçais” (Ramalho Ortigão, 1836-1915).
O sistema educativo nacional abre fendas, dos caboucos ao telhado, fazendo com que os umbrais das portas do ensino superior se desaprumem em pilares fundados em areias movediças de uma permissiva (ou mesmo criminosa) aprendizagem das primeiras letras.
Num passado recente, em Provas de Aferição de Língua Portuguesa (4.º e 6.º anos), foram permitidos erros ortográficos defendidos por modernos ideólogos do eduquês que parecem conviver bem com a teoria de que, como lemos algures com ironia amarga, “que os erros de português são uma questão de respeito pelas ‘diferenssas ‘”!
Na aldeia global em que o mundo se transformou, as críticas a este descalabro educativo atravessaram fronteiras nacionais. Assim, segundo um estudo realizado no Reino Unido, incidindo sobre 62.200 emigrantes portugueses, relatado num artigo com o sugestivo título “Há aí alguém que nos possa educar por favor?”, da autoria de Miguel Castro Coelho, economista e “research fellow” no Intitute for Policy Research, Londres, é referido que “os seus autores ficaram com ar perplexo pelo facto de Portugal nestas matérias se desviar sistematicamente do comportamento dos restantes países europeus e alinhar com os níveis de países tipo Bangladesh, Paquistão, Gana, Somália ou Uganda” (Diário Económico, 9 de Outubro de 2007).
No próprio, e até agora exigente, ensino secundário assistiu-se ao fim dos exames nacionais de Filosofia pelo perigo que podia representar para a sociedade portuguesa a busca da sabedoria, ou ainda pior, a sabedoria encontrada. Entretanto, em vez de se arrepiar caminho, continua-se a acumular erros que, como não podia deixar, chegaram ao ensino superior que deveria, em muitos casos, ser chamado, apenas, de ensino terciário. Para agravar esta, só por si, calamitosa situação, no caso da docência do ensino não superior, não se estabeleceu quase nenhuma diferença entre professores com a habilitação de um antigo curso médio e professores de posse de licenciaturas universitárias.
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Assim, por exemplo, no final das respectivas carreiras docentes a diferença, numa carreira de 10 escalões cifrou-se apenas num único escalão: 9.º para os primeiros e 10.º para os segundos. Mas logo este pequeno “décalage” logo foi ultrapassado com a abertura de escolas privadas ditas superiores que em meia dúzia de meses lhes venderam uma licenciatura politécnica. Meio ano de um deplorável facilitismo passou, assim, a equivaler a mais dois anos do secundário e mais quatro ou cinco anos de ensino superior universitário. Ou seja, as Novas Oportunidades não caíram em Portugal de pára-quedas. Tiveram génese em vários anos de de um escandaloso oportunismo com a bênção de uns tantos políticos e/ou sindicalistas que dele se aproveitaram tornando-se, desta forma, prosélitos de um velho criado de Eça de Queiroz, de nome Vitorino, cuja história aqui se conta, extraída de um dos seus cáusticos textos:
“Este benemérito, quando em Coimbra, lhe mandávamos buscar a um cacifo, apelidado de 'Biblioteca de Alexandria', um livro de versos, trazia sempre um dicionário, um Ortolan ou um tomo das Ordenações; e se, maravilha, nos apetecia justamente um destes tomos de instrução, era certo aparecer Vitorino com Lamartine ou a 'Dama das Camélias'. Os nossos clamores de indignação deixavam-no superiormente sereno. Dava um puxão do colete de riscadinho, e murmurava com dignidade: isto ou aquilo são tudo coisas de letra redonda”.
De igual modo, para quem dirige o rumo do sistema educativo, ter um curso médio ou um curso superior regular no âmbito da docência do ensino não superior “são coisas de letra redonda”, desmotivadores de um estudo sério e aplicado. O ministério da Educação da altura, sob a regência de Roberto Carneiro, deve assumir perante a opinião pública dos dias de hoje a respectiva responsabilidade que abriu caminho a outras medidas de idêntica injustiça.
Ambas as reportagens do Expresso (da semana passada e desta semana) sobre as Novas Oportunidades representam uma atitude louvável de despertar a sociedade portuguesa para o estado caótico com que chegam à universidade, ou ao ensino politécnico, candidatos oriundos quer das Novas Oportunidades, quer das Provas de Acesso ao Ensino Superior. Mais uma vez se confirma a vox populi, "depois de casa roubada trancas na porta", por, tarde e a más horas, o presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior, Meira Soares, ter dito que “vai analisar a ‘injustiça’, admitindo propor ao ministro [do Ensino Superior] alterações à lei” que permitiu que este ano haja 530 formandos (quando no ano lectivo 2008/2009 foram apenas onze) que franquearam os escancarados portões do ensino superior.
Ainda segundo o último número do Expresso, entraram no ensino superior público 6751 alunos, através do regime especial para maiores de 23 anos (que veio substituir o sério e exigente exame ad hoc). Isto sem contabilizar esse acesso de candidatos ao ensino superior privado num universo em que, no ano de 2009, as taxas de aprovação se cifraram em 96% chegando até aos 100% em dezenas dessas instituições.
Seja como for, não me pode deixar de causar bastante estranheza que Meira Soares só agora se tenha apercebido de uma crise que se alastrou como uma verdadeira chaga social detectada, anos atrás, por Isidro Alves, reitor da Universidade Católica, ao defender que "a criação de elites não se coaduna com um sistema universitário que desceu muito de nível a 25 de Abril com a proliferação do ensino particular e cooperativo" (Diario de Notícias, 19 de Outubro de 1996).
António Barreto, académico de Ciências Sociais, na sua constante preocupação com o rumo seguido pelo sistema educativo, lançou, há anos, o alarme ao criticar o facto de se “fazer entrar o maior número de estudantes, sem consideração pelo mérito; formar técnicos de medíocre qualidade, sem zelar pela qualidade das instituições; libertar os docentes da tarefa de seleccionar; e transmitir à população a ideia de que o acesso à universidade é um direito de todos, tal como a protecção na doença e na velhice”.
Longes vinham os tempos das Novas Oportunidades e das Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos que corporizaram todas medidas que aqui foram criticadas. O ensino superior, correndo o perigo de se desacreditar cada vez mais, não pode ser um alfobre de candidatos que mal sabem ler ou escrever em nome de um mercantilismo em que a cavalo dado não se olha o dente desde que os cofres das instituições privadas (e infelizmente públicas) se encham do dinheiro das propinas, numa cedência da deusa Minerva ao rei Midas. Em nome de dados estatísticos, confunde-se quantidade com qualidade na esperança do milagre que a universidade se transforme, também, por artes mágicas, numa escola de aprendizagem de matérias elementares que se não possuem aquando da transposição dos respectivos umbrais.
Tarde e a má horas (mas, como diz o povo, "mais vale tarde do que nunca") faz, agora, o diagnóstico deste deplorável status quo o presidente da Federação Académica do Porto, Ricardo Morgado, quando alerta na supracitada reportagem do Expresso, “estar a subverter-se o programa Novas Oportunidades, que foi criado para dar mais ferramentas a pessoas que não tiveram condições para estudar, e não para ser uma autoestrada de acesso ao ensino superior como está a acontecer”.
Eu, mais do que uma autoestrada, diria estarmos na presença de uma porta do cavalo de que a esperteza nacional se sabe aproveitar à tripa forra em exemplos pródigos que têm beneficiado gente lusitana de letras gordas, havida como ilustre, que aparece, sem nenhum ou pouquíssimo esforço, de um dia para o outro, com licenciaturas de três ao pataco ou de posse de doutoramentos com o valor de uma moeda furada, em confirmação de versos pessoanos: “Ai que prazer/não cumprir um dever./Ter um livro para ler/e não o fazer!/ Ler é maçada/ estudar é nada”.
3 comentários:
Não diga mal do nosso ensino superior, pois se até se fazem exames ao Domingo!...
SNG
É exactamente assim.
E depois, os génios que nos comandam, inventam esquemas de avaliação de professores em que alguns dos avaliadores são precisamente pessoas que, na realidade, nem sequer sabem ler e escrever escorreitamente (e não me peçam para fazer denúncias...). Antes de lhes franquearem as portas do sistema de ensino não houve, nem parece haver, qualquer preocupação com a sua valia profissional, como antes disso não houve, nem há, qualquer preocupação com a qualidade da sua preparação: no ensino "terciário", no ensino secundário e no ensino básico (que agora não se pode dizer primário, de todos o conceito que me parece mais feliz, por ser "o que está primeiro", logo ser fundamental...). É o que se chama querer construir o palácio pelo telhado e tapar o sol com a peneira. Só que o palácio não passa de um mísero barraco, mesmo se os edifícios foram sujeitos a remodelação, e "peneiras" é coisa que nos sobra e não precisávamos de ter...
E ninguém prende os "inovadores" responsáveis, que continuam o seu trabalho, seguramente com "a consciência tranquila", como vai sendo costume dizer-se, como se o facto nos oferecesse qualquer dúvida...
A configuração tomada pelas Novas Oportunidades, pelos sinais evidenciados até agora, é a de Lojas de Conveniência ou Novas Lojas de Conveniência.
Qual conveniência ?
Assim como o PSD, no final da sua vivência governamental, colocou vários aderentes do partido em posições-chave com a chancela de que não podiam ser demitidos, assim o PS, depois de ter contemplado uma colmeia de aderentes, resolveu, perante a porta de saída que se vai abrindo, facilitar a entrada à Universidade, aos aderentes ainda não contemplados com a bênção do chefe.
Está assim explicada a razão de, no ano lectivo 2008/2009, terem entrada na Universidade apenas onze, o que levantou grande clamor já apaziguado com a entrada, este ano, de 530.
Quanto aos termos em que o processo decorreu, para um salto tão repentino, é outro assunto. Mas esse é tão claro, porque o processo é igualitário em todo o ensino que, por conveniência, não havia outro processo.
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